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Opinião: Por que não se deve dificultar ainda mais o acesso ao STJ?

17 de novembro de 2021, 16h09

Por Rodrigo Tomiello da Silva, Paulo Henrique Garcia D'Angioli, Anderson Soares da Silva, José Guilherme Fontes de Azevedo Costa

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Por meio do Parecer nº 266, de 2021-Plen/SF [1], de relatoria do senador Rogério Carvalho (PT-SE), foi analisada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 10, de 2017 [2], cuja primeira signatária foi a hoje senadora Rose de Freitas (MDB-ES), em que se busca criar mecanismos para reduzir os casos de admissibilidade do recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça, previsto no artigo 105, III, da Constituição da República (CRFB/88), objetivando uma redução significativa desses recursos e de modo a possibilitar à referida corte atuar de modo ainda mais eficiente na sua função constitucional de uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil.

A ideia de preservar o STJ, com a criação desse requisito específico de admissibilidade, é louvável, mas a situação não é totalmente nova: quando da promulgação da Emenda Constitucional (EC) nº 45/2004, foi instituída, no artigo 102, §3º, CRFB/88 [3], a figura da "repercussão geral" como requisito de admissibilidade para recursos extraordinários perante o Supremo Tribunal Federal.

Em ambos os casos, o que se observa são medidas para preservar as cortes judiciais superiores do excesso de recursos, sob pena de o que deveria ser uma instância especial/extraordinária se transformar indevidamente em terceira ou quarta instâncias. Como bem explicitado nas razões do parecer: "(…) Segundo o Relatório de Gestão de 2020 do STJ, foram distribuídos no Tribunal naquele ano 354.398 processos, com uma média de 10.739 de processos distribuídos e registrados por Ministro. (…)".

Por meio da PEC, busca-se incluir no artigo 105 que "no recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo não o conhecer por esse motivo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento".

Fica evidente, na redação atual, que o tema não se esgota na Constituição e que será necessária regulamentação em pormenor no Código de Processo Civil (CPC) e no regimento interno do próprio STJ — a exemplo do que ocorreu quando da instituição da repercussão geral no recurso extraordinário.

Consoante a redação aprovada, o natural será que o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de Direito federal infraconstitucional discutidas, em cada um de seus recursos especiais (e, provavelmente, deverá fazê-lo em capítulo próprio das razões recursais).

Corretamente, são estabelecidas certas matérias e situações em que essa relevância será presumida (1) ações penais; 2) ações de improbidade administrativa; 3) ações cujo valor de causa ultrapasse quinhentos salários mínimos; 4) ações que possam gerar inelegibilidade; 5) hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça) e outras hipóteses a serem previstas em lei.

O recurso especial somente poderá ser inadmitido por ausência de cumprimento do requisito de relevância quando houver a manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento (turma, seção, Corte Especial).

No entanto, parece-nos que dois pontos poderiam ser mais bem refletidos: o momento em que se busca esse maior filtro para acesso ao STJ (a contundente crise fiscal pela qual passam os estados desde antes da pandemia Covid-19 [4]) e alguns elementos em relação aos quais isso se desenvolve (matérias cuja natureza já conte com relevância presumida).

Não há nenhuma dúvida, quando se observam a estrutura e a prática judiciária de nações mais desenvolvidas, de que é correto o movimento de fortalecimento institucional dos juízos de primeira e segunda instâncias e da preservação e restrição de acesso a cortes superiores.

A vinculação de precedentes é um importante exemplo, eis que ao mesmo tempo em que fortalece a posição: 1) dos tribunais superiores como responsáveis por dizerem o Direito; também robustecem a atuação 2) dos tribunais locais, em sua atribuição de compreender os fatos e provas e tipificá-los ao Direito já declarado.

Ocorre que, se considerarmos o momento institucional brasileiro, é possível notar que as dificuldades orçamentárias dos estados (existe uma imediata, aguda e real preocupação de custeio da máquina como um todo — inclusive dos tribunais locais [5]) acaba por fragilizar o sistema de freios e contrapesos entre os poderes locais e, nesse cenário, são as cortes superiores que acabam por exercer de modo menos consequencialista o necessário papel contramajoritário do Poder Judiciário.

A crise nos estados é tamanha que, como se viu no passado e se projeta no futuro, pode haver dificuldades para pagamento até mesmo aos membros do Poder Judiciário. Logo, em causas cujos resultados tenham potencial de gerar comprometimento de caixa do próprio estado (como discussões tributárias ou administrativas), poderia haver uma pressão majorada dos demais poderes sobre o Judiciário local, o que redundaria em algo que se poderia considerar um indício de conflito de interesses.

Há muito se denuncia o consequencialismo na tomada de decisões pelo Poder Judiciário, especialmente quando se está a tratar de direitos fundamentais, ou da própria estrutura constitucional, condição de possibilidade de um Estado democrático de Direito. Algumas teorias ingressaram no Direito brasileiro para fornecer sustentação dogmática para decisões que declaradamente visam a preservar o Estado das consequências de decisões que o próprio Estado tomou, como, por exemplo, a edição de normas tributárias inconstitucionais.

Em parcial retroalimentação ao já suscitado, ressaltamos que a matéria tributária não foi ventilada como de "relevância presumida", apesar da grande importância que tem como dever individual homogêneo no prisma das pessoas, somado ao fato de envolver municípios, estados e a União, muitas vezes centenas de legislações que não raro se mostram muito complexas, demandando uma visão macro para as soluções das controvérsias.

