Opinião

Acordo de não persecução cível, um poder-dever do Ministério Público

Autor

  • Fernando Albuquerque

    é advogado atua em questões relacionadas às áreas do Direito Tributário e do Direito Administrativo-Econômico com ênfase em Contratações Públicas e Improbidade Administrativa e membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE.

17 de novembro de 2021, 6h32

Conforme intensas análises publicadas nas ultimas semanas, é perceptível que a Lei nº 14.230/2021 trouxe alterações substanciais ao texto da Lei nº 8.429/92, hodiernamente conhecida como Lei de Improbidade Administrativa (LIA), a qual classifica os atos de improbidade administrativa e estabelece regras processuais acerca da sua proteção e reparação.

Entre as mudanças advindas, destacamos neste esboço a problemática anteriormente introduzida pela Lei nº 13.964/2019 acerca da possibilidade da celebração de acordo de não persecução cível (ANPC), cuja redação primitiva do §1º do artigo 17 da LIA expressamente excluía tal possibilidade [1].

Distanciando-se da ideologia punitivista comum à cultura do litígio, temos de fácil visualização que a realização do ANPC objetiva a concretização efetiva da pacificação social através da consensualidade, tudo em estrito atendimento ao princípio da duração razoável do processo (CF/88, artigo 5º, inciso LXXVIII; CPC, artigos 4º e 6º).

Além disso, a utilização de tal método de solução alternativa de controvérsia se revela como instrumento bastante eficaz de política judiciária direcionada à gestão de contingente processual, à racionalização de recursos humanos e ao próprio orçamento do Judiciário.

Com efeito, o ANPC consiste em mecanismo de autocomposição através do qual é possível assegurar a proteção/reparação ao bem rurídico tutelado nas ações de improbidade administrativa mediante o alcance de, "ao menos", o ressarcimento do dano e a reversão da vantagem indevida à pessoa jurídica lesada (LIA, artigo 17-B, caput) [2].

Com o advento da Lei nº 14.230/2021, suprimiu-se as principais lacunas até então existentes na LIA acerca no ANPC, notadamente quanto à legitimidade para sua propositura, suas condições e limites, inclusive quanto à admissibilidade da sua realização nas ações em curso (LIA, artigo 17-B, §4º).

Outrossim, resta dúvida compreensível: se a proposição do ANPC consiste em faculdade do Ministério Público (único legitimado ativo) ou se direito subjetivo do acusado.

Muito embora a redação do artigo 17-B da LIA induza pela aparente não obrigatoriedade do oferecimento do ANPC através do emprego do verbete "poderá", é preciso ter em mente que, pelas regras de hermenêutica jurídica amplamente (re)conhecidas, a interpretação gramatical consiste em mero ponto de partida para a interpretação da norma através de acepções vocabulares, mas quais podem se revelar como método insuficiente, de sorte que que deve ser confirmada por outros critérios de intepretação, sobretudo através da sua indissociável interpretação finalística [3].

Partindo desse último critério — interpretação finalística —, temos que o ANPC advém na seara jurídica como garantia de pacificação social e da duração razoável do processo, bem como medida eficaz de política judiciária, de modo que a interpretação da norma deve direcionar para o atendimento de tal propósito.

Adotado tal norte, e a partir da semântica do próprio verbete "poderá", observa-se que este comporta o significado de "admitirá" — parafraseando: administrar-se-á a celebração de acordão de não persecução cível para proteção e reparação dos bens jurídicos tutelados pela LIA — pois ambos os vocábulos confluem para o sentido de "capacidade" e "aceitação" da celebração do ANPC acerca das questões envolvendo atos de improbidade administrativa — em oposição à vedação legal anteriormente existente, tudo a depender das "circunstâncias do caso concreto" (LIA, artigo 17-B).

Por outro lado, o entendimento divergente — segundo o qual a proposição se trataria de mera "faculdade" — importaria em comprometimento ao princípio da eficiência — aqui voltado à atividade legislativa, posto que se admitiria a restrição injustificada ao alcance finalístico da norma e até mesmo dando azo à sua possível inutilidade.

O oferecimento do ANPC consiste em um inequívoco poder/dever, posto que, uma vez admissível a sua propositura ("conforme as circunstâncias do caso concreto"), o Ministério Público assim deve proceder, sob pena de antijuridicidade da omissão caracterizada pelo abuso de direito (CC/2002, artigo 187), e até mesmo em má-fé processual por resistência injustificada à obtenção da consensualidade (CPC, artigo 80, inciso IV, c/c artigo 334) para a resolução do mérito e ainda em violação ao dever de isenção e imparcialidade do Ministério Público [4] [5], tudo com risco de paradoxalmente atentar contra a resolução do mérito caso in fine se consuma a prescrição.

Em segundo plano, temos ainda que a Solução Consensual de Conflitos está inserida entre as "Normas Fundamentais do Processo Civil" [6] e, tal como, é dever do Estado promove-la (CPC, artigo 3º, §2º), cujos mecanismos "deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público" (CPC, artigo 3º, §3º), cabendo a todos os sujeitos do processo cooperarem entre si para alcançar tal propósito (CPC, artigo 6º) e os benefícios advindos desta [7], sendo esta ainda a missão institucionalizada tanto pelo Conselho Nacional do Ministério Público e pelo Conselho Nacional de Justiça ao aprovarem a Resolução nº 179/2017 [8] e a Resolução nº 125/2010 [9], respectivamente.

