Opinião

A inconstitucionalidade da PEC nº 10/2017

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17 de novembro de 2021, 13h17

A aprovação pelo Senado Federal da denominada PEC da Relevância traz uma amostra dos tempos sombrios que estão por vir em nossa já corroída democracia. Esta corrosão na esfera judicial pode ser observada pela aplicação indiscriminada da Súmula nº 7 do STJ, utilizada por vezes para obstar o prosseguimento de louváveis súplicas.

O Código Fux trouxe inúmeras inovações contra a chamada jurisprudência defensiva e representa um marco histórico na evolução democrática do Estado brasileiro, trazendo para o seio do Direito Processual a efetiva participação das partes na construção do provimento judicial e estampando de maneira objetiva os contornos da norma insculpida no artigo 93, IX, da CRFB/1988:

"IX  Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação".

O dever de fundamentar do magistrado, que antes era dotado de certo grau de subjetividade, agora encontra-se expresso com uma clareza solar no artigo 489 do CPC/2015. Contudo, as inovações democráticas contidas no novo Código de Processo Civil vêm sendo paulatinamente fustigadas pela jurisprudência pátria.

A PEC nº 10/2017, na contramão do novo CPC, tem como objetivo a criação de mais uma barreira para impedir que os recursos especiais tenham seu mérito analisado pela corte superior.

Uma vez que, aprovada a supracitada proposta de emenda constitucional, o artigo 105 da Constituição Federal passará a ter a seguinte redação em seu parágrafo primeiro:

"§1º  No recurso especial, o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento".

Desde já se questiona: o que seria relevância social? Como demonstrar tal requisito?

Segundo o atual presidente do STJ, a PEC deverá evitar o julgamento de questões que afetam apenas o interesse das partes. Dada a máxima vênia, quando estamos diante das hipóteses de cabimento de um recurso especial, há sempre extrema relevância, pois existe dúvida quanto à aplicação correta da lei por um tribunal estadual.

Cabe ainda chamar atenção ao trecho da fala do ministro Humberto Martins: "O objetivo central da proposta é fazer com que o STJ deixe de atuar como terceira instância  revisora de processos cujo interesse muitas vezes está restrito às partes".

Oras, para que um indivíduo reclame a aplicação correta de lei federal é necessário que seu vizinho e outras pessoas estejam passando pelo menos problema?

A malfadada PEC sangra a nossa sagrada Constituição, passando por cima de princípios tão caros e colidindo frontalmente com o artigo 5, XXXV, da CRFB/1988.

"XXXV a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Ao criar obstáculo intransponível para análise de recurso especial, o que a PEC nº 10/2017 faz é negar a prestação judiciária às partes.

Encontra-se plasmado no artigo 5º, XXXV, da CRFB/1988 o princípio da inafastabilidade da jurisdição, sendo este, decorrência lógica da vedação à autotutela.

O ministro Alexandre de Moraes ensina que:

"O Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade de ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação judicial é princípio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um direito responde uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue".

A relevância prática do princípio da inafastabilidade da jurisdição é vedar todo e qualquer pretexto que tenha como finalidade sonegar a prestação jurisdicional, ou que estabeleça critérios dotados de tamanha subjetividade que deixe ao arbítrio do julgador a prestação ou não de sua função.

O princípio em testilha se trata de direito subjetivo do cidadão, que cria o dever do Estado em garantir o acesso pleno do indivíduo à máquina judiciária. E sendo direito subjetivo, deve o interessado apenas demonstrar seu próprio interesse, não havendo necessidade de demonstrar relevância social ou que a discussão proposta ultrapassa o interesse das partes, basta que interesse para si a discussão daquele direito que é dever do Estado prestar-lhe a jurisdição em sua plenitude.

Não são raros os casos em que juízes de primeiro grau, desembargadores e até ministros afastem a aplicação de leis federais em nome da celeridade processual e eficiência, esta última, pautada apenas na rapidez em que prolatadas as decisões, e não na qualidade substancial das mesmas.

A título de exemplo:

Audiência de conciliação prevista no artigo 334 do CPC/2015 é dispensada de ofício sob o pretexto de celeridade e eficiência processual. Todavia, a lei não dá ao magistrado tal faculdade, do contrário, da leitura atenta do artigo percebe-se que se trata de um mandamento categórico, "o juiz designará".

A não realização da audiência de conciliação traz diversos prejuízos para defesa, visto que não designada a referida conciliação, o réu é citado para que apresente defesa, tendo seu prazo para produção probatório e análise do caso reduzido.

Outro exemplo importante diz respeito ao artigo 226 do CPP, que era entendido como mera sugestão do legislador.

Numa vitória para a democracia, o entendimento foi revisto, e atualmente o desrespeito ao artigo 226 é causa de nulidade do reconhecimento.

Situações como as exemplificadas acima acabam por sobrecarregar os tribunais.

Cabe chamar atenção ao péssimo costume brasileiro de emendar a Carta Magna quando ao longo dos anos o Estado se mostra incapaz de dar tratamento adequado ao lá contido. A Constituição garante acesso pleno à Justiça e a Proposta de Emenda Constitucional nº10/2017 tem como objetivo limita-lo, por uma flagrante ineficiência estatal.

A aprovação da PEC poderá ocasionar como efeito colateral uma avalanche de ações rescisórios, utilizadas como sucedâneo recursal nos casos em que se adequarem a previsão do artigo 966, V, do CPC/2015.

Soluções para o problema que a PEC se convida a resolver podem ser encontradas de diversas outras formas, que foram elucidadas pelo brilhantíssimo Lenio Streck em seu artigo publicado recentemente nesta ConJur.

 

Referências bibliográficas
Constituição Federal de 1988.

Código de Processo Civil de 2015.

Matéria pública no site do STJ, disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/15102021-Em-palestra-na-Unisa–ministro-Humberto-Martins-defende-filtro-de-relevancia-para-recursos-especiais.aspx.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. Teoria Geral. Comentários aos artigos 1o à 5o da Constituição da República Federativa do Brasil. Doutrina e Jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Atlas S.A., 1998, p. 197.

Artigo publicado por Streck, L.L., disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-21/senso-incomum-restara-recurso-especial-aprovada-pec-relevancia.

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