Público & Pragmático

O uso dos métodos consensuais na Administração Pública do Poder Judiciário

Autores

  • Gustavo Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

  • Otavio Venturini

    é consultor jurídico professor universitário doutorando e mestre em Direito pela Fundação Getulio Vargas-SP presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade) e advogado com destacada atuação em temas de direito público corporativo e compliance.

14 de novembro de 2021, 8h00

Firmou-se, a partir da Constituição Federal de 1988, e, sobretudo, após as edições de leis de codificação do processo administrativo no final da década de 1990, uma transição de paradigma metodológico na atividade administrativa no Brasil, com a valorização da dimensão processual e guinada para o consensualismo [1]. Isto é, se em um passado não muito remoto a atividade da Administração Pública era centrada em decisões unilaterais e impositivas, tem-se cada vez mais acentuado o caráter dinâmico do processo decisório, a multilateralidade e a abertura de espaços de concertação, inclusive para acordos substitutivos de decisão administrativa sancionatória, em que a função corretiva do poder público prepondera sobre postura meramente punitivista [2].

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Essa mudança de paradigma foi ratificada por recentes e importantes marcos normativos, como as modificações na Lindb promovidas pela Lei nº 13.655/18 e o sistema de Justiça multiportas estabelecido pelo §2º do artigo 3º do Código de Processo Civil em 2015, além das Leis de Arbitragem (Lei nº 9.307/96, modificada pela Lei nº 13.129/15) e de Mediação e Autocomposição Administrativa (Lei nº 13.140/15) [3]. No ano de 2021, um novo passo fundamental foi dado para consolidação do emprego dos Métodos Adequados de Solução de Conflitos (Mascs) pela Administração Pública, com a publicação da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei Federal nº 14.133/21) e a sua explicitação em capítulo específico no que tange à prevenção e resolução de controvérsias no âmbito das contrações públicas.

Todavia, se, por um lado, não restam dúvidas quanto à evolução da concepção das práticas administrativas no emprego dos Mascs — corroborada por farta legislação, doutrina e jurisprudência [4] —, a efetiva mudança de cultura e aplicação desses instrumentos pelas administrações públicas de diversos entes da federação e esferas de poder ainda caminha a passos lentos. Há muito o que se avançar em termos de consolidação de boas práticas e maior institucionalização dos Mascs, o que deve ser realizado por meio da edição de atos administrativos normativos próprios e capazes de disciplinar esses mecanismos, adequando-os às peculiaridades de perfil e atuação administrativa de cada órgão ou entidade, bem como conferindo-lhes previsibilidade, segurança jurídica e efetividade.

Digna de nota nesse movimento de efetivação dos Mascs no âmbito das administrações foi a iniciativa do CNJ, por meio da Resolução nº 125/2010, pioneira no desiderato de buscar a institucionalização de uma política pública de incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios no âmbito do Poder Judiciário [5]. Trata-se de medida que tem sido acompanhada de ações concretas [6] e sugestões de regulamentação e recomendação [7] já em tramitação tendentes à melhoria da eficiência e eficácia da aplicação dos Mascs na atuação administrativa do Poder Judiciário, a demonstrar o pioneirismo do órgão na regulamentação do tema. Tendo como pano de fundo a pandemia da Covid-19, o CNJ editou a Recomendação nº 100, de 16/6/2021, estimulando o uso de métodos consensuais que versem sobre o direito à saúde.

Ora, o momento revela-se oportuno para novos avanços no aprimoramento do emprego dos Mascs pelo Poder Judiciário a serem espelhados por outras administrações, em prol da prevenção e desjudicialização dos litígios públicos. Sobretudo, em razão da já mencionada consagração dos Mascs como via preferencial para solução de controvérsias contratuais pela nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei federal nº 14.133/21), notadamente nos seus artigos 151 a 154. Uma resposta que procura refletir o inegável impacto das relações contratuais como fonte de inúmeras controvérsias e litígios de particulares com as Administrações Públicas.

A solução preconizada pela Lei Federal nº 14.133/21 se perfaz em torno dos chamados "acordos autocompositivos endocontratuais" [8], que: 1) são resultados possíveis da adoção em tese e aplicação na prática de métodos de resolução consensual nos conflitos contratuais em que as administrações são parte contratante, na própria esfera administrativa (extrajudicial); e 2) ocorrem dentro da execução do próprio contrato (quando o contrato ainda estiver sendo executado) ou em processo de negociação autônomo (quando porventura o contrato já tiver sido extinto, por exemplo), mas sempre por meio de regular processo administrativo.

A utilização dos acordos para prevenção e resolução de controvérsias contratuais, conforme redação da Lei federal nº 14.133/21 (artigo 151, parágrafo único), abrange amplo espectro de fatos, relativos a direitos patrimoniais disponíveis, inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e cálculo de indenizações. Tal disposição, além de reiterar o cabimento dos Mascs positivados no caput, aduz que os conflitos a que faz referência coincidem, de fato, com direitos patrimoniais disponíveis [9]. Fundamental para o adequado funcionamento é a definição, em regulamento próprio ou na minuta contratual, do processo de negociação, com parâmetros de devido processo legal, para se conferir segurança jurídica à autocomposição em si e estabilidade jurídica ao acordo autocompositivo endocontratual.

