Controvérsias Jurídicas

Leis que proíbem discriminação traduzem o avanço civilizatório da sociedade

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

18 de novembro de 2021, 8h00

Já dispensamos neste espaço três textos em que analisamos múltiplos aspectos da aplicabilidade da Lei nº 7.716/89 (crimes resultantes de preconceito de raça ou cor) às condutas homofóbicas e transfóbicas. Estudamos o caso do jogador de vôlei Maurício Souza, que criticou a criação de uma personagem de super-herói homoafetiva [1]; a decisão do STF na ADPF 457, que declarou inconstitucional a Lei Municipal 1.516/15, de Novo Gama (GO), que proibia a utilização de material didático com referência a ideologia de gênero na rede pública de ensino [2]; e o crime de homofobia e a estrita legalidade [3].

Vimos que o ordenamento jurídico pátrio, ancorado pelo Estado democrático de Direito, sustenta-se pelo princípio da respeitabilidade e dignidade da pessoa humana, objetivando a convivência pacífica entre os cidadãos, tendo, inclusive, nossa Constituição Federal reservado diversos artigos no sentido de coibir qualquer forma de discriminação e preconceito como meio da promoção do bem comum.

Nesse sentido, estabelece a CF, artigo 1º, III, que "a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III a dignidade da pessoa humana". O artigo 3º, IV, CF, preceitua que "constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV  promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Por fim, os incisos XLI e XLII do artigo 5º, CF, colocam que "XLI  a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; XLII a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei".

A abrangência da Lei nº 7.716/89 está prevista em seu artigo 1º, ao delimitar que "serão punidos, na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Portanto, qualquer um que segregar, separar, menosprezar ou der tratamento depreciativo a um grupo de pessoas em função de sua raça ou cor ("negro", "pardo"); etnia ("judeu", "árabe", "oriental"); religião ("muçulmano", "católico", "evangélico", "espírita", "umbanda", "candomblé", "judeus"  que, além de grupo étnico, também se enquadram como doutrina de fé) e procedência nacional ("imigrante", "cubano", "japonês", "paraguaio") incorrerá nas penas trazidas nos tipos.

Entre os delitos trazidos pela lei, destacamos os artigos 5º e 20, referentes a discriminação e preconceito nas relações de consumo e na prática, indução ou incitação de ação discriminatória em função de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Diz o artigo 5º que incorrerá na pena de reclusão de um a três anos, aquele que "recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender, receber cliente ou comprador". Trata-se de tipo misto alternativo, consumando-se sempre que houver a recusa ou impedimento de acesso a estabelecimento comercial. O sujeito ativo será o comerciante ou o funcionário do local que recusar-se a servir, atender ou receber o cliente; ou negar-lhe acesso ao estabelecimento. Por sua vez, o sujeito passivo será todo consumidor que, em razão de sua cor, raça, credo, etnia ou procedência nacional, tiver sua liberdade ambulatorial restringida.  O elemento subjetivo do tipo é o dolo, consistente na vontade livre e consciente do agente em segregar, discriminar, com inequívoca atitude racista.

O artigo 20 nos mostra que é crime "praticar, induzir ou incitar a discriminação e o preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência religiosa", culminando em pena de reclusão de um a três anos e multa. Nota-se que o delito sob exame é de tipo misto alternativo e aberto, dando ao aplicador da lei margem de interpretação do que efetivamente seria praticar, induzir ou incitar atos discriminatórios. Auxiliando-nos as definições utilizadas para o crime do CP, artigo 122 (instigação, induzimento ou auxilio ao suicídio), entendemos por induzir o ato de suscitar, fazer surgir uma ideia inexistente. Incitar é a ação de animar, estimular ou reforçar uma ideia já existente; e praticar é a conduta material, a ação que viola o bem juridicamente tutelado [4].

Por ser crime comum, qualquer um poderá ser o sujeito ativo. Já o sujeito passivo será a pessoa ou grupo de pessoas que foi alvo dos atos discriminatórios. O elemento subjetivo do tipo é o dolo, consistente na vontade livre e consciente do agente em menosprezar e depreciar a vítima, afetando pretensa superioridade em virtude de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional.

A objetividade jurídica de ambos é a proteção da dignidade e a preservação da igualdade. Em função da honorabilidade do bem tutelado, achou por bem o legislador constituinte reconhecer a imprescritibilidade do crime de racismo, vez que qualquer ação no sentido subjugar outrem causa repulsa e indignação a todo corpo social.

"(…) No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantes a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem apagar a memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem" [5].

Há de se dizer que a lei veda a possibilidade de concessão de liberdade provisória mediante o pagamento de fiança. Contudo, nada impede que o julgador conceda a liberdade provisória sem fiança, desde que ausente o periculum libertatis, situação na qual a prisão não é a medida adequada.

Em que pese a larga abrangência da lei, os atos de intolerância e preconceito dos dias atuais nos mostram que nem todas as formas de segregação foram nela contidas. Exemplos clássicos são os atos de homofobia e transfobia, que por não estarem presentes no texto do artigo 1º foram objeto de debate pelo STF.

Em julgamento do MI 4733/DF, a corte reconheceu a omissão do Congresso Nacional em elaborar lei específica para criminalizar a discriminação e o preconceito por orientação sexual e identidade de gênero. Na ADO 26/DF, garantiu eficácia geral e efeito vinculante à mora inconstitucional do Congresso Nacional em elaborar lei específica de combate à discriminação e o preconceito por orientação sexual e identidade de gênero, cientificando o Poder Legislativo de sua inoperância, nos termos da CF, artigo 103, §2º, e artigo 12-H, Lei 9.869/99. Desta forma, utilizando-se do instrumento da interpretação conforme a Constituição, interpretou os incisos XLI e XLII do artigo 5º, CF, como "mandados constitucionais incriminadores", de forma que as condutas homofóbicas e transfóbicas são espécies do gênero "racismo social", consubstanciado na segregação e inferiorização de um segmento da sociedade. Assim, até que haja legislação específica, a Lei 7.716 terá incidência para a discriminação e preconceito por orientação sexual ou identidade de gênero.

Existem tantas outras formas de discriminação e preconceito não abarcadas pela Lei nº 7.716/89, mas disciplinadas por legislação específica, tal como a questão das pessoas com deficiência física ou mental, tuteladas pela Lei nº 13.146/16 e pelo artigo 8º, Lei nº 7.437/85, e os atos discriminatórios perpetrados contra pessoas soropositivas, conforme artigo 1º, incisos I a VI, da Lei nº 12.984/14.

Em que pesem as omissões legislativas e eventuais inexatidões terminológicas, as sucessivas leis que proíbem qualquer forma de discriminação e preconceito, criminalizando ações de segregação de grupo ou segmento social, traduzem o avanço civilizatório da sociedade brasileira, que não mais tolera qualquer tentativa de demonstração de pretensa superioridade de um grupo sobre o outro, dando efetivo entendimento aos princípios constitucionais da dignidade humana e da isonomia.

 


[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Especial (arts. 121 a 154-B, crimes contra a pessoa), 20ª edição, Ed. SaraivaJur, 2020, p.209.

[5] STJ, HC nº 82.424/RS, Rel. para acórdão: Min. Maurício Corrêa, j. 17/09/2003, Tribunal Pleno.

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