Seguros Contemporâneos

O Código do Cantão de Zurique e o Direito dos Seguros brasileiro (parte 1)

Autores

  • Bruno Miragem

    é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) advogado e parecerista.

  • Luiza Petersen

    é advogada professora doutoranda e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e foi pesquisadora visitante e bolsista do Max Planck Institute for Comparative and International Private Law.

11 de novembro de 2021, 8h00

Historicamente, a cultura jurídica brasileira sempre se mostrou aberta a recepcionar teorias, institutos e conceitos jurídicos estrangeiros. Conforme conhecida afirmação, o Direito brasileiro é galho da árvore do Direito português. Sua origem se explica a partir de longa tradição, de sede romana, mas que se bifurca, em linha de continuidade com o Direito português, combinado com a grande influência de outros sistemas jurídicos. Nesse particular, são significativos os aportes do Direito francês, do alemão (este, inicialmente, a partir das traduções de originais para o francês, no século 19) e do italiano. No Direito Privado brasileiro, a influência estrangeira é observada tanto nas codificações civis, de 1916 e de 2002, e comercial, de 1850, como na doutrina, que se caracteriza pela tradição comparatista, assim, desde Teixeira de Freitas, passando por Clóvis Beviláqua, Pontes de Miranda e Haroldo Valadão, entre outros, até os dias atuais [1].

O Direito dos Seguros brasileiro se insere nessa tradição de abertura a outros sistemas jurídicos. Suas origens legislativas e doutrinárias na tradição portuguesa, sendo determinante, no ponto, a obra do Visconde de Cairu ("Princípios de direito mercantil e leis da marinha"), publicada em 1798, e a contribuição do mesmo autor para a elaboração do Código Comercial brasileiro, de 1850. Receberá também, forte influência do Direito francês, como resultado da disciplina do seguro marítimo no Código Comercial. Mais recentemente destaca-se a importância do Direito italiano, observada, por exemplo, pela aceitação da teoria da empresa, desenvolvida por Cesare Vivante, na doutrina brasileira [2], e pelas disposições do Código Civil de 2002 inspiradas no Código Civil italiano — a exemplo do artigo 798, que ao dispor sobre o suicídio no seguro de vida, prevê o prazo de carência de dois anos [3]. Merece registro, ainda, a opção do legislador de 2002 ao distinguir e disciplinar em seções distintas os seguros de danos e de pessoas, após a previsão de disposições gerais, inspirado nos modelos consagrados em França, Alemanha e Itália [4].

Porém, não tão conhecida ou explorada pela doutrina brasileira é a contribuição do Direito suíço, mais especificamente, do Código do Cantão de Zurique, para a formação do Direito dos Seguros brasileiro. Trata-se de influência legislativa que resultou da recepção de suas normas relativas ao contrato de seguro pelo Código Civil de 1916, e que terá repercussões até hoje, podendo ser observada em uma série de disposições do atual Código Civil. É explicada por duas circunstâncias relacionadas ao processo de codificação no Brasil. Em primeiro lugar, a forte inspiração do Projeto Coêlho Rodrigues no Código do Cantão de Zurique, não apenas em matéria de seguro, mas em diversos outros temas. De outro lado, pela grande aceitação que o Projeto Coêlho Rodrigues teve no Projeto Beviláqua, no tocante à disciplina do contrato de seguro, tomando dele a inspiração no modelo suíço.

Pontes de Miranda, ao expor a respeito do contrato de seguro no Código Civil de 1916, é categórico ao afirmar: "Diremos pouco; a fonte principal foi o Código Civil do Cantão de Zurique" [5]. A assertiva pode ser confirmada pelo próprio Clóvis Beviláqua, em seus comentários doutrinários, ao sinalizar que, dos 45 dispositivos do capítulo relativo ao contrato de seguro (capítulo 14, título 5, livro 3), pelo menos 38 teriam alguma influência, direta ou indireta, do Código de Direito Privado do Cantão de Zurique (Privatrechtliches Gesetzbuch für Der Kanton Zürich) [6].

