Artigo na ConJur busca superioridade nas ironias e na ridicularização do adversário
17 de novembro de 2021, 10h53
Se um juiz precisa explicar o que disse na sua sentença, ele falhou como juiz. Por isso mesmo, prezo por uma linguagem simples e objetiva em minhas decisões; e qualquer indivíduo alfabetizado, portador de uma inteligência mediana, é capaz de lê-las e compreendê-las. Minhas sentenças se dirigem ao cidadão que é parte no processo: ele precisa entender por que seu pedido foi acolhido ou rejeitado, por que ele foi condenado ou absolvido. É possível que o sujeito discorde dos fundamentos das minhas decisões, mas é improvável que não os compreenda.
Dessa improbabilidade decorre a conclusão lógica: o artigo publicado por Lenio Luiz Streck e Martonio Mont'Alverne Barreto Lima não é fruto de uma genuína incompreensão do quanto decidido, mas sim uma deturpação intencional da sentença, uma atitude vil de tentar desqualificar quem proferiu uma decisão com a qual eles não concordam.
E não é muito difícil chegar a essa conclusão: basta perceber que os autores, em seu artigo, disseram que o juiz disse algo que não disse; e não disseram o que o juiz efetivamente disse. Ou seja: os argumentos da sentença não foram enfrentados; e, no lugar deles, os autores simplesmente inventaram falas, raciocínios e conclusões que o juiz jamais explicitou.
Assim, este direito de resposta não é exercido para explicar a sentença. A sentença é muitíssimo clara e não precisa de explicações. Este direito de resposta é exercido para apontar as mentiras factuais criadas por Lenio Luiz Streck e Martonio Mont'Alverne Barreto Lima.
O processo que gerou a discussão é simples. Um sujeito publicou um texto no Facebook basicamente negando a ocorrência do holocausto e foi então acusado de cometer o crime de racismo. A sentença decidiu que negar um fato histórico não é crime e absolveu o réu. Simples assim.
O próprio juiz negou a ocorrência do holocausto? Não. O juiz não negou o holocausto, ao contrário do que afirmaram Lenio e Martonio. O juiz apenas decidiu que negar o holocausto não é crime.
O juiz duvidou da ciência? Não. O juiz não duvidou da ciência, ao contrário do que afirmaram Lenio e Martonio. O juiz apenas decidiu que negar a ciência não é crime.
O juiz fez suas as palavras do réu? Não. O juiz não fez suas as palavras do réu, ao contrário do que afirmaram Lenio e Martonio. O juiz apenas citou argumentos expostos na defesa dos advogados do acusado — e o advogado não se confunde com o seu cliente.
O juiz disse que o terror do holocausto só atinge às sociedades alemã e austríaca? Não. O juiz não disse isso, ao contrário do que afirmaram Lenio e Martonio. O juiz apenas disse que, nesses locais, negar o holocausto pode até ser considerado crime — mas que no Brasil a mesma conduta não é crime.
O juiz duvida da ocorrência do holocausto? Não. O juiz não duvida, ao contrário do que afirmaram Lenio e Martonio. Quem duvidou foi o acusado. O juiz apenas decidiu que duvidar da ocorrência do holocausto não configura crime.
O juiz comparou a situação com alguém negar que o homem foi à Lua? Não, o juiz não fez essa comparação, ao contrário do que afirmaram Lenio e Martonio. O juiz apenas citou argumentos expostos na defesa dos advogados do acusado.
Quais foram, então, os argumentos efetivamente utilizados pelo juiz para absolver o acusado? O juiz decidiu que o acusado fez uso de seu direito à liberdade de expressão. Apontou que os que entendem que a liberdade de expressão possui relevância qualificada tenderão sempre a legitimar todo discurso que não traga, em si, risco imediato para terceiros. Ponderou que o acréscimo de novos e novos e novos (e novos…) requisitos para exercício "adequado" da liberdade de expressão findará, é claro, por eliminá-la. Afirmou que a liberdade de expressão existe justamente para que não haja quem possa dizer, com definitividade, o que é belo e o que não é, o que é sensato e o que é insensato, o que é amor e o que é ódio. Realçou que não se pode naturalizar a censura ou se admitir a perseguição penal daqueles que pensam o oposto de nós. Lembrou que o regime democrático pressupõe a multiplicidade de ideias, de valores, de crenças. Concluiu que em um autêntico regime democrático, as ideias ruins são combatidas pelas ideias boas, os maus argumentos enfrentados com os bons argumentos, a mentira superada pela verdade.
Ou seja: o processo basicamente discutiu sobre um tema jurídico conhecido, no caso, "os limites da liberdade de expressão". Há entendimentos jurídicos respeitáveis de ambos os lados. Há quem compreenda que a liberdade de expressão deva sofrer pouquíssimos limites (como os americanos). Há quem compreenda que a liberdade de expressão possa sofrer maiores restrições (como os europeus). O juiz se filiou à primeira corrente e absolveu o acusado, enquanto o órgão acusador se filiou à segunda corrente e pediu a condenação. Simples assim.
O ato de absolver um réu não deveria causar espanto, quanto mais de advogados, como é o caso de Lenio e Martonio. Eles, mais do que ninguém, sabem que a pessoa do réu não se confunde com a pessoa do advogado que o defende, tampouco com a pessoa do juiz que o julga. Comparar-me com nazistas por absolver um acusado de racismo é o mesmo que comparar Lenio e Martonio com os assaltantes, estupradores, pedófilos e corruptos que eles eventualmente defendam no exercício da função de advogado. Do mesmo modo que eles não podem ser acusados de serem cúmplices dos criminosos que defendem, eu não posso ser acusado de ser cúmplice do réu que absolvo.
Extraídas as mentiras factuais do artigo subscrito por Lenio e Martonio, restam apenas o pedantismo e a crítica pessoal vazia. Despido de substância, o texto busca compensação na afetação de superioridade, na acidez de ironias e na ridicularização do adversário. Há, é claro, quem aprecie esse tipo de conteúdo — e a elevada audiência de programas televisivos de baixaria bem demonstram isso. Mas o leitor atento e qualificado saberá sempre diferenciar o sábio do charlatão.
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