Garantias do Consumo

Inversão do ônus da prova como regra de instrução: notas sobre REsp 1.286.273

Autor

  • Vitor Vilela Guglinski

    é advogado especialista em Direito do Consumidor professor de diversos cursos jurídicos e de pós-graduação membro da Comissão de Professores de Direito do Consumidor do Instituto Nacional de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e autor de obras jurídicas.

17 de novembro de 2021, 8h00

Inicialmente, de modo a se delimitar a análise que se seguirá, cumpre registrar que os comentários ao julgado se restringe ao instituto da inversão do ônus da prova nas relações de consumo, uma vez que os fatos examinados pelo colegiado julgador envolvem violações a direitos dos consumidores resultantes de prática de crime, o que não é, ao menos de forma imediata, não guarda relação com os comentários à decisão em questão. Tampouco haverá incursões envolvendo consumidores que se habilitaram no curso da lide, pois, igualmente, eventual análise nada acrescentará ao exame da aplicação da inversão do ônus da prova.

O julgado em comento trata de caso envolvendo ação em que o Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou ação coletiva contra duas seguradoras, em razão de suposto esquema de fraudes praticadas com o fim de não pagarem os valores devidos aos respectivos beneficiários dos seguros contratados, que, após "investigações" internas no âmbito daquelas sociedades, eram por elas acusados da prática de fraude contra seguro (estelionato), fato que justificaria a recusa de pagamento das respectivas indenizações.

Em primeiro grau de jurisdição, a pretensão autoral foi julgada procedente em relação às sociedades empresárias demandadas para condená-las a indenizar o dano material sofrido por todos os segurados que não receberam a indenização correspondente nas respectivas apólices, bem compensá-los por dano moral, além de condená-las a obrigações de fazer e não fazer, relacionadas ao cumprimento dos contratos de seguro celebrados com os consumidores lesados.

Em grau de recurso, a sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, tendo o órgão julgador, contudo, ressaltado na ementa do julgado que ao caso se aplicavam as disposições do Código de Defesa do Consumidor, com inversão do ônus da prova como regra de julgamento.

Por fim, ao julgar o recurso especial interposto, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça o conheceu, em parte, para cassar os acórdãos dos embargos de declaração e da apelação relativamente ao recurso manejado pela seguradora e determinar o retorno dos autos à segunda instância para, tendo afastado a inversão do ônus da prova aplicada pela corte paulista, sob dois fundamentos utilizados pelo eminente ministro relator em seu voto: (1) a inversão do ônus da prova é regra de instrução, e não regra de julgamento, de modo a se oportunizar à parte produzir suas provas; (2) o Ministério Público não pode se beneficiar do instituto da inversão do ônus da prova, uma vez que, conforme destacado pelo ministro relator, o Ministério Público é entidade que "jamais pode ser considerada hipossuficiente, notadamente quando dotada de amplo poder investigatório de espectro administrativo pré-processual, cercando-se de vasto aparato técnico e jurídico para alcançar e reunir um conjunto probante para fazer frente ao ônus de prova estabelecido na lei de regência", e (3) "a inversão do ônus da prova como regra de procedimento ocorrerá quando forem verificados os requisitos cumulativos da verossimilhança das alegações do consumidor ou a sua hipossuficiência, os quais como visto, não estão presentes na hipótese por faltar ao órgão do Parquet a característica da inferioridade/fraqueza frente à parte adversa".

Estabelecida a moldura fático-jurídica do caso, passa-se a tecer as considerações a respeito do julgado em comento, em relação ao instituto da inversão do ônus da prova e o entendimento sedimentado no precedente em questão.

Como visto, três considerações mereceram a atenção do ministro relator ao proferir o julgamento do recurso. As duas primeiras constam na ementa do julgado, isto é, a inversão do ônus da prova como regra de instrução processual e a ausência de debilidade do Ministério Público a atrair a inversão do ônus da prova a seu favor quando atua como parte.

A terceira consideração — que causa mais preocupação — está no corpo do voto do relator, no sentido de que os requisitos para a inversão do ônus da prova são cumulativos, ou seja, deve a parte demonstrar, ao mesmo tempo, sua hipossuficiência para produzir a prova e a verossimilhança de suas alegações.

Quanto ao primeiro aspecto, a jurisprudência do STJ veio se firmando ao longo dos anos para considerar — de forma acertada, a nosso sentir — que o ônus da prova em favor do consumidor deve ser invertido em momento processual anterior à fase de produção de provas pelas partes, de modo que se preserve o direito fundamental ao contraditório e a ampla defesa, evitando-se surpresa para a parte sobre a qual vier a recair o encargo processual [1].

