Opinião

O julgamento do EREsp nº 1.795.347/RJ e a afronta ao princípio da segurança jurídica

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14 de novembro de 2021, 6h34

Ao longo da última década, acreditava-se que a discussão em torno da vedação prevista no artigo 16, §3º, da Lei nº 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal) [1] estaria superada pelos tribunais nacionais, capitaneados pelo Tema nº 294 do Superior Tribunal de Justiça [2]. No entanto, esse debate se tornou novamente objeto de controvérsia com a crescente consolidação de um entendimento divergente daquele exarado por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.008.343/SP, submetido ao rito dos recursos repetitivos, que ensejou o entendimento contido no mencionado tema.

Esse cenário de incertezas alcançou o seu ponto mais elevado no recente julgamento dos Embargos de Divergência nº 1.795.347/RJ, realizado pela 1ª Seção do STJ no dia 27 de outubro deste ano. Na ocasião, os ministros julgadores concluíram pela inexistência de divergência quanto à interpretação da restrição/comando previsto no citado artigo 16, §3º, da Lei nº 6.830/80, visto que a 1ª Turma teria alinhado o seu entendimento ao posicionamento firmado pela 2ª Turma, no sentido da impossibilidade de o contribuinte alegar, em sede de embargos à execução fiscal, compensação pretérita indeferida administrativamente como causa de extinção do crédito tributário executado. Esse entendimento resultou no não conhecimento do citado EREsp nº 1.795.347/RJ, em razão da atração da Súmula nº 168 do STJ ("Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado").

Para além das alegações capazes de demonstrar que a jurisprudência que ora se consolida afronta o conteúdo do Tema nº 294 e, ainda, decorre de uma leitura imprecisa do disposto no artigo 16, §3º, da Lei nº 6.830/80, destaca-se que o STJ precisará enfrentar uma outra relevante discussão: o destino dos inúmeros embargos à execução fiscal fundados na alegação de compensação que foram opostos sob a guarda do posicionamento anteriormente vigente.

Isso porque não se pode ignorar que, ao longo de sucessivos anos, o  diga-se, correto  posicionamento que vigeu nos tribunais nacionais foi que a vedação prevista no artigo 16, §3º, da Lei nº 6.830/80 trataria, exclusivamente, da possibilidade de o executado promover, pela via dos embargos, a compensação do débito executado com créditos de sua titularidade. Ou seja, falava-se na vedação da eventual pretensão do executado de proceder à compensação tributária pela via da tutela jurisdicional concedida em sede de embargos à execução, não havendo, portanto, qualquer ressalva de que a mencionada compensação pretérita deveria ter sido deferida administrativamente.

Não por outra razão, o próprio Poder Judiciário, tendo à frente o STJ, reiteradamente refutava a tese restritiva da aplicação do citado tema defendida pela Procuradoria da Fazenda Nacional.

Caso o STJ ignore essa relevante discussão, inúmeros contribuintes serão  como muitos já estão  submetidos a uma grave insegurança jurídica. Afinal, em um passado não tão distante, em decorrência da reconhecida jurisprudência pacífica dos tribunais, quando da eleição da via processual adequada à defesa da execução fiscal, não pairava qualquer dúvida sobre a oposição de embargos à EF como meio de defesa também quando a causa de extinção do crédito tributário executado fosse compensação pretérita não homologada pela autoridade fiscal.

Por isso, quando o STJ se restringe a, simplesmente, afirmar a impossibilidade de reexame da compensação indeferida na seara administrativa em sede de embargos à execução fiscal, enseja a extinção sem resolução de mérito dos inúmeros embargos à execução fiscal opostos por todo o país, ainda que se trate de defesa ajuizada sob a tutela da jurisprudência uníssona à época do ingresso da ação.

