Interesse Público

Nulidades na nova Lei de Licitações: antes nunc do que tunc

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11 de novembro de 2021, 8h00

No âmbito do Direito Administrativo tradicional, a matéria relativa ao ato administrativo, suas possíveis nulidades e respectivos efeitos, sempre ocupou lugar destacado nos manuais da disciplina e na operatividade da Administração Pública.

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A lição que comumente se reproduzia era a de que o reconhecimento da nulidade de um ato administrativo, seja pela própria Administração Pública (autotutela), seja pelo Poder Judiciário (heterotutela), deveria produzir efeitos retroativos (ex tunc).

Já na metade do século 20, na Alemanha, esse tema despertou grande interesse da doutrina e da jurisprudência, preconizando-se a substituição da prevalência do princípio da possibilidade de anulação pelo da impossibilidade de anulação, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídica [1]. Sob enfoque semelhante, a jurisprudência e a doutrina francesas desenvolveram a teoria do funcionário de fato, propondo salvaguardar efeitos de atos praticados por agentes incompetentes (irregularmente investidos), que exerciam suas funções com aparência de legalidade e boa-fé [2].

No Brasil, em trilha semelhante, alguns pronunciamentos jurisdicionais deram luz à teoria do fato consumado, utilizada pelos tribunais superiores [3], para preservar situação jurídica de terceiros que, por força de decisões judiciais não definitivas, ostentavam um status que, ao final, não se confirmava nas decisões de mérito, mas se afiguravam, sob prisma lógico, irreversíveis [4].

A percepção dessa abordagem mais prática e conectada às realidades da vida, impulsionou o Direito Administrativo mundial a caminhar da declaração de nulidade dos atos administrativos sem reservas (visão estritamente legalista) [5], para a irretroatividade sob certas condições, existindo posicionamento doutrinário, entre nós, a sustentar a segmentação dos efeitos da pronúncia de nulidade, quando se trate de atos restritivos de direito (efeitos ex tunc) e de atos ampliativos de direito (efeitos ex nunc) [6].

Essa sensibilidade jurídica mais pragmática e afinada com o contexto fático, adentrou paulatinamente o Direito positivo brasileiro, que tem evoluído nesse sentido nas últimas décadas. A Lei 9.784/99, por exemplo, previu, nos artigos 54 e 55, a decadência e a convalidação. A Lei 13.655/18, que incluiu dispositivos na Lindb, tratou de reconhecer a necessidade de a decisão anulatória (administrativa, judicial ou controladora) avaliar as consequências práticas da decisão (artigo 22), dispondo sobre a possibilidade de regimes transitórios de arrumação das nulidades (artigo 23), sem prejuízo de remeter a avaliação da validade dos atos administrativos às orientações gerais da época de sua edição (artigo 24) [7].

A Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21) segue a trilha da mudança. Dispõe o artigo 147 da Lei 14.133/21 que, uma vez constatada irregularidade no procedimento licitatório ou na execução contratual, caso não seja possível o saneamento da nulidade (superação dos vícios ou convalidação), a decisão sobre a suspensão ou anulação do contrato somente será adotada na hipótese em que se revelar medida de interesse público, com avaliação, entre outros, dos seguintes aspectos: a) impactos econômicos e financeiros decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato; b) riscos sociais, ambientais e à segurança da população local decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato; c) motivação social e ambiental do contrato; d) custo da deterioração ou da perda das parcelas executadas; e) despesa necessária à preservação das instalações e dos serviços já executados; f) despesa inerente à desmobilização e ao posterior retorno às atividades; g) medidas efetivamente adotadas pelo titular do órgão ou entidade para o saneamento dos indícios de irregularidades apontados; h) custo total e estágio de execução física e financeira dos contratos, dos convênios, das obras ou das parcelas envolvidas; i) fechamento de postos de trabalho diretos e indiretos em razão da paralisação; j) custo para realização de nova licitação ou celebração de novo contrato; k) custo de oportunidade do capital durante o período de paralisação.

Ao disciplinar a questão dessa maneira, a Lei 14.133/21 incorporou a anunciada tendência de relativização da unilateralidade administrativa e da pronúncia de nulidades, deixando o desfazimento contratual com efeitos ex tunc reservado a casos extremos. A Lei 14.133/21 estabeleceu, portanto, a possibilidade de uma avaliação quantitativa e qualitativa das irregularidades constatadas nas licitações e nos contratos, admitindo soluções customizadas de acordo com o interesse público em jogo e com os juízos prognósticos identificados pela Administração Pública ou pelo juiz ou árbitro no ato da decisão [8].

Nesse sentido, o parágrafo único do artigo 147 da Lei 14.133/21 expõe que caso a paralisação ou anulação não se revele medida de interesse público, a Administração Pública deverá optar pela continuidade do contrato e pela solução da irregularidade por meio de indenização por perdas e danos, sem prejuízo da apuração de responsabilidade e da aplicação de penalidades cabíveis.

