Opinião

A utilização desvirtuada da Lei da Sociedade Anônima do Futebol

Autor

  • Theotonio Chermont de Britto

    é advogado especializado em direito trabalhista desportivo representante de clubes e atletas em geral membro do Tribunal Arbitral Desportivo do CBMA presidente da Comissão Nacional de Direito Desportivo da Associação Brasileira de Advogados (ABA) sócio do escritório C.E. Chermont de Britto Advogados Associados.

11 de novembro de 2021, 6h35

Recentemente, tivemos ciência de decisões isoladas  cada vez mais frequentes  conferindo a clubes de futebol  associações sem fins lucrativos  o benefício do concurso de credores com o suposto amparo da nova Lei nº 14.193/2021  Lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), criando perigosíssimos precedentes que permitirão que, de forma oportuna, sejam ignoradas as regras da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho de 2019  atualmente em vigor que versa sobre os Planos Especiais de Pagamento Trabalhista (PEPT, artigo 151 e seguintes) e a instauração do Regime Especial de Execução Forçada (Reef, artigo 154 e seguintes), sendo este último aplicável nos casos em que o PEPT foi descumprido por sonegação dos valores acordados com o tribunal para o pagamento dos credores [1].  

Clubes como Vasco, Botafogo, Portuguesa e, mais recentemente, Vila Nova, foram beneficiados pela Lei 14.193/2021 e tiveram o direito reconhecido pela Justiça para instaurar o Regime Centralizado de Execuções (REC), o que gerou decisões conflitantes e guerra de liminares, prejudicando uma interminável coletividade de credores que aguardam por décadas o recebimento dos seus créditos e estavam, ainda que a duras penas, conseguindo êxito nas execuções forçadas com base nas regras do provimento supra citado.

A Lei nº 14.193/2021, originária do PL nº 5516/2019, foi fruto de debates com os mais diversos "atores" e interessados em sua criação, sempre de forma democrática, mas andou mal com relação ao sistema de pagamento dos credores e respeito às regras da sucessão trabalhista. O quadro caótico vivenciado nos Tribunais do Trabalho e na Justiça comum é resultado da postura oportunista dos clubes requerentes combinada com a falta de clareza do legislador no tocante ao real destinatário da lei.

Toda a interpretação e aplicação dos ditames da Lei nº 14.193.2021 (Lei da SAF) estão direta e obrigatoriamente vinculados a criação da sociedade anônima do futebol por parte dos clubes interessados, nos termos do artigo 2º da citada lei. A partir da sua constituição o clube ou pessoa jurídica original serão por ela (SAF) sucedidos [2]. Portanto, não basta apenas "ser clube"  requisito subjetivo exigido pelo artigo 13 da Lei do SAF  para fazer jus aos seus benefícios.

Imperioso ressaltar que a atual constituição associativa das agremiações esportivas não permite aos credores o acesso aos balanços, balancetes, acervo patrimonial declarado e demais informações financeiras e societárias, ou mesmo estatutárias, o que é possível em outros tipos empresariais, inclusive mediante laudos realizados por empresas de auditoria externa, para fins de correta aferição e análise de proposta de pagamento. Inclusive, esse foi um ponto muito discutido na época do PL 5516/2019, razão pela qual a nova lei criou a figura da sociedade anônima do futebol exatamente para permitir medidas de controle, governança, transparência, entre outras, que a esmagadora maioria das associações sem fins lucrativos nunca priorizou, impossibilitando os credores de terem meios de acessar informações contábeis com clareza e exatidão.

Como dito no jargão popular, clubes de futebol são empresas de ninguém, dificilmente são fiscalizados, gastam mais do que podem, pouquíssimos tem sua contabilidade clara e transparente, seus dirigentes são blindados pela Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé) no tocante a responsabilização com bens pessoais, entre outros dificultadores para que necessita receber suas dívidas. Um completo incentivo ao descumprimento da lei.

Destarte, a aplicação de quaisquer dispositivos previstos na Lei nº 14.193/2021 a clubes de futebol que não tenham optado por constituir sua SAF possui o condão de desvirtuar por completo a legislação em comento, abrindo imensa margem à ocorrência de fraude contra credores e fraude à execução, o que deve ser repudiado pelos tribunais.

O próprio título da Lei nº 14.193/2021 define o seu regramento:

"Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)".

O real intuito da criação da Lei da Sociedade Anônima do Futebol foi permitir que os clubes pudessem auferir investimentos de terceiros, tal como fartamente noticiado na mídia esportiva, sem que ficassem inviabilizados com a obrigação de quitar suas altíssimas dívidas de uma só vez ou mesmo com a constrição dos valores investidos, o que obviamente afastaria qualquer interesse no negócio. O argumento era que a lei deveria ser "atrativa" para os investidores.

