Opinião

A questão da verdade: o gambito judiciário ou um sistema de justiça criminal?

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16 de novembro de 2021, 10h19

O título do presente artigo é bastante intrigante e sugestivo. Afinal de contas, a questão da verdade sempre acarretou polêmica na literatura jurídica, legitimando até mesmo abusos em determinados períodos históricos.[1] Nada obstante, não se pretende, nesse curto espaço, solucionar uma incógnita que remete a milênios, mas sim enfrentá-la sob uma perspectiva dualista: o processo é dirigido à descoberta da verdade ou à construção dela?

Para dirimir tal questão, primeiro é preciso compreender a processualidade enquanto método de racionalização do poder[2] e, mais que isso, instrumento de verificação do desvio punível para fins de consecução dos objetivos do direito como um todo[3], em especial o penal.[4] De toda sorte, a perspectiva pela qual a atividade processual vai se desenvolver é sempre uma questão ontológica, na medida em que, além das diretrizes do direito positivo, sua própria natureza impõe um horizonte de projeção sem o qual não pode se propagar.[5]

Assim, há que se retornar a uma questão consequentemente anterior e ainda mais problemática: a teoria geral do processo.[6]

De acordo com Cândido Dinamarco[7] o núcleo fundante da processualidade é o exercício de poder, ou seja, seu ponto central está na imperatividade de suas decisões, o que irradia efeito para toda sua concepção científica.[8] Assim, como método dirigido à decisão, e, sendo esta sempre uma escolha,[9] é possível concluir que o processo tem pretensões políticas,[10] e, por outro lado, sendo a justiça uma expressão política, concluímos que esta é uma finalidade do processo.

Viu-se destarte que o exercício do poder jurisdicional se dá por meio do processo, que tem um escopo político de preferir decisões justas a injustas; agora chegou o momento de compreender como o procedimento é alinhado ao cumprimento de tais objetivos.

Num primeiro momento, falou-se que o processo era uma relação jurídica que interligava todos os atores processuais em uma relação distinta daquela de direito material sob a qual se orientava a pretensão do autor.[11] Essa relação era triangular entre autor, juiz, réu, mas ao mesmo tempo estática, razão pela qual foi alvo de inúmeras críticas, sendo a mais ferrenha delas de James Goldschmidt[12], que concebeu a teoria do processo como situação jurídica: uma relação contínua que vai se alterando em relação a cada ator de acordo com a liberação de suas respectivas cargas processuais.

Tais teorias, embora em certa medida sejam capazes de conceituar o processo, não são eficazes em orientá-lo à decisão final justa, porquanto despidas de qualquer pretensão político-sociais e, por conseguinte, abstratas em demasia.

Ademais, nem a teoria da relação jurídica ou da situação jurídica são capazes de existir por si só acaso o procedimento não permita o contraditório, razão pela qual se entende a concepção de processo na definição dada por Fazzalari[13] como a mais adequada. Para o autor, o processo é identificado e assim "denominado" em função do ato final que a ele põe fim, de sorte que os pressupostos de tal ato estão no contraditório, notadamente porque é a melhor forma de contrapor as posições de fato para fins de se fazer a melhor escolha racional sobre os fatos verdadeiros.[14] Aliás, foi Calamandrei[15] quem chamou o processo penal nazista de processo sem processo justamente pela ausência de contraditório.

Feitas essas observações, é preciso destacar que não se pode "considerar justa uma sentença que não tenha sido precedida de um processo que aspire a uma correta verificação dos fatos."[16] Logo, a verdade é relevante para a escorreita aplicação da justiça; não fosse assim, a atividade probatória seria de todo inútil e nenhum óbice existiria à resolução dos processos por meios irracionais, como os ordálios[17]. Em outras palavras "não se poderia conceber uma sentença justa que não estivesse amparada pela preocupação de uma verificação correta dos fatos."[18]

Com efeito, a "a função do processo penal não pode ser outra que aquela de averiguar se é verdadeiro ou falso o enunciado formulado pela acusação"[19], para tanto, embora não se conceba um conceito ingênuo ou uma ambição[20] de verdade, ela deve servir de parâmetro para a reconstrução dos fatos, sob pena do processo tornar-se um simples joguete à disposição das partes (um gambito judicial).

 Com isso, pretende-se indicar que, embora imprescindível o estrito respeito às regras constitucionais e legais (vedando-se, ilustrativamente, a prova ilícita, a gestão da prova pelo julgador etc.), a verdade consubstancia um referencial para o Julgador na atuação processual. Nessa perspectiva, não estaria o magistrado autorizado a indeferir requerimentos probatórios defensivos que objetivem a refutação da hipótese acusatória – a demonstração de um álibi, por exemplo sob a justificativa de que o acusado é presumido inocente e o ônus probatório recai sobre o Ministério Público.

