Diário de Classe

O filtro catalisador da liberdade: a moral

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13 de novembro de 2021, 8h00

Durante um debate a respeito da imprescritibilidade da denomina "injúria qualificada", tema recentemente enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal, algo me chamou a atenção: o uso da palavra "moral". Isso porque, em pouquíssimo tempo de conversa, o vocábulo "moral" correspondia a vários sentidos, expressados a partir de indagações acerca da "ausência de moral" de um ex-juiz para ocupar cargo político, por meio de citações à "moral da história", bem como menção aos assombrosos "juízos morais" utilizados para a decretação de prisões preventivas.

De substantivo a adjetivo, a moral é tão polissêmica quanto o Direito, acarretando eventuais incompreensões teóricas. O mais difundido equivoco a respeito da relação entre direito e moral diz respeito à suposta proposta kelseniana de separá-los, cuja gênese dessa incompreensão teórica Streck atribui à denominada "maldição do capítulo VIII", uma vez que, ao contrário do que é difundido, Kelsen jamais propôs separar Direito e moral, sendo certo que a "pureza teórica" recai sobre a Ciência do Direito, e não no Direito, esse eivado pelo solipsismo próprio da razão prática [1]. A propósito, em determinados aspectos, a moral se revela nociva ao direito. No âmbito da hermenêutica streckiana, por exemplo, alerta-se para a impossibilidade de a moral corrigir o direito, mas sem lhes negar correspondência cooriginária, que se dá na ordem do a priori, eis que a moral conforma o direito [2].

Percebe-se que a relação entre Direito e moral é objeto de estudo entre inúmeras correntes (jus)filosóficas, demarcando-se distinções, correspondências ou mesmo incompatibilidades. Não nos interessa desenvolver qualquer crítica à relação entre Direito e moral. No entanto, considerando que o Direito ostenta maior destaque quando da compreensão do fenômeno jurídico  e não poderia ser diferente , servindo a moral, em tais contextos, apenas de premissa à estrutura argumentativa, interessa-nos saber se dela (a moral) é possível extrair uma "causa primeira", a exemplo daquilo que o pensamento que antecede o pensamento socrático, da Escola Jônica à Eleata, define como arché,[3] e sua eventual repercussão sobre o Direito.

Afinal, o que é isto — a moral?

Os conceitos mais comuns de moral a aproximam de definições que se encaixam a ideias de regramentos. Mas são insuficientes. Evidentemente, não temos a pretensão de apresentar um conceito de moral, de tal maneira a abarcar os mais variados usos da palavra. No entanto, conforme dito nas linhas acima, buscaremos algo que indique a sua constituição. Pois bem.

Seguindo as linhas de André Comte-Sponville, concordamos com a fundamental premissa no sentido de que a moral começa onde somos livres [4]. Oportunamente, é preciso esclarecer que liberdade, para fins de determinação da moral, não deve ser concebida apenas no sentido político, que se refere àquilo que nos é permitido fazer, mas, igualmente, no sentido metafísico de liberdade, que corresponde a um estado de mera potencialidade.

A partir de tais premissas, sustentamos que entre as atividades meramente orgânicas do ser humano e a moral existe apenas potencialidade, cujo estágio de concretude revela a liberdade em seu estado mais genuíno. Indo um pouco além da premissa estabelecida por Comte-Sponville, acreditamos que a liberdade não é o ponto de partida, mas a matéria-prima da moral.

A moral, portanto, mantém relação de ambivalência com a liberdade, porquanto é dela filtro catalisador e dela é constituído seu núcleo fundamental. Ou seja, a liberdade constitui o núcleo da moral e, ao mesmo tempo, superado o estado de potencialidade, é por ela catalisada.

É na linguagem, aliás, que a moral encontra seu apogeu, e nela encontra as condições de possibilidades para a estruturação de seus predicados, sendo esses os responsáveis pela orientação dos fatores de mediação entre liberdade enquanto potência e liberdade enquanto expressão.    

Nesse contexto, o Direito, compreendido aqui como princípio de adequação do homem à vida social [5], guarda estreita relação com a moral, frustrando qualquer possibilidade de cisão, porquanto é justamente a partir do (e no) exercício de liberdades que o Direito encontra o substrato de sua racionalização, mediando e tutelando as mesmas liberdades que lhe garantem a razão de ser.  

Por fim, se for possível conceber a ideia de "moral coletiva", que essa seja constituída a partir de razões democráticas, garantindo ao Direito  aqui com D maiúsculo  determinado grau de autonomia, afastando-nos do moralismo jurídico, arché do solipsismo judicial.

 


[2] STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O que é isto – as garantias processuais penais? – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 11.

[3] Substância primordial, a origem única de todas as coisas.

[4] COMTE-SPONVILLE, André. Apresentação da Filosofia. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo : Martins Fontes, 2002, p. 17.

[5] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, volume I., p. 04.

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