Litigância estratégica

Lei de improbidade deve ser entendida além de Brasília, defende Rafael Carneiro

Autor

14 de novembro de 2021, 8h35

A grita em torno da aprovação da nova lei de improbidade administrativa (Lei 14.230) carece de argumentos concretos que possam suplantar a alegação abstrata de que o novo regramento atrapalha o combate a corrupção. É o diagnóstico do advogado Rafael Araripe Carneiro. Ele coordenou pesquisa empírica com mais de 700 ações de improbidade administrativa que apontou que menos de 10% das demandas envolviam casos de enriquecimento pessoal e mais de 50% das ações tratavam apenas de ofensas aos princípios abstratos.

Spacca
Carneiro é signatário de um manifesto a favor da nova lei de improbidade e defende que ela é fruto de intenso e amadurecido debate entre o legislativo e a academia. "É preciso pensar o tema numa perspectiva nacional, não apenas de Brasília. A gestão pública Brasil afora, na maioria das cidades brasileiras, sofre com uma enorme carência de estrutura e de pessoal, e é sobre essa ótica que deve ser apreciada uma falha administrativa sem maior gravidade", explica.

Em entrevista à ConJur, o advogado também fala de algumas das muitas ações que patrocina no Supremo Tribunal Federal. São até o momento 150, o que o torna um dos advogados mais atuantes na mais alta corte de Justiça brasileira. Ele representa o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e defende o uso da litigância estratégica para barrar atos e proposições que violem direito constitucionais e fomentem o debate público.

Entre as ações patrocinadas por ele estão a ADPF 341que questiona portaria do Ministério da Educação que alterara regras do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies). Outro exemplo é a ADI 5.543, que levou o Plenário do Supremo a declarar inconstitucionais normas que proíbem gays de doar sangue. Na ocasião, a maioria do colegiado acompanhou o relator, ministro Luiz Edson Fachin, que entendeu que as normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), além de violar a dignidade humana, também tratam esse grupo de pessoas "de forma injustificadamente desigual, afrontando-se o direito fundamental à igualdade".

Carneiro também fala de sua experiência na Clínica de Direito Constitucional no IDP e defende o intercâmbio entre a academia e o Congresso para formulação de leis de forte impacto social.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

ConJur — O senhor atua em mais de 150 processos no STF, em alguns deles, em temas relacionados especificamente ao combate à crise sanitária. Como o senhor enxerga a atuação da Corte nesse contexto? Na mediação de conflitos federativos?
Rafael Carneiro Acho que o Supremo Tribunal Federal foi muito firme na busca por uma melhor solução das questões envolvendo a pandemia. O tribunal, respeitando o princípio federativo, preconizado pela Constituição, garantiu também aos estados e municípios, mas igualmente à União, a possibilidade de exercer suas competências e prerrogativas para amenizar o momento atual.

ConJur — O senhor acredita que a corte conseguiu se manter isolada desse ambiente de polarização política e de negacionismo?
Carneiro — Embora o Supremo seja uma corte também política, acredito que ela, nessa temática de combate à pandemia, agiu corretamente, prestigiando a ciência, buscando contribuir para a solução que vem sendo adotada nos países que melhor têm combatido a pandemia mundo afora. Não vejo uma interferência indevida. Vejo o Supremo reagindo naquilo que era necessário fazer.

ConJur — O senhor tem um excelente retrospecto em causas patrocinadas no Supremo. A que credita o bom desempenho?
Carneiro — Temos buscado desenvolver a litigância estratégica no âmbito do Supremo, que é a busca de transformação da realidade a partir de soluções que geram impactos para além do caso específico. Embora o litígio seja usado normalmente para demandas submetidas às autoridades judiciais, a expressão estratégica vai além. Pode envolver medidas também legislativas ou outras instituições públicas ou privadas.

Atribuo o sucesso de algumas ações primeiro à escolha dos temas levados à Corte. É preciso identificar as chances de provimento de uma ação a partir de um exercício de realidade e praticidade. Sem idealismo, mas com sensibilidade para entender o contexto político e social do momento. O segundo ponto se deve à interlocução com organizações e pessoas representativas daqueles assuntos que selecionamos. Por isso é importante conhecer bem os problemas de cada temática a partir de intercâmbios com pessoas de diferentes formações, sejam elas de entidades da sociedade civil, dos órgãos de regulação e dos especialistas em determinados temas.