Por essa razão, é preocupante a inclusão de diversos mecanismos consensuais no processo penal, conquanto a verdade não pode ser produto de um acordo das partes.[21]

Nesse sentido, quando se busca a aplicação imediata da pena por mecanismos consensuais "a imposição da pena não é fruto de uma prévia verificação dos fatos, mas de um acordo."[22] Trata-se, por elementar, de uma abreviação do procedimento com vistas ao triunfo da vontade das partes em detrimento do exame exauriente do processo que, diga-se de passagem, é sempre contentor de um risco em si mesmo.[23]

Outra questão derivada da ampliação dos espaços de consenso na justiça criminal, e já observado pela doutrina, é que o cenário no Brasil pode ser denominado de administrativização da justiça criminal ou das sanções penais, mormente quando se observa que, na prática, acordos passaram incluir benefícios distintos daqueles estabelecidos em lei e até autorizar o início da execução da pena antes da condenação, baseado apenas no consentimento do acusado,[24] o que constitui outro aspecto do gambito judiciário que se está por legitimar.

Da mesma forma, o acordo de não persecução penal passou a prever a necessidade de confissão circunstancial do investigado (art. 28-A, CPP), o que, na práxis jurídica, pode conduzir a falsas confissões a pretexto de preencher o requisito para a formalização do acordo, mas em completo desprezo ao referencial de verdade que deveria pautar o processo penal[25].

Diante disso, retomando-se o problema de pesquisa proposto, é possível afirmar que o processo objetiva a reconstrução da verdade dos fatos observadas as limitações constitucionais e legais incidentes nesse percurso, no entanto, essa finalidade pode ser deturpada com a inserção de mecanismos de consenso no processo penal, transformando o sistema de justiça criminal em simples burocracia que almeja a diminuição da quantidade de processos ainda que isso custe a submissão de inocentes ao cumprimento de condições e ajustes semelhantes a uma sanção criminal.

 

 

Luiz Antonio Inocente

Mestrando em Ciências Jurídicas pela UniCesumar. Pós Graduando em Direito Penal e Criminologia pela PUCRS.  Advogado.

 

Luiz Antonio Borri

Mestre em Ciências Jurídicas pela Unicesumar.

Professor de Direito Penal da Unicesumar. Advogado.

 

 


[1] ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição espanhola e seu processo criminal: as instruções de Torquemada e Vadés. Curitiba: Juruá, 2011.

[2] DINAMARCO, Cândido Rangel de. A instrumentalidade do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 67 e ss.

[3] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado da ação Rescisória: das sentenças e de outras decisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 91.

[4] Diz-se em especial o penal porque o processo penal é o meio para chegar legitimamente à pena: FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Temis, 1989. p. 537.

[5] Por isso que, a despeito de diversas teorias sobre a natureza jurídica do processo, todas elas têm em comum a triangularidade da relação, seja a relação jurídica, situação jurídica ou mesmo o procedimento em contraditório. Para confirmar essa assertiva, basta compreender que nos regimes totalitários não existiu a instituição do processo na medida em que a relação entre o ato de poder e o subordinado a ele sempre foi unilateral e impassível de crítica ou alteridade, por exemplo no direito penal nazista cf. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Doutrina penal nazista: A dogmática penal alemã entre 1933-1945. São Paulo: Tirant Lo Blanc, 2019.

[6] Na doutrina, afirmando a inexistência de uma teoria geral: LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

[7] DINAMARCO, Cândido Rangel de. A instrumentalidade do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 98 e ss.

[8] Não se cogita no presente artigo da relação jurídica como ponto fundante do processo, porquanto trata-se de conceito incompleto para compreensão da magnitude do tema processo. De toda sorte, a relação jurídica aqui destacada é aquela que envolve as partes como núcleo fundante do processo, não propriamente da teoria da relação jurídica processual que diferencia a relação entre partes e entre essas e o direito posto em juízo. Sobre a primeira cf. MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito privado. t. 1. 2. ed. São Paulo: BookSeller, 2000, p. 169 e ss. No tocante a última cf. BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. Campinas: LZN, 2005, p. 6 e ss.

[9] CALAMANDREI. CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. T. 1. Campinas: BookSeller, 2004, p. 236.

[10] Nesse sentido cf. DINAMARCO, Cândido Rangel de. A instrumentalidade do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 168 e ss.