Tal fato pode ser sentido em julgamentos recentes e de grande relevância do STJ, como a definição, pela 1ª Seção, que a parte interessada, ao ajuizar ação contra a União, pode renunciar a valores que excedam 60 salários mínimos para conseguir demandar no juizado especial e, com isso, evitar a fila dos precatórios (Tema 1.030); ou que a isenção do Imposto de Renda prevista na Lei nº 7.713/1988 para os proventos de aposentadoria ou reforma, concedida em virtude de acidente em serviço ou doença grave, não é aplicável no caso de trabalhador com doença grave que esteja no exercício de atividade laborativa (Tema 1.037).

Desta forma, em uma primeira leitura da proposta de emenda à Constituição (PEC), para que uma questão tributária seja levada ao Superior Tribunal de Justiça, deverá ter valor da causa que ultrapasse 500 salários mínimos ou terá de ser demonstrada a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso e contar com a manifestação favorável de pelo menos um terço dos membros do órgão competente para o julgamento.

Então, por exemplo, eventual ação proposta pelo contribuinte que vise meramente à declaração de inexistência de relação jurídico-tributária e o direito à repetição do indébito dos últimos cinco anos somente poderia ser apreciada pelo STJ — sem uma apreciação subjetiva quanto aos requisitos de admissibilidade — caso fosse atribuído um valor à causa superior aos 500 salários mínimos, em desconformidade com o que preceitua os artigos 291 e seguintes do Código de Processo Civil?

Outro ponto a ser suscitado diz respeito à questão da limitação da matéria direito federal infraconstitucional. Ou seja, se tivermos uma demanda envolvendo um município ou um estado acerca da criação de uma taxa, por exemplo, essa questão poderia ser avaliada dentro das premissas a serem fixadas, no âmbito do STJ, ou seriam consideradas, respectivamente, questões de Direito local e regional?

E como ficariam os casos dos mandados de segurança? Segundo dispõe o artigo 18 da Lei nº 12.016/09, das decisões em mandado de segurança proferidas em única instância pelos tribunais cabe recurso especial e extraordinário, nos casos legalmente previstos, e recurso ordinário, quando a ordem for denegada. Assim, se a decisão for favorável, poderá a autoridade coatora questionar a decisão no âmbito do STJ?

Por fim, a interpretação dos requisitos previstos no que pode vir a ser o §1º do artigo 105 da CRFB/88 deve ser realizada de forma cumulativa ou isolada com os requisitos objetivos previstos nos incisos do caput do mesmo artigo?

A todas essas perguntas somamos a essencial: algum Direito federal poderá ser tachado de irrelevante? Palavras têm força; no princípio era o verbo [6], diz o livro mais vendido do mundo. A construção de mais um abismo entre os jurisdicionados e a corte de preservação da higidez do sistema normativo infraconstitucional, em que pese justificável pelas estatísticas apresentadas, não resiste ao argumento jurídico que lhe contraria.

Quem definirá a relevância? Os primeiros julgamentos dirão que o tema não passa pelo filtro da relevância e logo aparecerá um acórdão afirmando que casos em que a ilegalidade é chapada é possível conhecer do recurso para afastar a ilegalidade — algo como um Habeas Corpus de ofício que não é conhecido, mas é magnanimamente concedido.

O debate tributário certamente se encontrará dentre essas questões em que a relevância será uma loteria. A preocupação com o uso da linguagem foi bem registrada por Umberto Eco que, estudando o uso de metáfora e da analogia no pensamento filosófico, aponta uma preocupação: "Nos textos, está sempre viva a justa preocupação de que a metáfora não seja demasiado ‘elástica’ de modo que, da similitude estabelecida a partir de uma propriedade, não sejam inferidas ilicitamente outras propriedades" [7], pois é exatamente o risco que atraímos quando tentamos criar um conceito de relevância para admissão de recursos especiais.

Enquanto isso as perguntas certas sequer são cogitadas. Algo como: por que tantos recursos especiais, mesmo com jurisprudência defensiva? Criar mais um obstáculo evitará o recurso manifestamente incabível ou só prejudicará aqueles que podem ter razão? Se a ideia é de preservação do Judiciário, qual o sentido de se reabrirem discussões aparentemente superadas, como a da viabilidade de rescisória de julgamentos tidos conforme a jurisprudência da época — e, aparentemente, conferindo tal direito apenas ao Fisco [8]?

Feitas estas considerações, é possível concluir que propor uma alteração em um sistema complexo de engrenagens — como o nosso sistema constitucional — é tarefa bastante árdua. E esse trabalho se torna mais difícil quando se criam barreiras para que questões tributárias não cheguem às instâncias superiores, além das já conhecidas Súmulas 7, 211 e 320 do STJ e 282 e 283 do STF, a título de exemplo.

Se a ideia é apenas impedir que a discussão chegue ao STJ, parece que o caminho proposto pela PEC analisada é suficiente [9]. No entanto, caso se queira debater a fundo os problemas que assolam o sistema como um todo — e preservar o que de fato importa, isto é, a higidez da jurisprudência produzida pelo STJ e, em consequência, os jurisdicionados –, sugere-se começar respondendo a algumas das questões acima formuladas.


[3] "§3º. No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”.

[6] João 1:1-18.

[7] ECO, Umberto. Da árvore ao labirinto: estudos históricos sobre signo e interpretação. Rio de Janeiro: Record, 2013.p.129.

[9] No STF, "com a implementação da RG em 2007, os processos em tramitação na corte diminuíram cerca de 80%. A quantidade de processos recursais era próxima de 120 mil naquele ano e chegou a pouco mais de 13 mil no final de 2020 — pela primeira vez, uma tramitação menor em relação de processos recursais em relação aos originários", in https://www.conjur.com.br/2021-mai-09/mecanismo-repercussao-geral-diminui-acervo-stf, acesso em 14/11/2021, às 8h47.