Direto do Carf

Capitalização de reservas de incentivos fiscais e o custo de aquisição das ações

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

17 de novembro de 2021, 8h00

O tema das subvenções de investimento já foi tratado em várias oportunidades nesta coluna [1], sempre com ênfase nos requisitos estabelecidos pela lei e pela jurisprudência do Carf para que esses valores pudessem ser excluídos da apuração do lucro real. Hoje, entretanto, abordaremos a questão por outro ângulo: o impacto da capitalização de reservas de incentivos fiscais sobre o custo de aquisição da participação societária detida por pessoas físicas.

Para posicionar o tema, deve-se pontuar que a capitalização de lucros e reservas é uma das modalidades de aumento de capital social, prevista no artigo 169 da Lei nº 6.404/76. Ela pode se dar pela alteração do valor nominal das ações ou pela distribuição das ações novas (ações bonificadas), correspondentes ao aumento, entre acionistas, na proporção do número de ações que possuírem.

Esclarecemos, de pronto, que a despeito da expressão "capitalizar" intuitivamente remeter à agregação de bens ou direitos ao capital, acrescendo-o, na capitalização de lucros acumulados inexiste variação patrimonial positiva na pessoa jurídica ou na pessoa física titular da participação societária. Há uma simples operação contábil e societária de remanejamento de valores que já compunham o patrimônio líquido da sociedade, sem ingresso de novos recursos.

A reserva de incentivos fiscais, por sua vez, foi uma conta de reserva de lucros acrescentada pela Lei nº 11.638/2008, que acrescentou o artigo 195-A à Lei n 6.404/76, alterando o registro contábil das subvenções governamentais, que até então eram contabilizadas em conta de reserva de capital, sem trânsito pelo resultado do exercício. Essa regra decorre do reconhecimento de que esses valores são receita para entidade beneficiada, e que podem (a critério da assembleia) ser destinados para essa conta de reserva. Vejamos o teor do artigo 195-A da Lei nº 6.404/76: "Artigo 195-A. A assembléia geral poderá, por proposta dos órgãos de administração, destinar para a reserva de incentivos fiscais a parcela do lucro líquido decorrente de doações ou subvenções governamentais para investimentos, que poderá ser excluída da base de cálculo do dividendo obrigatório (inciso I do caput do art. 202 desta Lei)".

Essa regra veio a adaptar a legislação contábil ao padrão IFRS, que reconhece as subvenções governamentais como itens de receita. Isso se deu por diversas razões: 1) ela é recebida de uma fonte que não os acionistas e deriva de ato de gestão em benefício da entidade, não tendo razão para ser creditada diretamente no patrimônio líquido (PL); 2) ela raramente é gratuita, pois a entidade ganha efetivamente essa receita quando cumpre as regras concedentes das subvenções e cumpre determinadas obrigações; e 3) assim como os tributos são despesas reconhecidas na demonstração do resultado, é lógico registrar a subvenção governamental que é, em essência, uma extensão da política fiscal, como receita na demonstração do resultado (item 15, Pronunciamento CPC 07 — Subvenção e Assistência Governamentais).

Pois bem, com a capitalização das reservas de lucros, há um impacto nominal sobre o valor de cada ação/quota detida pelos sócios. Esse impacto era regido pelo artigo 16, §3º, da Lei nº 7.713/88, que dispunha: "§ 3º. No caso de participação societária resultantes de aumento de capital por incorporação de lucros e reservas, que tenham sido tributados na forma do art. 36 desta Lei, o custo de aquisição é igual à parcela do lucro ou reserva capitalizado, que corresponder ao sócio ou acionista beneficiário".

É preciso, entretanto, compreender esse artigo no contexto normativo da época, no qual os sócios estavam sujeitos a um imposto de renda na fonte, à alíquota de 8%, calculado sobre o lucro líquido ajustado do exercício (artigo 35 e 36 da Lei nº 7.713/88). Desse modo, caso os lucros tivessem sido tributados na fonte, a sua capitalização geraria um aumento do custo de aquisição da participação, na proporção do lucro capitalizado, por outro lado, caso não houvesse referida tributação, o custo de aquisição seria zero.

