Opinião

A inconstitucionalidade dos conselhos de Educação Física e o indébito das anuidades

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12 de novembro de 2021, 20h33

1) Requisitos dos atos administrativos
O Conselho Regional de Educação Física é uma autarquia corporativa, entidade com atuação de interesse público encarregada de exercer o controle e a fiscalização sobre os educadores físicos.

As anuidades possuem natureza de tributo, conforme já explanado anteriormente, cujo lançamento dá-se de ofício pela autoridade administrativa competente.

Segundo determina a lei pátria, em seu artigo 142 do CTN:

"Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional".

Pela teoria tripartite (pontesiana), há três planos lógicos de interação dos atos administrativos — de maneira que, em regra, um plano não repercutirá no outro; são eles: existência, validade e eficácia.

A validade trata-se da conformidade do ato administrativo com os requisitos determinados pelo ordenamento jurídico:

a) Competência: verificação se o ato foi praticado por agente ao qual a lei atribui poder para sua execução;

b) Forma: modo de exteriorização do ato administrativo deve ser aquele determinado pela lei;

c) Finalidade: diz respeito ao objetivo de interesse público a que o ato busca atingir;

d) Motivo: é a identificação entre o fundamento jurídico e a realidade concreta (situação de fato); e

e) Objeto: conteúdo ou resultado pretendidos pelo ato administrativo.

Tomando-se como análise o requisito da competência, para que o ato seja válido deve ser realizada a verificação se este foi praticado pelo agente a que a lei atribui poder para desempenho daquela função. No caso de tributos, a lei pátria determina a competência para lançamentos de tributo à autoridade administrativa com função para constituir o crédito tributário pelo lançamento.

Portanto, lançamento tributário é de competência exclusiva de autoridade administrativa que componha um órgão administrativo (ou entidade da administração indireta) com competência para lançar tributos.

Entretanto, como se demonstrará a seguir, a lei criadora dos Conselhos Regionais de Educação Física é inconstitucional; desse modo, a lei que os criou já nasceu morta e, assim sendo, as anuidades lançadas por autoridades administrativas empossadas em razão da criação das mencionadas autarquias profissionais são nulas, porque falta-lhes o preenchimento do requisito da competência para o ato administrativo de lançamento tributário.

2) A inconstitucionalidade do artigo 4º da Lei federal nº 9.696/1998
A inconstitucionalidade pode ser por ação ou omissão. A primeira subdivide-se em formal, material ou, ainda, pode ser aquela relacionada ao decoro parlamentar.

A inconstitucionalidade por ação formal (nomodinâmica) relaciona-se ao procedimento legislativo, ao processo formal de criação da lei. Ainda, subdivide-se, doutrinariamente, a inconstitucionalidade por ação formal em: a) orgânica, quando se tratar de vício relacionado ao processo legislativo e à competência federativa; b) formal propriamente dita, quando houver vício acerca à fase de iniciativa de um projeto de lei (subjetivo) ou quando ocorrer nas demais fase do procedimento legislativo (objetivo).

Há inconstitucionalidade do artigo 4º da Lei federal nº 9.696/1998, o qual criou os Conselhos Regionais de Educação Física. Explica-se: a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 61, parágrafo 1º, inciso II, alínea "e", determina a competência legislativa para iniciativa de projeto de lei que crie e extinga ministérios e órgãos da Administração Pública:

"Artigo 61 — A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
§1º. São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
I – fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;
II – disponham sobre:
a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;
b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI".

Ainda:

"Artigo 84 — Compete privativamente ao Presidente da República:
(…)
III – iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição".

Desse modo, está estampado de forma bastante explícita que a iniciativa de lei para criação de órgão da Administração Pública é privativa do presidente da República, de maneira que um projeto de lei que crie órgão da administração pública por iniciativa de parlamentar que compõe a Câmara dos Deputados está eivado de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (inconstitucionalidade formal subjetiva). Trata-se de competência exclusiva (ou reservada), em razão da sua inerente indelegabilidade

No caso, o texto constitucional (artigo 61, parágrafo 1º, inciso II, alínea "e", da CF/88) deve ser interpretado de forma teleológica, já que não se refere expressamente à autarquia, mas a "órgãos". Isso porque o que a Constituição Federal buscou foi determinar ao chefe do executivo a aferição de conveniência e oportunidade em relação à criação de órgãos/entidades que executassem funções públicas. Desse modo, o termo órgão estampado na carta magna tem sentido amplo, para alcançar os órgãos públicos — em sentido estrito — bem como as pessoas jurídicas que fazem parte da Administração Pública, como é o caso das autarquias.

A Lei nº 9.696, de 1º de setembro de 1998, sancionada e em vigor desde a mesma data, criou os Conselhos Regionais e Nacional de Educação Física, por iniciativa do então deputado Eduardo Mascarenhas, do PSDB.