Associado a todo esse contexto, do qual se traduz que o poder/dever de oferecimento do ANPC, temos ainda de analisar os efeitos jurídicos-processuais de tal eventual recusa injustificada da sua proposição, isso porque a percepção de "justa causa" — indispensável ao prosseguimento de demandas próprias ao Direito Público Sancionador — não pode e nem deve se limitar à demonstração perfunctória de eventual autoria e materialidade do suposto ato improbo, mas, igualmente, à demonstração de sua relevância jurídica-social [10] e do efetivo interesse jurídico (CPC, artigo 17) — leia-se: resultado útil e necessário — na propositura/prosseguimento diante da possibilidade da adoção de outras medidas cabíveis e suficientes à proteção/reparação do bem jurídico tutelado 11], tudo em estrita observância ao princípio da intervenção mínima [12].

Dessa forma, eventual recusa quanto ao oferecimento do ANPC deve ser subsidiada através fundamentação idônea e sempre fundada nas "circunstâncias do caso concreto", sendo vedada alegações genéricas e abstratas, bem como a imposição de condições exorbitantes que caracterizem/redundem em abuso de poder e/ou recusa indireta.

Em suma: a recusa injustificada acerca do oferecimento do ANPC — ainda que indireta, caracteriza abuso de poder (ato ilícito), má-fé processual (resistência injustificada a uma das etapas processuais) e ato atentatório aos próprios bens jurídicos tutelados (caso resulte em prescrição), além de demonstrar a ausência de interesse processual diante da existência de medida jurídica eficiente e capaz de proteger/recuperar o bem jurídico tutelado, de modo que, em tais situações, a ação dever ser rejeitada liminarmente ou ter negado o seu prosseguimento, conforme determinam os artigos 330, inciso III e 485, inciso VI.


[1] Inclusive, tal Acordo poderá ser concretizado por meio do compromisso de ajustamento de conduta de que trata a Resolução CNMP nº 179/2017: "Artigo 1º § 2º — É cabível o compromisso de ajustamento de conduta nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa, sem prejuízo do ressarcimento ao erário e da aplicação de uma ou algumas das sanções previstas em lei, de acordo com a conduta ou o ato praticado. // Artigo 3º — O compromisso de ajustamento de conduta será tomado em qualquer fase da investigação, nos autos de inquérito civil ou procedimento correlato, ou no curso da ação judicial, devendo conter obrigações certas, líquidas e exigíveis, salvo peculiaridades do caso concreto, e ser assinado pelo órgão do Ministério Público e pelo compromissário".

[2] Pressuposto este quando houver enriquecimento ilícito (LIA, artigo 9º) e/ou dano ao erário (LIA, artigo 10).

[3] Lindb, "Artigo 5º – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

[4] A Missão Protetiva e a Função Acusatória conferidas ao Ministério Público não excluem a sua função/missão de custos legis, todas derivadas no artigo 127 da Constituição Federal, devendo todas se harmonizar entre si.

[5] A teor dos artigos 145, §1º, e 148, inciso I, do CPC, aplicam-se aos membros do Ministério Público os mesmos motivos de suspeição de magistrados, inclusive as de foro íntimo.

[6] CPC, TÍTULO ÚNICO, CAPÍTULO I: DAS NORMAS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO CIVIL.

[7] "As consensualidades tornaram-se decisivas para as democracias contemporâneas, pois contribuem para aprimorar a governabilidade (eficiência); propiciam mais freios contra o abuso (legalidade); garantem a atenção a todos os interesses (justiça); proporcionam decisão mais sábia e prudente (legitimidade); desenvolvem a responsabilidade das pessoas (civismo); e tornam os comandos estatais mais aceitáveis e facilmente obedecidos (ordem)." MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. Apud SALOMÃO, Luis Felipe. DRUMOND, Mônica. Métodos online de resolução de litígios. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/metodos-online-de-resolucao-de-litigios/. Acesso em 10/11/2021.

[8] Considerando a acentuada utilidade do compromisso de ajustamento de conduta como instrumento de redução da litigiosidade, visto que evita a judicialização por meio da autocomposição dos conflitos e controvérsias envolvendo os direitos de cuja defesa é incumbido o Ministério Público e, por consequência, contribui decisivamente para o acesso à justiça em sua visão contemporânea; Considerando a conveniência institucional de estimular a atuação resolutiva e proativa dos membros do Ministério Público para promoção da justiça e redução da litigiosidade;

[9] Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. (…) CONSIDERANDO a necessidade de se consolidar uma política pública permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios; CONSIDERANDO que a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já implementados no país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças; CONSIDERANDO ser imprescindível estimular, apoiar e difundir a sistematização e o aprimoramento das práticas já adotadas pelos tribunais;

[10] Quanto aos atos de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública: LIA, artigo 11. § 4º Os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento e independem do reconhecimento da produção de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes públicos.

[11] Por analogia: Lindb, "Artigo 20 – Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas".

[12] Analogamente: "O paradigma penal das sociedades democráticas do nosso tempo consubstancia-se na função exclusiva do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídicos-penais" (DIAS, Jorge de Figueiredo Dias. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. 2ª ed. Coimbra: Coimbra, 2007, p.133-134).

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