Nesse sentido, admitindo que a busca da Justiça e da pacificação social é a atividade fim do Poder Judiciário, pode-se dizer que haverá a concretização da justiça no cenário descrito acima, já vivenciado por inúmeros contribuintes? Fatalmente não, vez que se estará diante da injustificada penalização do contribuinte, que não terá a sua alegação de compensação apreciada, apesar de ter adotado exatamente as orientações previstas na jurisprudência vigente à época do ajuizamento da ação.

Com vistas a impedir essa injustiça, espera-se que o STJ adote alguma medida, como, por exemplo, admita que os embargos à execução fiscal extintos sem a resolução do mérito, possam  ao menos  ensejar a suspensão do prazo prescricional do artigo 169 do CTN [3] para o ajuizamento da correspondente ação anulatória. Nesse sentido, o artigo 486 do Código de Processo Civil é bastante claro ao sinalizar que "o pronunciamento judicial que não resolve o mérito não obsta a que a parte proponha de novo a ação", autorizando, portanto, o ajuizamento de ação anulatória fundada nas mesmas alegações aduzidas em sede de embargos a EF extintos sem resolução do mérito. Somado a isso, veja-se que o CPC ainda admite que a citação válida é capaz de ensejar a interrupção do prazo prescricional, nos termos do seu artigo 240, §1º [4].

Inclusive, o STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1.120.295/SP, submetido à sistemática dos recursos repetitivos, consignou que o "fato jurídico prescricional pressupõe o decurso do intervalo de tempo prescrito em lei associado à inércia do titular do direito de ação (direito subjetivo público de pleitear prestação jurisdicional) pelo seu não-exercício". Esse mesmo racional deve ser adotado em favor dos contribuintes, de forma a viabilizar o reconhecimento de que a citação válida da embargada possa, no mínimo, suspender o prazo para ajuizamento da ação anulatória.

Até porque os tribunais afirmam que a jurisprudência que ora se forma não afrontaria aos princípios da inafastabilidade da jurisdição estatal, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, justamente em razão da existência de outra via processual passível de adoção pelos contribuintes para o reexame dos seus pedidos de compensação indeferidos em âmbito administrativo. Esse ponto, inclusive, foi bastante destacado pelo ministro Gurgel de Faria, enquanto relator, no julgamento dos Embargos de Divergência nº 1.795.347/RJ, ao afirmar que "não se está a afastar do Judiciário a análise do ato administrativo que indeferiu a compensação pleiteada pelo contribuinte. Contudo, os embargos à execução não são a via adequada para perquirição de tais questões, que devem ser ventiladas em meio judicial próprio"  diga-se, ação anulatória.

Partindo desse racional, constata-se como inevitável que o reconhecimento da mutação da jurisprudência do STJ deveria  ao menos  resultar no reconhecimento dos embargos à execução fiscal extintos sem resolução do mérito como causa de suspensão do prazo prescricional para o ajuizamento de ação anulatória, de modo a viabilizar o reexame de pedidos de compensação há longos anos em discussão perante o Judiciário. Caso contrário, estaríamos diante da hipótese em que o Judiciário indica a ação anulatória como medida judicial cabível e, ao mesmo tempo, inviabiliza que tal providência possa ser adotada pelos contribuintes.

E ainda mais. Superada a discussão quanto à possibilidade de os contribuintes adotarem a medida judicial apontada pelo STJ como a via processual cabível, haverá uma segunda discussão a ser enfrentada: a possibilidade de as ações anulatórias ensejarem a suspensão das execuções fiscais correspondentes.

Como no caso das ações anulatórias não haverá a aplicação da suspensão prevista no artigo 919, §1º, do CPC [5], caberá ao contribuinte, mediante o oferecimento de caução, requerer a suspensão do executivo com fundamento no artigo 9º, II, da Lei nº 6.830/80 [6] e em decorrência da conexão existente entre as ações, o que caracteriza prejudicialidade externa. Ocorre que esse pleito tem encontrado forte resistência junto à Procuradoria da Fazenda Nacional, que, ao confundir a discussão em torno da suspensão da execução fiscal, em razão dos elementos expostos acima, com a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, cujas hipóteses estão taxativamente previstas no artigo 151, do CTN, defende que apenas o depósito do montante integral do débito daria azo à suspensão da cobrança executiva.