Nesse ponto, acho importante destacar a perspectiva internacional. O Direito Comparado costuma ter boas contribuições no processo de convencimento dos ministros do STF. E o mais importante tem sido a sensibilidade e independência dos ministros na pauta de direitos humanos, em que eu muito atuo. Eles não têm se furtado a protegê-los.

ConJur — O senhor acredita que este conceito da litigância estratégica é bem usado por aqui?
Carneiro — Acho que é uma prática que ainda se está disseminando. mas os objetivos não são necessariamente a vitória de uma ação judicial. Muitas vezes o litígio estratégico alcança seu objetivo ao projetar luz onde havia sombra e gerar reações de outros poderes.

Posso citar dois exemplos: um no caso de uma recente portaria do Ministério da Educação, que revogou cotas para negros, indígenas e pessoas com deficiência em cursos de pós-graduação nas universidades federais. Protocolamos uma DPF no Supremo e, diante da ampla repercussão midiática, a portaria foi imediatamente revogada pelo ministério.

Me recordo também do caso dos extraditandos, até poucos anos. O estatuto dos estrangeiros obrigava que eles, em processo de extradição, fossem preso, ainda que os requisitos-gerais de encarceramento não estivessem preenchidos. Após nós levarmos o tema ao Supremo, a norma acabou sendo alterada pelo Executivo. Em suma, essas ações judiciais perderam objeto, mas alcançaram o objetivo traçado.

ConJur — O senhor conseguiu algumas vitórias importantes e tem patrocinado uma série de ações que chamaram a atenção como a que questionou a majoração do Fies. Outro processo questiona portaria do Ministério da Saúde que veta a doação de sangue por homossexuais que tiveram relações no período de um ano. É papel do STF interferir em políticas públicas?
Carneiro — O caso Fies foi julgado pelo Supremo em 2015. Após diversas promessas eleitorais de que iria aumentar o financiamento universitário, o governo federal fez exatamente o contrário. Criou novas exigências de acesso ao programa e começou a aplicá-las aos estudantes que já estavam no programa. O resultado foi uma série de protestos nas universidades, alunos desamparados e milhares de ações individuais. Levamos o tema ao STF, que impediu que as novas regras pudessem ser aplicadas aos estudantes que já estavam no programa, em respeito à segurança jurídica e à proteção da confiança.

No caso da portaria do Ministério da Saúde, os cientistas ouvidos num amplo debate público indicaram que a forma de proteção do sistema de doação de sangue deve ser aquele baseado em condutas individuais de risco, não grupos de risco, até porque essa separação em grupos que foi adotada por vários países, em décadas passadas, já há muito foi superada.

Sobre um suposto ativismo do Supremo, não podemos, ao menos na perspectiva dos direitos fundamentais, culpar o termômetro pela febre. O STF tem um papel contramajoritário, enquanto o Executivo e o Legislativo funcionam na lógica do resultado de maiorias.

O Supremo pode declarar inconstitucionalidade de atos de outros poderes para proteger os direitos fundamentais garantidos na Constituição. E é isso que eu vejo o Tribunal fazendo.

ConJur — Uma crítica comum à atuação de partidos políticos no Supremo é que muitas vezes as legendas perdem votações no Congresso e partem para judicializar questões que deveriam ser tratadas dentro da arena política. Como o senhor enxerga a questão?
C
arneiro —. A Constituição avançou bastante na abertura da nossa jurisdição constitucional. Se até 1988 o procurador-geral da República tinha o monopólio para propor ações diretas de inconstitucionalidade, a partir da Constituição temos um amplo rol de legitimados que incluem os partidos políticos com representação no Congresso.

ConJur – Dados do Anuário da Justiça apontam que o número de ações diretas de inconstitucionalidade tem crescido muito nos últimos anos. Em 2019, por exemplo, foram 489 ADIs. O senhor atribui esse aumento a um movimento natural de abertura do Supremo aos partidos ou o nosso poder Legislativo tem falhado em formular leis que se enquadrem dentro da Constituição?
Carneiro — Atribuiria aos dois motivos que você elencou. Vejo uma reiterada violação de direitos humanos no Brasil, sobre as mais diversas perspectivas. Direito à vida, direito à educação, direito à intimidade, combate a preconceitos. E também vejo o Legislativo e o Executivo falhando muitas vezes na garantia, na proteção desses direitos fundamentais, o que acaba por exigir uma reação do STF.