A respeito do tema, Leonardo Garcia lembra que o CDC, assim como CPC em vigor (§1° do artigo 373), e ao contrário do CPC/73, adotou a regra da distribuição dinâmica do ônus da prova, segundo a qual o juiz está autorizado atribuir o encargo probatório à parte que disponha de maior facilidade para realizar a prova do fato levado a juízo, liberando de tal ônus a parte que demonstre excessiva dificuldade para exercer o direito à prova [2].

Na mesma linha adotada pela ministra Nancy Andrighi em voto proferido no REsp 1084371/RJ, ao se distribuir o ônus da prova, deve-se considerar os princípios constitucionais da isonomia, do devido processo legal, do acesso à justiça e, na esfera da legislação processual, os princípios da solidariedade e da lealdade e boa-fé processual, além dos poderes instrutórios do juiz.

Sendo assim, parece-nos acertada a decisão quanto ao momento em que a inversão do ônus da prova deve ocorrer, respeitando-se todo o sistema de normas relacionadas aos deveres e garantias processuais atribuídos às partes no processo.

Passando-se à análise em torno da inversão do ônus da prova nas ações em que o Ministério Público promova a defesa coletiva de consumidores, há anos se insiste na tese de que o órgão ministerial não se enquadra no conceito hipossuficiente para que se beneficie do instituto processual. Na jurisprudência dos tribunais brasileiros há decisões tanto no sentido de não se estendê-la ao órgão ministerial quanto garantindo-a também ao MP.

Os precedentes encontrados no repertório de julgados do STJ sempre afirmaram que o órgão ministerial pode se beneficiar do instituto no âmbito das ações consumeristas.

Em voto proferido no AgInt no AREsp 1017611/AM, a ministra Assusete Magalhães, entre outros [3], citou trecho do voto do ministro Mauro Campbell Marques, no sentido de que "o Ministério Público, no âmbito de ação consumerista, faz jus à inversão do ônus da prova, a considerar que o mecanismo previsto no artigo 6º, inciso VIII, do CDC busca concretizar a melhor tutela processual possível dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos e de seus titulares — na espécie, os consumidores —, independentemente daqueles que figurem como autores ou réus na ação" (STJ, REsp, 1.253.672/RS, relator ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, 2ª TURMA, DJe de 09/08/2011).

Entretanto, no caso em comento o ministro relator, entendeu que os amplos poderes investigatórios do MP, aliados à efetiva existência de provas efetivamente produzidas nos autos, tornaram desnecessária a inversão do ônus da prova. Com efeito, em relação à efetiva existência de provas suficientes nos autos, não há sentido em se aplicar o instituto. Nesse sentido já foi decidido pela 4ª Turma do STJ, em julgado relatado pela ministra Maria Isabel Gallotti, que "a inversão do ônus probatório tem como pressuposto a verossimilhança da alegação ou a hipossuficiência do consumidor, conceito este ligado à dificuldade de produção da prova pelo consumidor e à possibilidade de sua produção pelo prestador do serviço. Não cabe atribuir ao fornecedor o ônus de comprovar o rompimento de contratos entre o consumidor e terceiros, fato que poderia ser comprovado com facilidade pelo autor" [4].

Todavia, causa certa preocupação que o foco da análise, nesta oportunidade, tenha se voltado ao MP e aos poderes que lhe são inerentes, e não à coletividade de consumidores, pois cria-se, assim, precedente para que os demais órgãos da jurisdição nacional passem a considerar um aspecto que, no entendimento deste autor, está dissociado do princípio da facilitação da defesa do consumidor, que fundamenta a inversão do ônus da prova em favor do sujeito vulnerável na relação de consumo.

Finalmente, passando-se ao terceiro ponto destacado, e que também consideramos preocupante, conforme exposto no corpo do acórdão, o ministro relator afirmou que os requisitos para a inversão do ônus da prova são cumulativos, estando assim redigida sua ponderação: "Certamente, a inversão do ônus da prova como regra de procedimento ocorrerá quando forem verificados os requisitos cumulativos da verossimilhança das alegações do consumidor ou a sua hipossuficiência, os quais como visto, não estão presentes na hipótese por faltar ao órgão do Parquet a característica da inferioridade/fraqueza frente à parte adversa".

