Ambiente Jurídico

A competência para legislar sobre patrimônio cultural

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13 de novembro de 2021, 8h00

Todo o regramento acerca da divisão das competências legislativas (normativas) e executivas (administrativas) sobre a proteção do patrimônio cultural brasileiro pode ser encontrado na Constituição Federal vigente. Aliás, a autonomia das entidades federativas, um dos pontos fundamentais e asseguradores do convívio no Estado federal, pressupõe exatamente o exercício de poderes (legislativos e administrativos) que assegurem o desempenho de suas funções, de acordo com o estabelecido pelo legislador constituinte.

Por isso, a repartição constitucional de competências tem papel de relevo no sistema jurídico da federação, pois é a partir dela que os entes que a integram podem exercer sua autonomia de maneira independente dos demais e ao mesmo tempo harmônica e coordenada com o todo.

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A análise das competências administrativas e normativas sobre a proteção do patrimônio cultural, previstas nos artigos 23, 24 e 30 da CF/88, deve ser feita levando-se em conta o disposto na regra-matriz do artigo 216, §1º, da CF/88, que estabelece, em tom imperativo e cogente, que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro. Para alcançar o cumprimento de tal determinação constitucional — outorgada de maneira ampla e irrestrita , União, estados e municípios devem se valer de seus poderes normativos e executivos assegurados constitucionalmente, ainda que de maneira implícita.

Em termos de competência para legislar sobre patrimônio cultural, dispõe a Carta Magna que:

"Artigo 24  Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
VII
proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;
VIII
responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

§1º.  No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§2º.  A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§3º.  Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§4º.  A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário".

As normas gerais que devem ser estabelecidas pela União (artigo 24, §1º), segundo Lúcia Valle de Figueiredo, são aquelas que dispõem de forma homogênea para determinadas situações para garantia da segurança e certeza jurídicas, estabelecem diretrizes para o cumprimento dos princípios constitucionais expressos e implícitos, sem se imiscuírem no âmbito de competências específicas dos outros entes federativos, sendo suas características as seguintes:

a) Disciplinam, de forma homogênea, para as pessoas políticas federativas, nas matérias constitucionalmente permitidas, para garantia da segurança e certeza jurídicas;

b) Não podem ter conteúdo particularizante que afete a autonomia dos entes federados, assim não podem dispor de maneira a ofender o conteúdo da federação, tal seja, não podem se imiscuir em assuntos que devam ser tratados exclusivamente pelos estados e municípios;

c) Estabelecem diretrizes sobre o cumprimento dos princípios constitucionais expressos e implícitos [1].

Ao legislador federal cabe, portanto, estabelecer os parâmetros e a construção dos institutos jurídicos a serem observados e adotados pela federação. São exemplos de leis que tratam de normas gerais sobre o patrimônio cultural brasileiro o DL 25/37 (Lei do Tombamento), a Lei dos Arquivos (Lei 8.159/91) e o Estatuto dos Museus (Lei 11.904/2009).

O §1º do artigo 24 da CF/88 admite expressamente que os estados possam legislar sobre normas gerais suplementarmente, dispondo que "a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados". A suplementação consiste em preencher claros, adicionar, esclarecer, aperfeiçoar. Portanto, ao Estado cabe o aperfeiçoamento regional das normas gerais estabelecidas pela União sobre o patrimônio cultural.

Vale ressaltar, contudo, que os outros entes federativos não poderão subverter regramentos gerais estabelecidos pela União, sobretudo aqueles dispositivos que estruturam e disciplinam institutos de proteção do patrimônio cultural em âmbito nacional, a exemplo das espécies e dos efeitos jurídicos decorrentes do tombamento previstos no DL 25/37.

Na inexistência de normas gerais ditadas pela União, exerce o Estado a competência legislativa plena (supletiva) para atendimento de suas peculiaridades (§3º do artigo 24). Porém, a superveniência de lei federal (nacional) sobre normas gerais "suspende a eficácia da lei estadual, no que esta for contrária à lei federal"[2]

À primeira vista, poder-se-ia pensar que os municípios brasileiros não teriam competência para legislar sobre patrimônio cultural, ante a literalidade do contido no artigo 24 da CF/88, que não faz menção aos entes municipais. Mas, em verdade, isso não ocorre, pois a interpretação do disposto no artigo 24 deve se dar em conjunto com a previsão do artigo 30 da Carta Magna, que trata das competências municipais.

Jair Eduardo Santana leciona no sentido de que o município tem não só competência material, mas também legislativa para tratar de patrimônio cultural, desde que com obediência à legislação da União e dos estados, para não haver invasão em seara onde não se lhe permite transitar [3].

Com efeito, não se pode esquecer que a Constituição Federal  além do contido no artigo 24  dispõe ainda que:

"Artigo 30  Compete aos Municípios:
I
legislar sobre assuntos de interesse local;
II
suplementar a legislação federal e a estadual no que couber".

Dessa forma, incumbe também aos municípios a suplementação da legislação federal e estadual, no que couber, desde que não exceda os limites dos procedimentos locais.