Dessa forma, reconheceu-se que as soluções-padrão e uniformes são na maioria das vezes insuficientes para estabilizar expectativas legítimas das partes envolvidas na execução do contrato e, sobretudo, para promover segurança jurídica [9]. "Não há dúvida de que o sistema fechado e predelimitado de espécies e consequências para a modificação e a extinção dos atos administrativos é insuficiente para lidar com a variedade das situações concretas. Especialmente porque não permite que terceiros, que se relacionam com a Administração Pública, possam se planejar com segurança a partir das decisões do Estado. A construção hermética acaba levando o administrador e o julgador a optarem pelo caminho tradicional de extinção do ato, que parece mais seguro, mas onera a condição do administrado e nem sempre é condizente com os princípios constitucionais" [10].

Convém destacar que na jurisprudência judicial brasileira há decisões que refletem esse equilíbrio e ponderação propostos positivamente pela Lei 14.133/21 em ambiente contratual, a ver, no STJ, o Recurso Especial n° 950.489/DF, relator ministro Luiz Fux, em que o tribunal reconheceu a superação de uma nulidade da etapa da licitação, determinando a manutenção do contrato, considerando sanável o vício apontado e reconhecendo que eventual extinção do contrato acarretaria consequências mais desfavoráveis ao interesse público em jogo.

No TCU, em casos similares, mesmo quando há vícios na formalização de contratos ou nos certames precedentes, a corte vem optando pela manutenção do vínculo, por entender que a medida, em alguns casos, resta mais favorável ao interesse público. Nesse sentido, cabe referência ao recente Acórdão 2075/2021-TCU-Plenário, Raimundo Carreiro, em que se destaca o trecho que "a Administração pode, por razões de interesse público, não declarar a nulidade de ato ilegal verificado na formalização do contrato ou no certamente licitatório que o precedeu, quando tal medida puder causar prejuízo maior do que a manutenção do ato viciado" [11].

Por fim, também em prestígio aos princípios da boa-fé e do não enriquecimento sem causa, a Lei 14.133/21 (artigo 149) reproduziu a regra salutar do artigo 59, §1º, da Lei 8.666/93, estabelecendo que a nulidade não exonerará a administração do dever de indenizar o contratado, desde que a nulidade não seja a este imputável, pelo que houver executado até a data em que for declarada ou tornada eficaz, incluindo no montante da indenização além da contraprestação respectiva outros prejuízos regularmente comprovados. Nesse caso, a lei impõe a apuração de responsabilidades pela nulidade declarada.

Diante desse quadro, como visto, assiste razão a Juliano Heinen quando, em artigo publicado aqui na ConJur [12], sugeriu que refizéssemos nossas aulas de Direito Administrativo, a fim de não mais reproduzirmos o jargão de que a nulidade dos contratos administrativos operará efeitos ex tunc. Estes efeitos, considerando-se o interesse público subjacente, podem ser, por assim dizer, antes (ex) nunc do que (ex) tunc [13].


[1] BACHOF, Otto. Verfassungsrecht, Verwaltungsrecht, Bundesverwaltungsgerichts, Tübigen 1966; 3. Auflafe, v. I, p. 257 e segs.; v. II, 1967, p. 339 e segs., citado pelo ministro Gilmar Mendes no MS 24.833-5-DF, DJ 19/4/2004. É célebre a propósito o caso da viúva de Berlim, julgado pelo Tribunal Administrativo Superior de Berlim, de 14/11/1956 (DVBL 1975, 503). O caso era o seguinte: a demandante era viúva de um funcionário público, que se mudou da República Democrática Alemã para Berlim-Leste depois de lhe haverem prometido, por ato administrativo, a concessão de uma pensão. Um ano depois, a autoridade desfez o ato e suspendeu os pagamentos, sob a alegação de ausência de requisitos própiros. A jurisprudência até então, com base no princípio da legalidade, orientava-se nesse sentido. O Tribunal de Berlim decidiu, todavia, em favor da demandante, com fundamento no princípio da proteção à confiança (segurança jurídica), uma vez que ela confiou na existência do ato administrativo e alterou os rumos de sua vida. No caso concreto, a confiança legítima haveria de preponderar sobre a legalidade. O Tribunal Administrativo Federal confirmou a sentença do Tribunal de Berlim (BVerwGE 9, 251), passando a admitir desde então que a questão do desfazimento de atos administrativos ampliativos de direito é dominada por dois princípios, por um lado a legalidade (que predica em favor da retratação do ato), e, de outro, a proteção à confiança, que milita em favor da manutenção do ato beneficente. Como ambos os princípios requerem validez, mas estão em conflito um com o outro, devem, segundo a opinião do Tribunal Administrativo Federal, ser ponderados, no caso particular, para verificar de qual deles deve ser a primazia. E nesse cenário são possíveis soluções que diferenciam, por exemplo, a preservação ou a retratação limitada objetiva ou temporalmente (MAURER, Harmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Trad. Luis Afonso Heck, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2001, p. 70-71).

