Opinião

A sucumbência na seara trabalhista à luz da atuação com perspectiva de gênero

Autor

  • Joana Rêgo Silva Rodrigues

    é mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador (Ucsal) professora e coordenadora da pós em Direito das Mulheres na mesma instituição advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho com enfoque no Direito Antidiscriminatório e com perspectiva interseccional de gênero conselheira seccional e membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB Bahia na gestão 2022/24 e orientadora do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (Ibadfem).

16 de novembro de 2021, 7h13

Na última quinta-feira (11/11)  a Lei 13.467/17, conhecida como Reforma Trabalhista, fez quatro anos de vigência. A legislação foi aprovada a toque de caixa pelo Congresso Nacional, sob a falsa promessa de "modernização" e de geração de empregos, o que, sabe-se, definitivamente não aconteceu. A renda dos trabalhadores encolheu, a insegurança jurídica aumentou e o efeito colateral que foi premeditado por muito juristas se concretizou: a intensa precarização do trabalho e o massacre da cidadania (direitos humanos, sociais e trabalhistas) da classe trabalhadora e o afastamento desses trabalhadores e trabalhadoras da justiça do trabalho.

Sobre esse último item, mais recentemente, um dos principais e piores temas da reforma foi levado à discussão no STF e, apesar de em muitos momentos este setor do Judiciário atuar como cúmplice desse processo precarizante, no caso, proferiu uma decisão festejada pelos trabalhadores. O STF, ao julgar a ADI 5.766 em outubro de 2021, afastou a constitucionalidade de três dispositivos (artigo 790-B caput, o § 4º do artigo 790-B e o § 4º do artigo 791-A da CLT) prejudiciais ao acesso à Justiça inseridos com a Lei 13.467/2017.

A decisão pode ser considerada uma vitória aos trabalhadores, visto que sabemos que o risco de ter que arcar com ônus (honorários advocatícios e honorários periciais) advindos de uma condenação levou à expulsão da apreciação do Judiciário, ao longo desses últimos quatro anos, diversas situações-lide que poderiam ensejar direitos e conquistas da classe trabalhadora.

Para além disso, muitas teses jurídicas deixaram de ser suscitadas em processos e casos complexos (reparações individuais), que demandam um cuidado minucioso em relação aos aspectos probatórios,  e que também foram muitas vezes afastados da Justiça do Trabalho.

É exatamente o caso das ações que demandam uma atuação com perspectiva de gênero. Vale registrar que o que determina se um processo deve ou não aplicar a perspectiva de gênero é a existência de situações assimétricas de poder ou de contexto de desigualdade estrutural baseado em sexo, gênero ou as preferências e orientações sexuais das pessoas, em geral muito frequentes nas relações de trabalho. 

Nas palavras de Vanessa Karam, juíza que participou da elaboração do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, publicado em outubro pelo CNJ, a aplicação da perspectiva de gênero no exercício argumentativo de quem aplica a justiça é uma forma de garantir o direito à igualdade e de fazer com que se manifeste como princípio fundamental na busca por soluções justas. Segundo Vanessa, isso impacta nas pessoas, na consecução de seus projetos de vida e na caracterização do Estado como garantidor desses ditos projetos.

O Protocolo é um importantíssimo documento construído por um Grupo de Trabalho formado por 21 representantes dos diferentes ramos da Justiça e da academia, instituído pela Portaria nº 27, de 27 de fevereiro de 2021, e complementado pela Portaria nº 116, de 12 de abril de 2021, ambas do Conselho Nacional de Justiça. Esse documento tem por objetivo primordial reunir esforços no sentido de alcançar a superação dos percalços que impossibilita a percepção de uma igual dignidade entre mulheres e homens, em todos os cenários, buscando elaborar uma diretriz no ambiente judicial, diante da própria dimensão do conceito de acesso à justiça.

Ocorre que o a prestação jurisdicional com perspectiva de gênero requer também uma atuação com perspectiva de gênero, uma atuação propositiva da advocacia. E para isso é necessário construir teses jurídicas novas, muitas vezes respaldadas, para além da nossa Constituição Federal, em normativas internacionais do sistema ONU e sistema Interamericano, (a exemplo da Convenção sobre eliminação de todas as formas discriminação contra mulher  CEDAW; Convenção de Belém do Pará ou Convenção Interamericana para prevenir punir e erradicar a violência contra mulher e outros protocolos categorizados no âmbito internacional) sem qualquer garantia de que serão analisadas com seriedade e acolhidas por esse mesmo Poder Judiciário que, a partir da manutenção de medidas aparentemente neutras, tantas vezes legitima e reforça discriminações e preconceitos de gênero, raça e classe.

Ações que envolvem violência de gênero (assim reconhecidas pela CEDAW e mais recentemente pela Convenção 190, a qual ainda não foi ratificada pelo Estado brasileiro) no ambiente de trabalho, a exemplo de assédio moral e assédio sexual, foram infinitas vezes evitadas durante esses quatro últimos anos. Objeto de desistência ainda nos escritórios ao perceberem, advogadas/os e clientes, a hipossuficiência probatória tão peculiar em casos como esses e ao calcular o risco de mesmo humilhadas, revitimizadas em um sistema de justiça frequentemente sem preparo para lidar com essas causas, ainda assim terem que pagar honorários para os advogados dos seus/suas respectivos agressores.

Por tudo isso que o julgamento da ADI 5.766 foi de suma importância para quem atua e consequentemente para quem deve julgar com perspectiva de gênero na Justiça do Trabalho. Permitindo que novas teses, advindas das complexidades do nosso tempo e do processo de desnaturalização das violências, adentrem a esfera do judiciário para lutar contra assimetrias de gênero pré-existentes na sociedade e comportamentos patriarcais, que ainda marcam as relações sociais e trabalhistas no nosso país.

 A decisão do STF resgata a eficácia concreta do direito fundamental do acesso à justiça e a dignidade daqueles que têm, na Justiça do Trabalho, a última trincheira na luta pelos seus direitos, tão rotineira e habitualmente violados, com destaque para as mulheres, que são sempre majoritariamente vítimas do sistema de opressão de gênero, inclusive dentro do judiciário.

Autores

  • é advogada trabalhista, mestra em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica de Salvador, pesquisadora-membra do grupo NET - Núcleo de Estudos do Trabalho pela mesma Instituição, coordenadora do Grupo de Pesquisa Direito do Trabalho da Mulher, pela LAEJU/BA, especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo JusPodivm, pós-graduanda em Direito e Compliance Trabalhista pelo IEPREEV, professora da UCSal e da Multipla Difusão de Conhecimento, presidente da Comissão Especial de Apoio aos Professores da OAB, membra da Comissão da Mulher Advogada da OAB Bahia e conselheira e diretora de Comunicação da ABAT.

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