Como contrapartida, criou mecanismos para vincular o pagamento das dívidas ao clube ou pessoa jurídica sucedidos (original), através de repasses de percentuais que a eles seriam destinados pela SAF, empresa que poderia ser fiscalizada pelos órgãos competentes, juntamente com seus gestores. Entretanto, andou mal a lei ao desobrigá-la do pagamento imediato das dívidas do clube ou pessoa jurídica originais (sucedidos), conforme disposto no artigo 9º da Lei nº 14.193/2021 [3]. A blindagem da sucessora de responder imediata e ilimitadamente pelas obrigações dos sucedidos incorre em fraude ao disposto no artigo 448-A da CLT [4].

No tocante ao extenso prazo de pagamento das dívidas, foi priorizado o incentivo aos investimentos, em detrimento da celeridade e princípio constitucional da razoável duração do processo. Somente após ultrapassados dez anos, a sucessora SAF responderá pela dívida de forma subsidiária, e não solidária, como determina a regra da sucessão trabalhista do artigo 448-A da CLT, conforme disposto nos artigos 15 e 24 do diploma legal em comento:

"Artigo 15  O Poder Judiciário disciplinará o Regime Centralizado de Execuções, por meio de ato próprio dos seus tribunais, e conferirá o prazo de 6 (seis) anos para pagamento dos credores.
§1º.  Na ausência da regulamentação prevista no caput deste artigo, competirá ao Tribunal Superior respectivo suprir a omissão.
§2º.  Se o clube ou pessoa jurídica original comprovar a adimplência de ao menos 60% (sessenta por cento) do seu passivo original ao final do prazo previsto no caput deste artigo, será permitida a prorrogação do Regime Centralizado de Execuções por mais 4 (quatro) anos, período em que o percentual a que se refere o inciso I do caput do artigo 10 desta Lei poderá, a pedido do interessado, ser reduzido pelo juízo centralizador das execuções a 15% (quinze por cento) das suas receitas correntes mensais.
Artigo 24 
 Superado o prazo estabelecido no artigo 15 desta Lei, a Sociedade Anônima do Futebol responderá, nos limites estabelecidos no artigo 9º desta Lei, subsidiariamente, pelo pagamento das obrigações civis e trabalhistas anteriores à sua constituição, salvo o disposto no artigo 19 desta Lei".

Os benefícios elencados na Lei nº 14.193/2021, desde a época da discussão no âmbito do PL nº 5516/2019, estão diretamente vinculados a transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF, até mesmo porque esta última será a garantidora dos credores caso o clube não consiga pagar as dívidas no extenso período de dez anos.

Para demonstrar o alcance da norma jurídica, devemos precisar a quais fatos se refere. Para tanto, por vezes, precisaremos identificar os fenômenos contidos nos significados de algumas palavras ou expressões. O termo "original" não foi inserido à toa em inúmeros trechos da legislação, devendo ser entendido o real motivo, sendo princípio basilar de hermenêutica jurídica, aquele que a lei não contém palavras inúteis: verba cum effectu sunt accipienda. Ou seja, as palavras devem ser compreendidas como tendo alguma eficácia. Não se presumem, na lei, palavras inúteis [5].

Deve, portanto, o intérprete distinguir as obrigações de cada parte formada nesse novo modelo de relação entre sucessora (SAF) e sucedido (clube ou pessoa jurídica original). Apesar da sucessão trabalhista/empresarial, os clubes ou pessoas jurídicas originais (sucedidos) não deixarão de existir, havendo na Lei nº 14.193/2021 expressa vinculação empresarial, sendo descabida qualquer análise separada das obrigações de cada uma das partes. Certamente, o tema da sucessão trabalhista e/ou formação de grupo econômico será discutido em todos os regionais.

Urge esclarecer que, apesar das demandas por parte de muitos clubes para serem beneficiados com o novo sistema de pagamento de dívidas  Regime de Centralização das Execuções (RCE) —, mediante a formação de concurso de credores, se faz necessária a leitura do citado artigo 10 para melhor compreensão da forma como os pagamentos serão realizados:

"Artigo 10  O clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas QUE LHE SERÃO TRANSFERIDAS PELA SOCIEDADE ANÔNIMA DO FUTEBOL, quando constituída exclusivamente:
I
por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do artigo 13 desta Lei;
II
por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista".

