Embargos Culturais

'O Positivismo Jurídico', de Norberto Bobbio

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

14 de novembro de 2021, 8h00

Norberto Bobbio (1909-2004) deixou-nos extensa bibliografia. Tratou de teoria geral do Direito, de Filosofia, de Ciência Política, e mesmo de memorialística. Nos Embargos Culturais desta semana comento "O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito". A Ícone publicou uma tradução para o português desse importante livro em 1995. São notas de aula, compiladas por Nello Morra. Ao que consta (lê-se no prefácio também), trata-se de um curso lecionado no ano acadêmico de 1960-1961. A leitura do livro confirma a advertência. O texto flui leve, direto. O leitor tem impressão de que ouve o mestre italiano.

Spacca
Bobbio explora inicialmente as origens históricas do positivismo jurídico. Segue uma tradição e contrapõe o Direito natural ao Direito positivo, nos Direitos clássico, medieval e moderno. Fixa um quadro comparativo muito didático, ao qual acrescento algumas percepções minhas.

O Direito natural sugere percepção de Justiça transcendente e atemporal, e o Direito positivo, uma percepção de Justiça imanente e temporal. No Direito natural, o critério de aplicação do Direito seria o crivo do justo; no Direito positivo, o crivo do válido. O Direito natural teria eficácia em todos os lugares e tempos. O Direito positivo estaria centrado em normas culturais que regeriam determinadas comunidades. O Direito positivo seria variável no tempo.

O Direito natural seria revelado pela razão ou até por uma ordem divina. O Direito positivo seria revelado pela vontade do soberano ou do povo. O Direito natural buscaria o bom; o Direito positivo, o útil. O Direito natural predicaria na justa razão. O Direito positivo, no poder civil. À informalidade do Direito natural opõe-se a formalidade do Direito positivo.

Ao voluntarismo do Direito natural opõe-se o imperativismo do Direito positivo. Há um certo pluralismo nas fontes do Direito natural, enquanto tem-se um monismo de fontes no Direito positivo. O Direito natural é centrado no idealismo. O Direito positivo no realismo. O Direito natural seria mais metafísico. O Direito positivo, substancialmente mais pragmático. À universalidade de um pretenso conteúdo do Direito natural opõe-se a particularidade do conteúdo do Direito positivo.

Nesse livro de Bobbio há um capítulo sobre os pressupostos históricos do positivismo jurídico, com certa ênfase no Direito romano. Bobbio trata o Direito romano no contexto de um Direito elegante medieval, especialmente quanto ao papel da Escola de Bologna. Nesse abstrato mundo medieval, o Direito romano transitaria como um Direito comum, contrapondo-se a Direitos locais, os chamados Direitos próprios. A ordem jurídica feudal descentralizada resistia a uma ordem geral, que substancializará a agenda de formação do Estado Nacional Moderno.

No contexto da construção de Direitos nacionais, com referências à tradição normativa romana, Bobbio explora os papeis de Montesquieu e Beccaria. Quanto à Inglaterra, evidencia a importância de Edward Coke e de Thomas Hobbes. Eu tenho muitas dúvidas quanto ao fato de o Direito romano ser mais marcante na tradição ocidental do civil law do que na tradição insular do common law. No common law, ao contrário de nosso modelo, os remédios precedem os direitos (remedies preced rights). Essa premissa, no entanto, é romanística ao extremo. Basta levarmos em conta o sistema formular do processo civil romano.

Bobbio trata também separadamente das origens do positivismo jurídico. Nesse espaço do livro há menções a grandes nomes da história do Direito na Alemanha (Gustavo Hugo, Savigny, Thibaut), na França (Cambacérès e Portalis) e na Inglaterra (Bentham e Austin). O tema da codificação é muito recorrente na Inglaterra também. Não nos esqueçamos de que Bentham foi um dos maiores defensores de códigos.

Há uma distinção entre Direito legislativo e Direito judiciário, que parece ser o pano de fundo do common law. Na França, por outro lado, prepondera uma obsessão napoleônica com a legislação. Até pouco tempo os franceses somente conheciam o controle prévio de constitucionalidade de normas. Bobbio também se ocupa com Jhering (que Tobias Barreto divulgou entre nós), a quem imputou um método e uma concepção de ciência jurídica.

Bobbio discursou também sobre validade e eficácia de normas jurídicas, a propósito de definições valorativas do Direito. Explorou o tema do Direito como função de coação. Explorou o tema central das fontes do Direito, com estações em aspectos hoje pouco lembrados como o tema da "natureza das coisas" — tão forte em Montesquieu —, e bem como o tema do costume como fonte do Direito.

A partir de uma teoria imperativista da norma jurídica, Bobbio avançou para a teoria do ordenamento jurídico, assunto de outro de seus cursos. Os problemas (ou falsos problemas) de antinomias e lacunas é recorrente em Bobbio. O autor rompe as barreiras de um positivismo de neutralidade axiológica (impraticável) e trata, no último capítulo, do positivismo jurídico como ideologia do Direito. Apresenta também uma versão moderada do positivismo, no contexto de um positivismo ético. A ordem, nessa lógica, seria também um valor próprio do Direito.

O positivismo é um tema central na teoria do Direito. Entre nós, imperdível o verbete "Positivismo Jurídico" no "Dicionário de Hermenêutica" de Lenio Streck, publicado pela Casa do Direito, e também o ensaio de Dimitri Dimoulis, "Positivismo Jurídico", publicado pela Método.

Esse tema também me parece geracional. Ao meu tempo de faculdade (década de 1980) hostilizava-se o positivismo, porque identificado com uma certa insensibilidade na magistratura. Hoje, pelo contrário, invocamos a preponderância de regras claras e precisas, como parâmetro de decisões, temerosos que somos de um voluntarismo que tende a subverter o escrito pelo dito.

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