Nesse sentido, é necessário que se compreenda os diferentes efeitos do oferecimento de caução: quando antes do ajuizamento da execução fiscal, apenas viabilizará a expedição da certidão de regularidade fiscal do contribuinte, nos termos do Tema Repetitivo 237/STJ [7]; e, no momento posterior, após o ajuizamento do executivo fiscal, quando a relação entre Fisco e contribuinte será regulada também pela Lei nº 6.830/80, que assegura ao executado o direito à apresentação de outras garantias, essa caução terá o efeito de suspender a própria execução fiscal e a cobrança dela decorrente, não se limitando tal consequência somente ao depósito judicial.

Esse racional vai ao perfeito encontro do princípio da menor onerosidade, ao assegurar ao credor a liquidez e solvência do recebimento do seu crédito  garantido por meio de seguro garantia/fiança bancária e, ao devedor, a possibilidade de discutir a obrigação tributária que lhe foi imputada sem a necessidade de desembolsar o montante integral atualizado do crédito executado —, exigência que poderia resultar na inviabilidade da manutenção das suas operações.

Ao tratar desse tema, a jurisprudência do STJ é bastante clara no sentido de que "embora não seja permitida a reunião dos processos, havendo prejudicialidade entre a execução fiscal e a ação anulatória, cumpre ao juízo em que tramita o processo executivo decidir pela suspensão da execução, caso verifique que o débito está devidamente garantido, nos termos do artigo 9º da Lei 6.830/80." (CC 105.358/SP, relator ministro Mauro Campbell Marques, 1ª Seção, julgado em 13/10/2010, DJe 22/10/2010).

Assim, sinaliza-se que, mantido o entendimento exarado pela 1ª Seção no julgamento dos Embargos de Divergência nº 1.795.347/RJ, o STJ precisará enfrentar e — mais importante  encontrar uma solução para os embargos à execução fiscal ajuizados sob a vigência da jurisprudência anteriormente predominante. Afinal, não se pode admitir que o contribuinte esteja exposto à forte movimentação da maré da jurisprudência, sem que lhe seja resguardada segurança jurídica mínima.

 


[1] "Artigo 16  O executado oferecerá embargos, no prazo de 30 (trinta) dias, contados: (…) §3º — Não será admitida reconvenção, nem compensação, e as exceções, salvo as de suspeição, incompetência e impedimentos, serão argüidas como matéria preliminar e serão processadas e julgadas com os embargos".

[2] Tese firmada: "A compensação efetuada pelo contribuinte, antes do ajuizamento do feito executivo, pode figurar como fundamento de defesa dos embargos à execução fiscal, a fim de ilidir a presunção de liquidez e certeza da CDA, máxime quando, à época da compensação, restaram atendidos os requisitos da existência de crédito tributário compensável, da configuração do indébito tributário, e da existência de lei específica autorizativa da citada modalidade extintiva do crédito tributário".

[3] "Artigo 169 – Prescreve em dois anos a ação anulatória da decisão administrativa que denegar a restituição".

[4] "Artigo 240 – A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos artigos 397 e 398 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). §1º A interrupção da prescrição, operada pelo despacho que ordena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, retroagirá à data de propositura da ação".

[5] "Artigo 919 – Os embargos à execução não terão efeito suspensivo. §1º. O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes".

[6] "Artigo 9º  Em garantia da execução, pelo valor da dívida, juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, o executado poderá: (…) II – oferecer fiança bancária ou seguro garantia".

[7] "É possível ao contribuinte, após o vencimento da sua obrigação e antes da execução, garantir o juízo de forma antecipada, para o fim de obter certidão positiva com efeito de negativa". (STJ, REsp nº 1123669/RS, DJ em 01.02.2010).

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