A lei é clara e expressa no sentido de que o Regime de Centralização das Execuções somente poderá ser implementado com o auxílio da figura garantidora e solidária da SAF, ou caso essa última figure na condição de acionista do clube original. Tanto é que o artigo 11 expressamente responsabiliza os gestores da SAF pelos repasses financeiros ao clube original no concurso de credores previsto no artigo 10 que vem sendo pretendido por alguns clubes que nunca constituíram a sua SAF. Vejamos:

"Artigo 11  Sem prejuízo das disposições relativas à responsabilidade dos dirigentes previstas no artigo 18-B da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, os administradores da Sociedade Anônima do Futebol respondem pessoal e solidariamente pelas obrigações relativas aos repasses financeiros definidos no artigo 10 desta Lei, assim como respondem, pessoal e solidariamente, o presidente do clube ou os sócios administradores da pessoa jurídica original pelo pagamento aos credores dos valores que forem transferidos pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme estabelecido nesta Lei".

Se na prática sempre foi complicado os clubes devedores pagarem suas dívidas, imaginem sem a contribuição da SAF, figura obrigatória nos planos de pagamento.

Não pode o legislador analisar de forma isolada os artigos que melhor aproveitam alguns clubes requerentes, mas, sim, a lei em todo o seu teor e escopo.

O artigo 13 [6] encontra-se isolado na Seção V ("Do Modo de Quitação das Obrigações") e versa única e exclusivamente sobre os meios alternativos facultados pela lei para o clube pagar suas dívidas, nada mais do que isso, o que vem causando interpretações equivocadas por parte de alguns magistrados e criando perigosos precedentes no sentido de aplicação ampla a irrestrita da Lei nº 14.193/2021 a qualquer agremiação esportiva.

O simples fato de o legislador não fazer menção à sociedade anônima do futebol, mas apenas ao "clube ou pessoa jurídica original", em hipótese alguma comprova que tais entidades  isoladamente  fazem jus ao Regime Centralizado de Execuções, pois o referido dispositivo legal não versa sobre regras de pagamento previstas no artigo 10 que expressamente exigem a presença da SAF como devedora solidária e garantidora do clube original (inciso I) ou na condição de acionista (inciso II).  

A Seção IV ("Das Obrigações da Sociedade Anônima do Futebol") engloba todos os parâmetros de pagamento exaustivamente narrados, do artigo 9º ao artigo 12, se fazendo pertinente, novamente, demonstrar que todos eles vinculam as obrigações do clube ou pessoa jurídica original com a SAF:

"Artigo 9º — A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no §2º do artigo 2º desta Lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no artigo 10 desta Lei".

Não há, portanto, como aceitar a tese de que as regras da nova Lei da SAF se aplicam indiscriminadamente a todos os clubes devedores, sem exceção, sob pena de se desvirtuar o seu escopo e premiar contumazes infratores que muitas vezes agiram de má fé com os credores e com os tribunais quando foram beneficiados por diversos e sucessivos planos especiais de execução de suas dívidas.

 


[1] "§1.º O Regime Especial de Execução Forçada (REEF) poderá originar-se:
I – do insucesso do Plano Especial de Pagamento Trabalhista (PEPT)".

[2] "Artigo 2º – A Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída:
I – pela
transformação do clube ou pessoa jurídica original em Sociedade Anônima do Futebol;
II – pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol;
III – pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento".

[3] "Artigo 9º – A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no §2º do artigo 2º desta Lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no artigo 10 desta Lei. Parágrafo único. Com relação à dívida trabalhista, integram o rol dos credores mencionados no caput deste artigo os atletas, membros da comissão técnica e funcionários cuja atividade principal seja vinculada diretamente ao departamento de futebol". 

[4] "Artigo 448-A – Caracterizada a sucessão empresarial ou de empregadores prevista nos artigos 10 e 448 desta Consolidação, as obrigações trabalhistas, inclusive as contraídas à época em que os empregados trabalhavam para a empresa sucedida, são de responsabilidade do sucessor (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017).
Parágrafo único. A empresa sucedida responderá solidariamente com a sucessora quando ficar comprovada fraude na transferência. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)".

[5] Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 8a. ed., Freitas Bastos, 1965, p. 262.

[6] "Artigo 13 – O clube ou pessoa jurídica original poderá efetuar o pagamento das obrigações diretamente aos seus credores, ou a seu exclusivo critério:
I – pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções previsto nesta Lei; ou
II – por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005".

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  • Brave

    é advogado especializado em direito trabalhista desportivo, representante de clubes e atletas em geral, membro do Tribunal Arbitral Desportivo do CBMA, presidente da Comissão Nacional de Direito Desportivo da Associação Brasileira de Advogados (ABA), sócio do escritório C.E. Chermont de Britto Advogados Associados.

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