Posteriormente, com o advento da Lei nº 9.249/95, que estabeleceu a isenção dos lucros ou dividendos apurados pelas empresas, o tratamento da capitalização das reservas de lucros foi unificado, conforme artigo 10, §1º, daquela lei: "§ 1º. No caso de quotas ou ações distribuídas em decorrência de aumento de capital por incorporação de lucros apurados, a partir do mês de janeiro de 1996, ou de reservas constituídas com esses lucros, o custo de aquisição será igual à parcela do lucro ou reserva capitalizado, que corresponder ao sócio ou acionista".

A regra foi categórica: qualquer incorporação ao capital social de lucros, ou reservas de lucros, impactará positivamente no custo de aquisição das participações societárias, a nível dos sócios ou acionistas. Por outro lado, o dispositivo deixa claro que as reservas de capital, se utilizadas para aumento do capital social, não impactarão o custo das ações/quotas.

Aqui nos parece residir o cerne da controvérsia: à época da edição a Lei nº 9.249/95, as subvenções e doações governamentais era escrituradas diretamente no PL, como reservas de capital, sem qualquer trânsito pelo resultado do exercício, de modo que eventual capitalização destas não afetaria o custo de aquisição das participações. Entretanto, com a Lei nº 11.638/2007, as subvenções governamentais passaram a ser expressamente reconhecidas como itens da receita, que afetavam o lucro líquido do exercício e que poderiam ser destinadas (a critério da assembleia geral) para a reserva de incentivos fiscais.

Com a alteração do tratamento contábil e jurídico das subvenções, qual deve ser o efeito da capitalização dessas reservas de incentivos fiscais sobre o custo de aquisição das participações?

No Acórdão nº 2401-005.250 [2], cujo fato gerador é posterior à Lei nº 11.638/2007, o relator afirma que somente o aumento de capital "mediante a incorporação de lucros ou de reservas constituídas com esses lucros possibilita o aumento do custo de aquisição da participação societária", mas por outro lado afirma que a reserva de incentivos fiscais não seria uma reserva de lucros, negando provimento ao recurso voluntário.

No Acórdão nº 2402-010.289 [3], seguiu-se exatamente a mesma linha, afirmando-se que tanto as reservas de capital quanto as de incentivos fiscais não afetariam o custo de aquisição das participações, por não serem reservas de lucros. O relator ainda invoca um suposto entendimento pacificado na Receita Federal, na Solução de Consulta nº 4.015 — SRRF04/Disit, de 26/8/2016 — entretanto, ao analisar a referida manifestação, observa-se que o consulente questionava sobre a capitalização de ágio pago na subscrição, que é registrado em uma reserva de capital, e não sobre a capitalização de reservas de incentivos fiscais (inclusive, a palavra "incentivo" sequer é mencionada na consulta).

Causa espécie esse entendimento, visto que o mesmo colegiado, em mais de uma oportunidade (e.g. Acórdão 2402-005.601 [4] e 2402-006.870 [5]), afirmou que as reservas de capital são constituídas com valores recebidos pela empresa e que não transitam pelo resultado, refletindo essencialmente as contribuições feitas pelos acionistas que estejam diretamente relacionadas à formação ou ao incremento do capital social, além de sustentar que "a Lei n. 6.404/1976 classifica como reservas de lucros as seguintes reservas: 1) reserva legal; 2) reservas estatutárias; 3) reservas para contingências; 4) reserva para incentivos fiscais; e 5) reserva de lucros a realizar".

No Acórdão nº 2201-003.955 [6] o fundamento aparece de modo um pouco mais desenvolvido. O relator reitera o entendimento de que "a reserva de incentivos fiscais não é constituída pelos lucros da empresa, mas sim por subvenções para investimento concedidas pelo governo à empresa". Entretanto, afirma na sequência que a subvenção deve transitar pela receita, "porém, quando da apuração do resultado do exercício, essa parcela é retirada do cômputo do lucro e passa a integrar a conta no PL". Ao final, conclui que "tal reserva não é abastecida com lucros da pessoa jurídica, mas sim com parcela das subvenções governamentais".

Com a devida vênia, há alguns erros conceituais aqui.