As contribuições dos conselhos profissionais são verdadeira espécie tributária, razão pela qual são executadas na seara federal, por tratar-se de execução fiscal que exige tributo federal, conforme enunciado de tese fixada pelo STJ: As anuidades devidas aos conselhos profissionais constituem contribuição de interesse das categorias profissionais, de natureza tributária, sujeita a lançamento de ofício [1].

Também é pacífico que a sanção ofertada à lei pelo presidente da República à época não é capaz de elidir a inconstitucionalidade da iniciativa de lei, conforme entendimento pacificado na STF na ADI 2.867, relator Celso de Mello. Ainda, há entendimento contemporâneo acerca deste entendimento, senão vejamos:

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. PROCESSO LEGISLATIVO NO ÂMBITO ESTADUAL. ART. 70, §2º, CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. VÍCIO DE INICIATIVA DE PROJETO DE LEI. SANÇÃO DO PODER EXECUTIVO. AUSÊNCIA DE CONVALIDAÇÃO PROCESSUAL DO VÍCIO DE INICIATIVA. PRECEDENTES. PROCEDÊNCIA. INCIDÊNCIA DA REGRA DO ART. 27 DA LEI 9.868/99. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO. SITUAÇÃO DE TUTELA DA SEGURANÇA JURÍDICA E EXCEPCIONAL INTERESSE SOCIAL. 1. Sanção executiva não tem força normativa para sanar vício de inconstitucionalidade formal, mesmo que se trate de vício de usurpação de iniciativa de prerrogativa institucional do Chefe do Poder Executivo. O processo legislativo encerra a conjugação de atos complexos derivados da vontade coletiva de ambas as Casas do Congresso Nacional acrescida do Poder Executivo. Precedentes. 2. Os limites da auto-organização política não podem violar a arquitetura constitucional estruturante. O processo legislativo encerra complexo normativo de edificação de espécies normativas de reprodução obrigatória. Nesse sentido, a interpretação jurídica adscrita ao art. 25 da Constituição Federal (ADI 4.298, ADI 1.521, ADI 1.594. ADI 291). 3. Norma originária de conformação do processo legislativo estadual com vigência há mais de três décadas. A modulação dos efeitos da decisão, no caso, apresenta-se como necessária para a tutela adequada da confiança legítima que resultou na prática de atos com respaldo em utoridade aparente das leis publicadas e observa a boa-fé objetiva enquanto princípio geral de direito norteador das decisões judiciais. 4. Ação direta de inconstitucionalidade procedente, com atribuição de modulação dos efeitos da decisão" [2].

Ainda, há a Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 3.428, que tramita no Supremo Tribunal Federal, a qual visa a justamente a declaração da inconstitucionalidade dos artigos 4º e 5º. Sabe-se que os ministros Luiz Fux (relator), Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski, em julgamento iniciado, conheceram da ação direta e julgaram procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 4º e 5º da Lei federal nº 9.696/1998. Contudo, o processo encontra-se suspenso devido ao pedido do ministro Gilmar Mendes, razão pela qual ainda não foi totalmente apreciado e julgado [3].

É pacífico, na jurisprudência pátria, a natureza jurídica autárquica dos conselhos profissionais.

Autarquias são pessoas jurídicas de Direito Público interno, que compõem a Administração Pública Indireta, as quais devem ser criadas por lei específica para o exercício de atividades típicas da Administração Pública.

Desse modo, as autarquias verdadeiramente praticam atos administrativos, seus bens são públicos e, portanto, sofrem controle dos tribunais de contas, sujeitando-se à contabilidade pública.

Tendo-se como parâmetro o sistema norte-americano (denominado de Marshal) para análise da inconstitucionalidade das leis, adota-se, no Brasil, a teoria da nulidade da norma inconstitucional. De acordo com esta, o vício na norma é aferido no plano da validade, de maneira que se declara a nulidade do ato nulo, írrito — ato já nasceu nulo. Assim sendo, a decisão que reconhece a inconstitucionalidade tem eficácia declaratória, com invalidação da norma ab initio, pelo que os efeitos da decisão são ex tunc (para trás) [4].

Diante disso, uma vez declarada a inconstitucionalidade do dispositivo criador do conselho regional, deve ser reconhecida a invalidade da norma criadora desde o início. Tendo isso como parâmetro, a realidade é que o conselho regional jamais teve existência válida, de maneira que também se consideram inválidos os atos praticados e os procedimentos iniciados por seus agentes, posto que empossados por uma autarquia sem existência em consonância com o ordenamento jurídico pátrio.

Assim sendo, as anuidades exigidas e cobradas são, na realidade, indevidas, porque exigidas em razão de lançamento tributário realizado por agente sem competência necessária para tanto, já que empossado por autarquia natimorta, sem poder para praticar ato administrativo de lançamento de ofício de tributo (natureza jurídica das anuidades), ato administrativo vinculado.

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