ConJur — O senhor poderia citar casos concreto de propostas legislativas ou do Executivo que violam esses direitos?
Carneiro — Recentemente um decreto presidencial retirou imotivadamente a contabilização de dados sobre feminicídio e as mortes causadas por força de segurança pública. Esses são dois dos temas mais relevantes na atualidade em segurança pública, no Brasil e no mundo. O Anuário da Segurança Pública mostra que temos no Brasil um feminicídio a cada 6h30min e esse número vem aumentando.

Diariamente nos deparamos com notícias revoltantes de espancamentos e mortes brutais em razão da condição do sexo feminino. E o mesmo se aplica a mortes causadas por conta da segurança pública. São 17 por dia. Por que então excluir esses indicadores, que vinham sendo monitorados? Quando sabemos que os dados são essenciais na elaboração e acompanhamento de políticas sociais efetivas e específicas. Isso é um exemplo de um recente decreto que viola, a nosso ver, um direito fundamental. 

Tivemos também duas vitórias importantes em relação ao tema das pessoas com deficiência. O Supremo reconheceu que é inconstitucional submeter de forma genérica candidatos com e sem deficiência aos mesmos critérios avaliativos nas provas físicas, exceto se não for demonstrada a necessidade para determinada função pública. E a outra ação envolveu a política nacional de educação especial. O plenário  confirmou liminar do ministro Toffoli que impedia a segregação de alunos com deficiência. Nesse caso, inclusive na audiência pública, em que diversos especialistas consideraram algo que era um grande retrocesso numa luta de 30 anos pela inclusão social de estudantes com deficiência. Então, são vários exemplos em campos temáticos diferentes dos direitos humanos que exigem uma reação do Supremo.

Tivemos também recentemente a suspensão dos efeitos de uma MP que dificultava a remoção de fake news de discurso de ódio das redes sociais, numa ação que apresentamos ao STF. Buscamos tratar o tema sob duas vertentes altamente relevantes: a primeira de ordem democrática, considerando a propagação de mentiras, por exemplo, a respeito do nosso sistema de votação eletrônico; e a segunda foi relacionada ao atual quadro de combate à pandemia da Covid-19, ante a insistência de se divulgar informações que contrariam a ciência e estudos científicos.

ConJur — O senhor é signatário de um manifesto em apoio à nova lei de improbidade administrativa. Quais os principais avanços, na opinião do senhor, que o novo regramento irá trazer?
Carneiro — O novo regramento traz segurança jurídica e razoabilidade no controle dos atos administrativos. A lei de improbidade administrativa de 1992 trazia cláusulas muitas vezes genéricas, que colocavam o setor público numa situação de insegurança e, muitas vezes, de injustiça quando, por exemplo, se cometiam falhas administrativas sem gravidade.

Um exemplo que cito é a hipótese de suspensão dos direitos políticos, que acabou gerando uma ação de inconstitucionalidade no Supremo. O tema tem como sanção pela lei um lado dos direitos políticos passivos, que envolvem elegibilidade. Esse lado normalmente atrai mais interesse midiático. Mas existe também outra ótica, que prefiro prestigiar, que é a dos direitos políticos ativos, que permitem ao cidadão participar da vida política do seu país, votar em eleições, plebiscitos e referendos, ajuizar ações populares, participar em iniciativas populares. São direitos fundamentais de participação cidadã, e vinha percebendo que estávamos nos acostumando no Brasil com a banalização da restrição dos direitos políticos em razão de erros administrativos sem gravidade. Isso é preocupante.

É preciso pensar o tema numa perspectiva nacional, não apenas de Brasília. A gestão pública Brasil afora, na maioria das cidades brasileiras, sofre com uma enorme carência de estrutura e de pessoal. E é sobre essa ótica que deve ser apreciada uma falha administrativa sem maior gravidade. Foram esses os argumentos que submetemos ao STF, que reconheceu os direitos políticos como direitos fundamentais. Apenas podem ser limitados em casos de irregularidades reprováveis, de alta gravidade.