O avanço de experiências bem-sucedidas com a efetiva implementação dos Mascs para prevenção e resolução de controvérsias no âmbito da contratação pública representam um novo marco para redução da alta litigiosidade ainda dominante nas relações da esfera pública e fortalecimento dos laços de confiança legítima entre as partes contratantes.

Dada a ascendência do Poder Judiciário nas práticas de inovação de gestão pública, a relevância do seu papel de irradiador de políticas judiciárias de estímulo do uso e propagação dos Mascs, nada mais natural e pertinente que o próprio Judiciário regulamente em seu âmbito o emprego de métodos consensuais para a solução de controvérsias de índole contratual, atualizando-se, assim, à luz dos novos preceitos da Lei federal nº 14.133/21, nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.


[1] Há farta doutrina, inclusive em língua portuguesa, retratando essa transição metodológica na atividade administrativa. Cf.: OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Contrato de gestão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 28-43. MEDAUAR, Odete. A Processualidade no Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. Em Portugal, merecem destaque os trabalhos seminais sobre o tema de: SILVA, Vasco Pereira da. Em Busca do Acto Administrativo Perdido. Coleção Teses de Doutoramento. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 1998. p. 445-572. MACHETE. Pedro. Estado de Direito Democrático e Administração Paritária. Coleção Teses de Doutoramento. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2007. p. 394-412; 444-483. Ver ainda: BARNES, Javier. Towards a third generation of administrative procedure. In: Comparative Administrative Law. UK e USA: Edwald Elgar, 2010.

[2] Cf.: BUCCI, Maria Paula Dallari. O art. 209 da Constituição 20 anos depois: estratégias do Poder Executivo para a efetivação da diretriz da qualidade da educação superior. Fórum administrativo: Direito Público, Belo Horizonte, v. 9, nº 105, nov. 2009. p. 15. PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 263-302. SOUSA, Otavio Augusto Venturini de. O paradigma processual da atividade administrativa. In: Revista Brasileira de Estudos da Função Pública – RBEFP, Belo Horizonte, ano 4, nº 11, p. 55-93, maio/ago. 2015.

[3] Cf.: OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Os acordos administrativos na dogmática brasileira contemporânea. In: MOREIRA, Antonio Judice [et al.]. Mediação e arbitragem na administração pública: Brasil e Portugal. São Paulo: Almedina, 2020, v. 1, p. 103-114. JOHONSOM DI SALVO, Sílvia Helena Picarelli G. Mediação na Administração Pública Brasileira: o desenho institucional e procedimental. São Paulo: Almedina, 2018, p. 61-105.

[4] Há importantes julgados que reconhecem o uso de mecanismos extrajudiciais. Nesse sentido, "saliente-se que dentre os diversos atos praticados pela Administração, para a realização do interesse público primário, destacam-se aqueles em que se dispõe de determinados direitos patrimoniais, pragmáticos, cuja disponibilidade, em nome do bem coletivo, justifica a convenção da cláusula de arbitragem em sede de contrato administrativo". Cf.: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Mandado de Segurança nº 11.308/DF. Min. rel. Luiz Fux. DJe: 19/05/2008. p. 25. Ademais, "conclui-se que a Administração Pública, ao recorrer à arbitragem para solucionar litígios que tenham por objeto direitos patrimoniais disponíveis, não desatende ao interesse público, nem renuncia ao seu atendimento". Cf.: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Conflito de Competência nº 139.519/RJ. Min. rel. Napoleão Nunes Maia Filho. DJe: 10/11/2017. p. 51.

[5] Cf.: WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. Revista de Processo (Repto), São Paulo, ano 136 v. 195, p. 381-390, maio 2011. SANOMYA, Renata Mayumi. Mediação e conciliação com o Poder Público. 2019. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. p. 87-90. TARTUCE, Fernanda; MEGNA, Bruno Lopes. Fomento Estatal aos Meios Consensuais de Solução de Conflitos pelos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo. In: ÁVILA, Henrique; WATANABE, Kazuo; NOLASCO, Rita Dias; CABRAL, Trícia Navarro Xavier (Coords.). Desjudicialização, Justiça Conciliativa e Poder Público. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 281.

[6] De acordo com a publicação Justiça em Números do CNJ: "Por intermédio da Resolução CNJ n. 125/2010, foram criados os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs) e os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec), com a finalidade de fortalecer e estruturar unidades destinadas ao atendimento dos casos de conciliação. (…) Na Justiça Estadual, havia, ao final do ano de 2020, 1.382 Cejuscs instalados." CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2021. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf. Acesso em: 31/10/2021.

[7] Nesse sentido, há recomendação recente, no âmbito do CNJ, sobre o tratamento adequado de conflitos de natureza tributária, que versa sobre a implementação do Cejusc Tributário, dentre outras medidas: "Recomenda o tratamento adequado de conflitos de natureza tributária, quando possível pela via da autocomposição, e dá outras providências". CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 120, de 28 de outubro de 2021. Brasília: CNJ, 2021.

[8] OLIVEIRA, Gustavo Justino de; MOREIRA, Matheus Teixeira. Quem tem medo da solução negociada de conflitos da nova Lei de Licitações?In: Revista Consultor Jurídico.. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jun-13/publico-pragmatico-governo-digital-caminhar-maos-dadas-rumo-transformacao-digital#author. Acesso em: 01/11/2021.

[9] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 1586.

Autores

  • é professor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), advogado, consultor, árbitro especializado em Direito Público e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados.

  • é advogado, professor, mestre e doutorando em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas/SP, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

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