[2] Sobre a figura do funcionário de fato na França, a doutrina de Bonnard: "La qualité de fonctionnaire de fait est donc essentiellement affaire de circonstance. Elle doit être appréciée pour chaque cas particulier et c´est au juge qu’il appartiendra de feire cette appréciation" (Apud SEABRA FAGUNDES, Miguel. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1967. p. 70, nota 5).

[3] A fundamentação legal das decisões em regra é o artigo 493 do CPC/15.

[4] Cf., por todos, STJ — AgRg no REsp 1049131/MT, 2ª Turma. Humberto Martins, DJ de 25.06.2009; STJ — AgRg no Ag 946069/RS, 1ª Turma, Luiz Fux. DJ de 18/02/2009.

[5] Exemplo dessa visão antiquada sobre as nulidades e a prerrogativa de autotutela encontra-se no artigo 114 da Lei 8.112/90: "A administração deverá rever seus atos, a qualquer tempo, quando eivados de ilegalidade".

[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 20ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006. p. 86-87. Disserta o insigne professor que "nos atos unilaterais restritivos da esfera jurídica dos administrados, se eram inválidos, todas as razões concorrem para que sua fulminação produza efeitos ex tunc, exonerando por inteiro quem fora indevidamente agravado pelo Poder Público das consequências onerosas. Pelo contrário, nos atos unilaterais ampliativos da esfera jurídica do administrado, se este não concorreu para o vício do ato, estando de boa-fé, sua fulminação só deve produzir efeitos ex nunc, ou seja, depois de pronunciada." Reconhecendo a possibilidade de uma avaliação concreta e prevalente do interesse público na pronúncia ou não da nulidade dos atos administrativos, cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense: 2018, p. 329-330, verbis: "No direito privado, é possível a parte prejudicada pelo ato ilegal deixar de impugná-los, nos casos de nulidade relativa; nesse caso, o ato se convalida. No direito administrativo, já vimos que a Administração não pode ficar sujeita à vontade do particular para decretar ou não a nulidade. Mas a própria administração pode deixar de fazê-lo por razões de interesse público quando a anulação possa causar prejuízo maior do que a manutenção do ato".

[7] O Enunciado nº 7 do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo) registra: "Na expressão 'regularização' constante do art.21 da LINDB estão incluídos os deveres de convalidar, converter ou modular efeitos de atos administrativos eivados de vícios sempre que a invalidação puder causar maiores prejuízos ao interesse público do que a manutenção dos efeitos dos atos (saneamento). As medidas de convalidação, conversão, modulação de efeitos e saneamento são prioritárias à invalidação".

[8] FERRAZ, Luciano et. al. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Licitações e Contratos Administrativos: inovações da Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. São Paulo, Forense (Gen), 2021. p. 215.

[9] FERRAZ, Luciano et. al. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Licitações e Contratos Administrativos: inovações da Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. São Paulo, Forense (Gen), 2021. p. 216.

[10] SILVEIRA, Marilda de Paula. Segurança jurídica e ato administrativo: por um regime de transição de avaliação cogente (Tese de Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Área de concentração: Direito Administrativo, 2013. Orientador: Professor Doutor Florivaldo Dutra de Araújo, p. 151-152.

[11] No mesmo sentido, vejam-se os seguintes Acórdãos 1524/2013-TCU-Plenário, Raimundo Carneiro, 361/2011-TCU-1ª Câmara, relator o ministro Walton Alencar Rodrigues, 7.326/2010-TCU-1ª Câmara, relator ministro Augusto Nardes, 1.229/2008-TCU-Plenário, 1.474/2008-TCU-Plenário e 1.280/2008-TCU-Plenário, todos da relatoria do ministro Guilherme Palmeira e 2.469/2007-TCU-Plenário, relator ministro Marcos Bemquerer.

[12] HEINEN, Juliano. Antes da nulidade, há uma ponderação. https://www.conjur.com.br/2021-ago-05/juliano-heinen-antes-nulidade-ponderacao. Acesso em 25/10/2021.

[13] A declaração de nulidade do contrato com efeitos retroativos encontra-se prevista no artigo 148 da Lei, valendo observar a regra dos seus parágrafos 1º e 2º, verbis: artigo. 148. A declaração de nulidade do contrato administrativo requererá análise prévia do interesse público envolvido, na forma do art. 147 desta Lei, e operará retroativamente, impedindo os efeitos jurídicos que o contrato deveria produzir ordinariamente e desconstituindo os já produzidos. §1º Caso não seja possível o retorno à situação fática anterior, a nulidade será resolvida pela indenização por perdas e danos, sem prejuízo da apuração de responsabilidade e aplicação das penalidades cabíveis. §2º Ao declarar a nulidade do contrato, a autoridade, com vistas à continuidade da atividade administrativa, poderá decidir que ela só tenha eficácia em momento futuro, suficiente para efetuar nova contratação, por prazo de até 6 (seis) meses, prorrogável uma única vez.

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