[11] É o trabalho de BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. Campinas: LZN, 2005. Cumpre destacar que havia outras teorias quando Bülow sistematizou a teoria dos pressupostos processuais, mas estas por sua total inaptidão são hoje lembradas apenas a pretexto histórico: processo como contrato, processo como quase contrato, etc.

[12] GOLDSCHMIDT, James. Problemas jurídicos e políticos do processo penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 54 e ss. GOLDSCHMIDT, James. Teoria geral do processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 114 e ss.

[13] FAZZALARI, Élio. Instituições de direito processual. Campinas: BookSeller, 2006, p. 126.

[14] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Em sentido muito próximo: CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. T. 1. Campinas: BookSeller, 2004, p. 236.

[15] Em outros termos, um mero procedimento: CALAMANDREI, Pierro. Processo e democracia. Mauro Fonseca Andrade (trad.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 85.

[16] BADARÓ, Gustavo. Provas atípicas e provas anômalas: inadmissibilidade da substituição da prova testemunhal pela juntada de declarações escritas de quem poderia ser testemunha. In: YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício Zanoide de (orgs). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ Editora, 2005. p. 342. Para Janaina Matida e Rachel Herdy “a verdade desempenha o papel de um ideal regulativo no direito: nem sempre possível, mas sempre desejado.” (As inferências probatórias: compromissos epistêmicos, normativos e interpretativos In: CUNHA, José Ricardo (Org). Epistemologias críticas do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 211).

[17] BADARÓ, Gustavo H. Editorial dossiê “Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos”. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 46, jan./abr. 2018. Em estudo específico sobre os ordálios como meio de prova na administração da justiça no reinado de Carlos Magno (768-814), Milene Chavez Goffar Majzoub Bercovici esclarece que, embora para historiadores do direito os ordálios sejam classificados como provas irracionais, a partir de 1970 há uma profusão de estudos, especialmente no direito anglo-saxão e, desde então, tem havido esforços para reavaliar a historiografia dos ordálios para qualificá-los como racionais (Juízos de Deus e Justiça e Justiça Real no Direito Carolíngio – Estudo sobre a aplicação dos ordálios à época de Carlos Magno (768-814). São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 26-33).

[18] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT. 1997. p. 54.

[19] FERRUA, Paolo. Gênese da reforma constitucional do “giusto processo” na Itália. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 3, n. 2, p. 673, mai./ago. 2017. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v3i2.61.

[20] “a ambição da verdade historicamente se mostrou danosa aos interesses do acusado e, logo, por excelência contrária às exigências e contenção do poder punitivo que devem pautar o instrumental processual penal.” (KHALED JR, Salah H. O caráter alucinatório da evidência e o sentido da atividade probatória: rompendo com a herança inquisitória e a filosofia da consciência. In: PEREIRA, Flávio Cardoso. Verdade e prova no processo penal – Estudos em homenagem ao professor Michele Taruffo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016. p. 295).

[21] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 148

[22] BADARÓ, Gustavo. Epistemologia Judiciária e prova penal. São Paulo: RT, 2019. p. 62.

[23] GOLDSCHMIDT, James. Problemas jurídicos e políticos do processo penal. Mauro Fonseca Andrade e Mateus Marquies (Trad.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 52-53.

[24] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada e negociação na justiça criminal brasileira: acordos para aplicação de sanção penal consentida pelo réu no processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 166, ano 28, p. 241-271, São Paulo: RT, abril/2020.

[25] Não se desconhece que a própria legislação buscou evitar a propositura de acordos sem suporte probatório mínimo da existência de crime e da respectiva autoria impondo o seu cabimento apenas quando não for o caso de arquivamento da investigação, contudo, ainda subsistem muitas dúvidas sobre o controle jurisdicional em relação ao substrato probatório, notadamente diante da limitação do cabimento de habeas corpus quando aceito o acordo de não persecução penal cf. HC 612.449-SP, Ministro FELIX FISCHER, 15/12/2020. Admitindo o cabimento do habeas corpus mesmo após a celebração do acordo de não persecução penal cf. SILVA, Franklyn Roger Alves. A postura da defesa nos acordos de não persecução penal. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2021-jan-12/tribuna-defensoria-postura-defesa-acordos-nao-persecucao-penal>. Acesso em 04.02.2021; SOARES, Rafael Junior; BORRI, Luiz Antonio; BATTINI, Lucas Andrey. Breves considerações sobre o acordo de não persecução penal. Revista do Instituto de Ciências Penais, vol. 5, dez-maio, 2020, p. 217.

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