O Código de Direito Privado do Cantão de Zurique, de 1855, é fruto da pandectistica suíça, de autoria de Bluntschli, um dos principais expoentes desta escola de pensamento [7]. Caracterizou-se pelo espírito de conservar e inovar, ou seja, de preservar a tradição sem deixar de propor inovações quando necessário [8]. Especificamente em relação ao contrato de seguro, se insere no movimento legislativo iniciado na segunda metade do século 19, de regulamentação dos seguros terrestres — até então, apenas os marítimos eram objeto de disciplina legal, e o seguro carecia de um corpo legislativo capaz de tratar de forma uniforme e sistematizada os seus diversos tipos [9]. Na sua versão original, o Código do Cantão regulou o contrato de seguro em seção específica (seção 11, do livro 4 (Direito das obrigações), artigos 1704 a 1760), dividida em três capítulos. O primeiro, com disposições gerais, a respeito da forma e condições do contrato, das obrigações do segurado e do segurador, e da prescrição. O segundo, sobre o seguro mutual. E o terceiro, dispondo a respeito de algumas espécies, a saber: seguro de incêndio, granizo, transporte, vida e morte de gado [10]. Mais adiante, na revisão do Código do Cantão, em 1887, empreendida por Albert Schneider, o seguro passou a constar dos artigos 496 a 552, da seção 7, livro 3 (Direito das Obrigações). Manteve-se, na ocasião, a mesma estrutura da seção, com a previsão de três capítulos: o primeiro, com disposições gerais; o segundo, sobre o seguro mutual; e o terceiro sobre os diferentes tipos, com o acréscimo do seguro de sobrevivência [11]. Em relação ao conteúdo propriamente dito das normas, preservou-se, naquilo que possível, a redação original, promovendo-se alterações pontuais, necessárias à sua adequação à nova legislação federal suíça [12]. O Código cantonal então, cuja notoriedade, à época, transcendeu os limites do próprio território suíço, viria, mais tarde, a influenciar o Direito brasileiro.

Conforme já se destacou, a influência do Código do Cantão de Zurique sobre o Direito dos seguros no Brasil se dá por intermédio do projeto de Código Civil de Coêlho Rodrigues [13]. Apresentado em 1893, o projeto é fruto da escalação de Antônio Coêlho Rodrigues, ainda pelo governo de Deodoro da Fonseca, em 1890, para a redação do Código Civil brasileiro. Para a realização do trabalho, Coêlho Rodrigues instalou-se em Genebra, onde receberia os influxos do que havia de mais moderno no direito suíço [14]. Daí a sua forte inspiração no Código do Cantão de Zurique. O aporte suíço, inclusive, não passaria despercebido pela comissão revisora do projeto. Em uma das suas manifestações, esta chegou a observar o seguinte a propósito da disciplina dos direitos reais: "Por ter encontrado originalidade em algumas disposições do Código Civil do cantão de Zurich, mas sem indagar si essas disposições consagravam apenas usos locaes (…), resolveu-se o autor a, com ligeira e ás vezes damnosa modificação de fórma, trasladal-o para o seu projecto, em toda a parte relativa aos direitos reaes, capitulo por capitulo, secção por secção, artigo por artigo. Foi uma cópia servil (…)". Nesse contexto, lança duras críticas ao que seria, no âmbito do instituto da servidão, um transplante "sem reflexão" do Código de Zurique [15]. Por diversas razões, então, o projeto acabou não sendo acolhido, após sua apresentação, no governo de Floriano Peixoto.

Em relação à disciplina do contrato de seguro, o Projeto Coêlho Rodrigues seguiu o modelo suíço do Código de Zurique na estrutura e conteúdo de suas normas. Tratou do seguro em título específico (título 9), artigo 922 e ss do livro relativo ao direito das obrigações (livro 1). Sua estrutura era dividida em três capítulos. O primeiro, com disposições gerais (seção 1), seguidas das obrigações do segurado (seção 2) e do segurador (seção 3); o segundo, disciplinando o seguro mútuo; e o terceiro, tratando das diferentes espécies de seguro: contra fogo (seção 1), contra seca e chuva (seção 2), contra riscos do transporte (seção 3), seguro de vida (seção 4), de sobrevivência (seção 5) e de gado (seção 6). No conteúdo, igualmente, muitas de suas normas também eram transplantes do direito suíço em maior ou menor grau [16].