O constitucionalista José Afonso da Silva, a propósito da competência legislativa dos municípios sobre a temática aqui tratada, ensina que:

"Sua competência suplementar na matéria é também reconhecida. De fato, dá-se-lhes competência para …  promover a proteção do patrimônio histórico e cultural local, observadas a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. Quer isso dizer que não se recusa aos Municípios competência para ordenar a proteção do meio ambiente, natural e cultural. Logo, é plausível reconhecer, igualmente, que na norma do artigo 30, II, entra também a competência para suplementar a legislação federal e estadual na matéria" [4].

É de se lembrar, ainda, que o artigo 30, IX, atribui expressamente aos municípios a competência para "promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual".

Então, pergunta-se: como assegurar a efetividade da proteção a tais bens, ainda que respeitada a legislação federal e estadual, se ao município não forem outorgados poderes normativos, considerando que cada localidade possui estruturas administrativas próprias e reflete os valores tradicionais de uma população diferenciada, com seus hábitos e culturas peculiares?

Seria um rematado disparate afirmar que o município  a quem foi conferida pela Constituição a competência administrativa para preservar o patrimônio cultural (artigos 216, §1º, e 23, III e IV)  não pudesse, para cumprir tal missão, legislar sobre o tema de forma a legitimar a sua atuação de acordo com as particularidades locais.

Por isso, é preciso reconhecer que os municípios brasileiros possuem competência legislativa para tratar do patrimônio cultural desde que observados os seguintes limites estabelecidos pelo texto constitucional: a) tratar de assunto de interesse local, nos limites do seu território; b) observar as normas editadas sobre o assunto em nível estadual e federal, que poderão ser apenas suplementadas.

Desta forma, nos alinhamos aos ensinamentos de Carlos Frederico Marés de Souza Filho, que assim leciona [5]:   

"Compreende peculiar interesse do município e evidente interesse local o cuidar das coisas da cidade e é nela que estão concentrados os bens culturais, sejam federais, estaduais ou locais. Os bens móveis, as obras de arte, peças históricas, documentos e livros, estão em regra acondicionados em museus espalhados pela cidade. Os imóveis, com predominância dos conjuntos e prédios urbanos, mas também muitas vezes as paisagens notáveis e mesmo os sítios arqueológicos, paleontológicos ou ecológicos, estão inseridos dentro das cidades, causando serviços e obrigações às autoridades municipais além da obrigação constitucional de protegê-los. A existência destes bens gera problemas de ordem urbanística, de trânsito, de ambientação, de visualização, de poluição que devem ser resolvidos por normas municipais, exigindo que as autoridades locais contem com serviços especiais que, fruto de sua autonomia, devem auto-organizar.
Assim, é claro que o Município tem competência para legislar sobre o patrimônio cultural referente ao seu território, a bens que tenha relevância para a cultura da municipalidade. É evidente que estes bens podem ser também referentes ao Estado ou à Nação, ou mesmo à humanidade, mas continuam sendo de interesse local, e podem não ser da Nação, e então, com maior razão, compete ao Município legislar a sua proteção".

Evidente que, em havendo descompasso da legislação municipal com as regras gerais estabelecidas pelos outros entes federativos, a norma local padecerá de inconstitucionalidade, consoante se depreende do seguinte entendimento firmado pelo TJ-MG acerca de lei municipal que restringia a incidência de tombamento somente aos casos em que o próprio proprietário o requeresse, extirpando, naquela urbe, a figura do tombamento compulsório previsto no artigo 8º do DL 25/37:

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DISPOSITIVO LEGAL DO MUNICÍPIO DE FORMIGA. RESTRIÇÃO DO TOMBAMENTO SOMENTE À HIPÓSTESE EM QUE O PROPRIETÁRIO O REQUERER. NORMA QUE CONTRARIA A REGRA GERAL JÁ EDITADA PELA UNIÃO. INOBSERVÂNCIA DA COMPETÊNCIA SUPLEMENTAR DO MUNICÍPIO NA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO, CULTURAL, ARTÍSTICO, TURÍSTICO E PAISAGÍSTICO. INVASÃO DE COMPETÊNCIA. VÍCIO DE CONSTITUCIONALIDADE. Constatada a existência de normas federais e/ou estaduais tratando da mesma temática tratada na norma impugnada, o exame na ADI, a fim de averiguar a observância à repartição da competência legislativa, realizar-se-á em relação às regras gerais já estabelecidas pela União e pelo Estado. Eventual ofensa, pela lei atacada, às disposições gerais já estabelecidas, configurará invasão de competência e, via de consequência, vício de inconstitucionalidade" (TJ-MG – Ação Direta Inconst 1.0000.17.027197-7/000, relator: desembargador Luiz Artur Hilário, Órgão Especial, julgamento em 29/5/2018, publicação da súmula em 30/05/2018).

Enfim, são essas as principais considerações acerca da divisão de competência para legislar sobre a proteção do patrimônio cultural em nosso país.

 


[1] Competências Administrativas dos Estados e Municípios. Doutrina Jurídica Brasileira, Caxias do Sul: Plenum, 2004. 1 CD-ROM. ISBN 85-88512-01-7.

[2] Idem, ibidem.

[3] SANTANA, Jair Eduardo. Competências legislativas municipais. 2. Ed. Belo Horizonte: Del Rey,  1998. p. 153.

[4] SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 4. ed. 2. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 80.

[5] Bens culturais e proteção jurídica. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1999. p. 115.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça em Minas Gerais, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Cultural da Rede Latino-Americana do Ministério Público e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos-Brasil).

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