Em primeiro lugar, a empresa não é obrigada a retirar do lucro as subvenções, pelo contrário, o artigo 195-A é categórico em afirmar que ela "poderá", mediante deliberação assemblear. Caso assim ela não proceda, as subvenções serão computadas na base de dividendos, como todo o restante do lucro, mas por outro lado não gozará dos benefícios fiscais de IRPJ e CSLL (artigo 30 da Lei nº 12.973/14), que exigem esse registro.

Em segundo lugar, as subvenções são receita para a empresa, tanto contábil quanto juridicamente, e em razão disso contribuem para o lucro apurado no final do exercício. Tanto assim é, para além da dicção expressa do Pronunciamento CPC 07, que o artigo 1º, §3º, das Leis nº 10.637/02 e 10.833/03 excluem expressamente a subvenção de investimento do âmbito das receitas sujeitas ao PIS/Cofins não cumulativos.

Em terceiro lugar, e esse ponto é comum a todos os acórdãos analisados, não há qualquer base legal para considerar que a reserva de incentivos fiscais não seria uma reserva de lucros. Tampouco há fundamento para que se sustente que as subvenções governamentais não compõem o lucro da empresa.

Quando muito, pode-se reputar tal entendimento a um raciocínio enviesado por dois ângulos: 1) pelo tratamento dado às subvenções antes da Lei nº 11.638/07, quanto ainda eram tratadas como reservas de capital; e 2) por confundir a natureza contábil e jurídica das subvenções, reputando que estes não seriam lucro em razão da existência de uma previsão (contingente do atendimento de requisitos legais) de sua exclusão da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.

Todavia, atualmente, não há razões para sustentar isso, o que fica muito claro da leitura das decisões, que se limitam a proclamar esse fundamento da decisão, sem trazer razões que o sustente. Por outro lado, abundam referências legislativas em sentido contrário, pugnando a natureza de lucro a tais valores, e.g. 1) artigo 195-A da Lei nº 6.404/76: "a parcela do lucro líquido decorrente de doações ou subvenções"; 2) artigo 30 da Lei nº 12.973/2014: "desde que seja registrada em reserva de lucros a que se refere o art. 195-A da Lei nº 6.404/76" etc.

A lógica original do artigo 10, §1º da Lei nº 9.249/95, bem explicada no Acórdão nº 2802-003.285 [7], é evitar que as empresas distribuíssem todos os seus lucros aos sócios, de forma isenta, apenas para que fossem eventualmente reinvestidos, aumentando o valor da participação societária. Desse modo, capitalizando-se diretamente os lucros se alcançaria o mesmo efeito, aumentando o valor da ação/quota. Por outro lado, não há nada na legislação que estabeleça que a capitalização da reserva de incentivos fiscais, pelo simples fato de não ter sido submetida à tributação pelo IRPJ e CSLL (caso atendidos os requisitos legais), não estaria sujeita ao regime jurídico do artigo 10, §1º, da Lei nº 9.249/95 — um benefício não "neutraliza" o outro.

Não localizamos no Carf nenhum acórdão em sentido contrário, reconhecendo o aumento do custo de aquisição com a capitalização de reservas de incentivos fiscais. Não obstante, os fundamentos adotados pelas decisões desfavoráveis ao contribuinte, citadas anteriormente, não resistem, em nosso entender, a uma análise crítica.

O julgador não possui liberdade de livre estipulação do regime jurídico dos objetos que analisa. Pelo contrário, o enquadramento deve se dar de maneira fundamentada e, sobretudo, baseada em razões hauridas do Direito Positivo. Deve-se, sempre, buscar distinguir situações jurídicas distintas, estabelecendo o contraste que dará a tônica de uma decisão adequada para cada caso. Parafraseando a expressão popular, "uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa, e quando elas se misturam, nem sempre dá boa coisa".


[2] Rel. Cons. Rayd Santana Ferreira, j. 05/02/2018.

[3] Rel. Cons. Francisco Ibiapina Luz, j. 12/08/2021.

[4] Re. Cons. Luís Henrique Dias Lima, j. 13/08/2018.

[5] Rel. Cons. Maurício Righetti, j. 16/01/2019.

[6] Rel. Cons. Rodrigo Amorim, j. 03/11/2017.

[7] Rel. Cons. Ronnie Anderson, j. 20/01/2015.

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    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf e professor em cursos de pós-graduação.

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