Porém, tendo sido o projeto refutado pela comissão revisora, a recepção do modelo suíço no tocante à disciplina do contrato de seguro seria levada a efeito mais adiante, pelo projeto de Beviláqua, que resultou no Código de 1916. Conforme reconhecido pelo próprio Beviláqua, "principalmente o Esboço de Teixeira de Freitas e o Projecto do Dr. Coelho Rodrigues, mais seguidamente este que aquelle, forneceram-me copiosos elementos para a construcção que me havia sido confiada" [17]. Igualmente, nas palavras de Pontes de Miranda, "o Esboço de Teixeira de Feitas e o Projeto de Coelho Rodrigues — fontes memoráveis do Código Civil — caracterizam-se, principalmente o primeiro, por forte poder inventivo (….) O Código Civil brasileiro, pelo que deve a Clóvis Bevilaqua, é uma codificação para as Faculdades de Direito, mais do que para a vida. O que nele morde (digamos) a realidade vem de Teixeira de Freitas, ou de Coelho Rodrigues" [18].

Continua na parte 2

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.


[1] MIRAGEM, Bruno. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 12 e ss. p. 45 e ss.

[2] TZIRULNIK; CAVALCANTI; PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de Seguro. 3ª ed. São Paulo: Roncarati, 2016. p. 61-62.

[3] Sobre o debate no direito brasileiro: JUNQUEIRA, Thiago. O debate em torno do suicídio do segurado na experiência brasileira. In: VII Fórum de Direito do Seguro – IBDS. São Paulo: Roncarati, 2018.

[4] COMPARATO, Fábio Konder. Substitutivo ao capítulo referente ao contrato de seguro no anteprojeto do Código Civil. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, ano XI, nº 5, p.143-152, 1972. p. 146 e ss.

[5] PONTES DE MIRANDA. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 1981. p. 324.

[6] BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. 5ª Tiragem. Rio de Janeiro: Rio, 1973. p. 560 e ss. Neste particular, o autor também observa a influência de outros sistemas jurídicos, como o direito belga, espanhol, português, italiano. Porém, prevalece a influência do Código de Zurique.

[7] WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 506, 562 e 567.

[8] LEHR, Ernest. Code Civil du Canton de Zurich de 1887, Traduit et annoté. Paris: Imprimerie Nationale, 1890. p. LI e ss.

[9] DONATI, Antigono. Trattato del Diritto delle Assicurazioni Private. I. Milano: Giuffrè, 1952. p. 77 e ss.

[10] BLUNTSCHLI, Johann Caspar. Privatrechtliches Gesetzbuch für den Kanton Zürich. Das zürcherische Obligationenrecht. 3 Band. Zürich: Schulthess, 1855. p. 572 e ss.

[11] SCHNEIDER, Albert. Privatrechtliches Gesetzbuch für den Kanton Zürich: auf grundlage des bluntschli'schen kommentars. Zürich: Schulthess, 1888. p. 48 e ss.

[12] LEHR, Ernest. Code Civil du Canton de Zurich de 1887. Cit. p. 122 e ss.

[13] COÊLHO RODRIGUES, Antônio. Projeto do Código Civil Brazileiro, precedido de um projecto de lei preliminar. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893.

[14] CARVALHO, Nayra Rodrigues; ARAÚJO, Johny Santana de. História e memória de Antônio Coelho Rodrigues: sua contribuição para a formação do estado nacional brasileiro.

[15] COÊLHO RODRIGUES, Antônio. Projeto do Código Civil. Parecer da comissão, exposição de motivos, refutação do parecer e resposta pela comissão dada à refutação. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893. p. 14 e 15 da “resposta pela comissão dada à refutação”.

[16] COÊLHO RODRIGUES, Antônio. Projeto do Código Civil Brazileiro. Cit. p. 113 e ss.

[17] BEVILÁQUA, Clóvis. Em defesa do projecto de Código Civil Brazileiro. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906. p. 26.

[18] PONTES DE MIRANDA. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Cit. p. 86-87.

Autores

  • é advogado, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

  • é advogada, professora, doutoranda e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e foi pesquisadora visitante e bolsista do Max Planck Institute for Comparative and International Private Law.

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