Com absoluto respeito, discordamos do entendimento acima, alinhando-nos à lição de Bruno Miragem, ao afirmar que a inversão do ônus da prova condiciona-se à verificação, pelo juiz da causa, alternativamente, da hipossuficiência ou da verossimilhança das alegações [5].

Pois é exatamente o que a leitura do inciso VIII do artigo 6º do CDC reforça, uma vez que a conjunção alternativa "ou" deixa claro que, para que o juiz, a seu critério, inverta o ônus da prova, deverá observar a presença de um ou outro requisito: hipossuficiência do consumidor ou verossimilhança de suas alegações em juízo.

A reforçar o que aqui se sustenta, vale a transcrição literal da lição de André Gustavo Corrêa de Andrade, para quem "A hipossuficiência seria, portanto, condição aferível apenas dentro de uma relação de consumo concreta, na qual estivesse configurada situação de flagrante desequilíbrio, em detrimento do consumidor, de quem não seria razoável exigir, por extremamente dificultosa, a comprovação da veracidade do fato constitutivo de seu direito" [6].

O que se pode extrair da lição acima é que nem sempre ao consumidor será possível comprovar a veracidade do que alega em juízo, pois isso dependerá exatamente da inversão do ônus da prova com base apenas na demonstração de sua hipossuficiência. Disso decorre a preocupação causada pelos entendimentos doutrinários e decisões judiciais no sentido da cumulatividade dos requisitos etiquetados no inciso VIII do artigo 6º do CDC.

De seu turno, Humberto Teodoro Júnior também utiliza a conjunção alternativa "ou" em suas considerações sobre o tema, ao registrar que "Sem basear-se na verossimilhança das alegações do consumidor ou na sua hipossuficiência, a faculdade judicial não pode ser manejada em favor do consumidor, sob pena de configurar-se ato abusivo, com quebra do devido processo legal" [7].

Conforme dito ao longo deste estudo, o julgado ora comentado é preocupante sob dois dos três aspectos sobre os quais nos debruçamos. Se por um lado a turma julgadora acertou ao afirmar que a inversão do ônus da prova é regra de instrução, respeitando, assim, os princípios que regem o processo justo, de outro lado retirou do MP a possibilidade de se beneficiar da inversão, ao argumento de que não pode ser considerado hipossuficiente. Desse modo, a nosso sentir, o colegiado julgador voltou sua atenção muito mais a uma instituição do que aos sujeitos que por ela devem ser protegidos por força de lei. Igualmente, enfraquece-se a defesa do consumidor a interpretação levada a efeito pela turma no sentido de que hipossuficiência e verossimilhança das alegações devem estar simultaneamente presentes para que o ônus da prova seja invertido pelo juiz nas ações de consumo.

Considerando-se que se trata de julgamento proferido no âmbito do tribunal que tem por missão uniformizar o entendimento a respeito da legislação federal, e que suas decisões, embora não sejam vinculantes, influem substancialmente nas decisões tomadas pelos demais órgãos do Poder Judiciário, a confirmação de tal tendência importará em significativo retrocesso na defesa do consumidor em juízo.


[1] Nesse sentido, confira-se: REsp 1395254/SC, relatora ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe 29/11/2013; REsp 1476261/RS, relator ministro MOURA RIBEIRO, 3ª TURMA, julgado em 21/10/2014, DJe 03/11/2014; REsp 1395254/SC, relatora ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe 29/11/2013; AgRg no REsp 1450473/SC, relator ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, 2ª TURMA, julgado em 23/09/2014.

[2] GARCIA, Leonardo. Código de Defesa do Consumidor – Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional. 2ª ed., Salvador: Juspodivn, 2020, p. 198.

[3] No mesmo sentido, confira-se: REsp 1.790.814/PA, relator ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª TURMA, DJe de 19/06/2019; REsp 1253672/RS, relator ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, 2ª TURMA, julgado em 02/08/2011, DJe 09/08/2011; AgRg no REsp 1300588/RJ, relator ministro CESAR ASFOR ROCHA, 2ª TURMA, julgado em 03/05/2012, DJe 18/05/2012; AgInt no AREsp 1283969/RS, relator ministro SÉRGIO KUKINA, 1ª TURMA, julgado em 26/03/2019, DJe 02/04/2019.

[4] REsp 1141675/MG, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, DJe 19/12/2011.

[5] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 7ª ed. São Paulo: RT, 2018, p. 244.

[6] ANDRADE, André Gustavo C. A inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor: o momento em que se opera a inversão e outras questões. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, ano 12, n. 48. p. 89-14, outubro-dezembro 2003.

[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do Consumidor. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 134.

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