ConJur — Tivemos um momento de quase criminalização da política. O senhor acredita que leis com dispositivos genéricos como a antiga lei de improbidade colaborou para esse movimento?
Carneiro — Vejo a lei de improbidade como um instrumento muito importante no controle da administração pública. Traz punições para as hipóteses de enriquecimento pessoal em prejuízo ao erário. Este foi o espírito da criação, quando analisamos seu histórico legislativo. O conceito original de improbidade estava atrelado ao enriquecimento do agente público ou de terceiros no uso indevido da função pública. O que a lei de 1992 fez foi uma disrupção do conceito de improbidade ao alargá-la, ao ampliá-la para hipóteses muito distintas das originais, deixando o gestor público numa situação de insegurança a ser apreciada anos depois pelo magistrado, muitas vezes desconhecendo o contexto em que foi tomado o ato administrativo.

ConJur — O senhor acredita que exista muita desinformação da nova lei de improbidade administrativa? Muitos críticos ao novo regramento dizem que ela enfraquece o combate à corrupção.
Carneiro
— Discordo e acho que precisamos embasar esse tipo de argumentação em dados, em análises mais aprofundadas. Por exemplo, coordenei no IDP [Ins
tituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, de Brasília] uma pesquisa empírica com mais de 700 ações de improbidade administrativa em que mostramos que menos de 10% das demandas envolviam casos de enriquecimento pessoal, mais de 50% das ações tratavam apenas de ofensa aos princípios, que exatamente por sua abstração e generalidade trazem tanta insegurança. Também identificamos nessa pesquisa a falta de proporcionalidade das sanções por improbidade administrativa, não há na aplicação da lei um uso proporcional das sanções.

Coloco de uma forma diferente. O que há é um uso disfuncional das funções de improbidade, em que não se aplica a lógica de que os atos mais graves merecem sanções mais graves, atos menos graves sanções menos graves. Essa disfuncionalidade nas sanções da lei de improbidade também foi identificada. Portanto é preciso trazer maior cautela neste uso de críticas genéricas e superficiais às operações da lei de improbidade.

ConJur — O senhor sustenta que a LIA é fruto de um extenso debate acadêmico. Acredita que essa conexão entre a academia e o Congresso na legislação de leis tem sido bem feita?
Carneiro — Eu mesmo participei de audiência pública na Câmara dos Deputados para tratar da nova LIA. Tenho conhecimento que foram realizadas várias audiências públicas, em vários estados da federação. Vejo que houve um movimento de amplo debate público sobre o tema, que já vinha de uma proposição por parte de uma comissão de juristas integrada por pessoas de vários segmentos. E que já havia se debruçado sobre o tema e feito propostas. Já havia um ambiente de amadurecimento para nova lei de improbidade administrativa. Portanto, discordo da acusação de que a nova lei é fruto de um debate apressado e superficial.

ConJur — O senhor é um dos criadores da Clínica de Direito Constitucional do IDP. Como surgiu a iniciativa?
Carneiro — Sou um grande admirador das clínicas jurídicas. Elas são laboratórios científicos do Direito, importantes indutores de transformação social. As clínicas foram muito importantes para o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos na década de 1950 e 1960 e, sobre essa inspiração, ajudei a criar a Clínica de Direito Constitucional do IDP em 2017. Lá buscamos desenvolver o litigio estratégico com impacto social e com isso incentivar os alunos a serem mais pró-ativos no combate à injustiças. Eles desenvolvem mentalidade jurídica com mais responsabilidade ética e social. Uma das medidas alcançadas pela clínica foi a determinação do TSE de que os partidos políticos tenham ao menos 30% de mulheres nos órgãos de direção partidária. Essa ideia surgiu após os estudantes identificarem que a baixa representatividade política feminina no Congresso e também no Executivo estava diretamente vinculada a reduzir a participação delas nas cúpulas partidárias, onde se decide sobre estratégia de campanha, participação na militância, alocação de recursos. Então as clínicas jurídicas conseguem aliar teoria e prática de forma a produzir resultados concretos.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!