Opinião

Assistências jurídicas municipais não ofuscarão o brilho da Defensoria Pública

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11 de novembro de 2021, 18h20

É perdida a batalha pelo monopólio defensorial em relação aos serviços públicos de assistência jurídica gratuita e, daqui em diante, municípios poderão sem receios criar órgão para esse fim. A Defensoria Pública nacional em muito se opôs, não sem razão. Diferentemente do indelicadamente suscitado por certos ministros como corporativismo, a preocupação dos defensores sempre foi a criação/efetivação de um sistema de incentivos constitucional voltado a alocar recursos públicos conforme o modelo constitucional defensorial  e não outro.

Inês é morta, mas as vocações defensoriais permanecem hígidas, pelo que faço as seguintes reflexões.

Assistências jurídicas municipais não serão Defensorias Públicas municipais
Fiquemos à vontade para batizar o produto da autorização constitucional hoje dada aos 5.570 municípios do Brasil na ADPF 479. Vamos chamar de AJMs assim mesmo, para facilitar a explanação.

Serei rigoroso. Chamar as AJMs de "Defensoria Pública municipal" é completamente equivocado. "Defensoria Pública" não é nome que se possa dar a qualquer serviço público de assistência jurídica a pessoas economicamente hipossuficientes patrocinada com recursos públicos, mas é o nome de uma instituição constitucionalmente desenhada ao longo de três décadas (sem contar a construção pré-88), que, começando um tanto minguada, foi se talhando mediante forte inspiração do desenho do Ministério Público, num quadro de tripartição de poderes em que Tribunais de Contas, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas figuram como órgãos constitucionalmente autônomos.

São instituições cujos membros, em maior ou menor grau, gozam de garantias e prerrogativas que servem primordialmente para que não se sintam acossados pelos governantes de ocasião, para que superiores hierárquicos não interfiram na tomada livre de decisões funcionais, enfim, para que os agentes ajam com destemor e, em bom português, não se "curvem ao poder". "Curvar-se ao poder" das maiorias, verdadeiras ou fisiológicas representadas em cargos majoritários, é justamente a missão para que não serve o sistema de Justiça, que carrega consigo o fardo de, numa democracia, tomar decisões impopulares e enfrentar a chamada dificuldade contramajoritária. E não só o Poder Judiciário está missionado à prestação de Justiça, mas também o estão as tais outras instituições autônomas, a advocacia dos entes públicos e a advocacia privada. Justiça não é teatro de um ator só.

As AJMs, a seu turno, serão órgãos da advocacia, na estrutura de um Poder Executivo que, a contar do potencial eleitoral ou eleitoreiro que isso gere, poderão se espraiar por um Brasil imenso, inclusive em cidades nas quais toda essa configuração institucional própria à Defensoria Pública seria essencial, isto é, todo esse sistema de incentivos que permite ao corpo de agentes defensoriais não estar em posição de submissão a coronéis locais e a sabores políticos de ocasião. AJMs não terão o mesmo destemor.

É de se imaginar, ainda, que os assistentes jurídicos possam ser cargos de provimento em comissão, favorecendo trocas pouco republicanas nos contextos da política real e a subordinação aos interesses do governo da vez. Imagine, prestigiando um interesse municipal (até legítimo do ponto de vista do Direito Administrativo), que as AJMs em suas iniciais eliminem litisconsórcio passivo entre entes federativos nas ações de medicamentos: não é o que se espera de acesso à Justiça.

Isso não é e não será Defensoria Pública.

A atuação das AJMs deve ser complementar à das Defensorias Públicas e lisa em relação a conflitos de interesses
A manutenção e criação de AJMs não pode significar atuação redundante de órgãos ao ponto de gerar ociosidade e ineficiência de recurso público. Como dito pelos ministros do STF, a atuação das AJMs deve servir para suplementar o acesso à Justiça nos lugares onde a Defensoria Pública não a desempenhar de forma suficiente.

É fato que a Defensoria Pública é deficiente de diversas formas, seja por número de agentes, seja por comarcas atendidas, seja por áreas priorizadas em detrimento de outras. A dura realidade da promessa não efetivada da Emenda Constitucional 80/2014 de expansão da Defensoria é que AJMs, se criadas, terão trabalho para dar conta, trabalho que seria da Defensoria.

Contudo, importante que essa atuação se dê sempre nas franjas da insuficiência defensorial. Interlocução entre Defensorias e municípios serão essenciais para calibrar e concertar essa atuação, mas não é estranho presumir que as AJMs venham a ter papel importante, especialmente nas ações do Direito de Família (onde a demanda é sempre intensa, com alta rotatividade de casos) ou nos procedimentos dos juizados especiais, enquanto a Defensoria Pública seguirá prestando atendimento dentro do possível integral e vertical em todas as áreas de atuação, especialmente as que interessem menos ao município prover (o que, imagina-se, será guiado por critérios de satisfação do maior número de indivíduos). Não se esperam AJMs fazendo a área criminal e também é quase certo que a atuação na socioeducação e a execução penal não interessarão a nenhum município cuidar. AJMs não serão Defensorias.

Ainda, devem as AJMS serem construídas de forma a não gerar despertar qualquer possibilidade de conflitos de interesses entre as pretensões dos indivíduos atendidos e a do erário municipal, pelo que é minimamente sugerível que as mesmas sejam criadas dentro da estrutura das secretarias de assistência social, como um braço jurídico do Suas atuando na ponta com Cras e Creas  e até com as próprias Defensorias Públicas. Inimaginável, portanto, que as AJMs integrem as estruturas das procuradorias municipais ou de qualquer forma de advocacia em favor do erário.

Ganhos de escala e governança
As Defensorias Públicas seguirão possuindo dimensão, abrangência e formatação que permitirão que se tenham "ganhos de escala" na execução da política pública, o que não terão as AJMs. O caráter paliativo será invencível. Para as Defensorias, vale a pena implantar diversas funcionalidades que geram agilidade e eficiência, o que não será o caso de AJMs, que não terão escala suficiente a justificar o desenvolvimento de certas soluções de TI.

Para citar o exemplo da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, é de se mencionar o chamado Portal da Defensoria, um sistema amplo e abrangente concentrando toda atividade-fim defensorial, capaz de se comunicar (ou melhor, interoperar) ao sistema do TJ-RS, permitindo distribuição de iniciais, visualização de autos, peticionamento direto, tudo sem acessar o sistema processual judiciário, o que gera tremendo ganho de produtividade.

Ainda, mecanismos de business intelligence através de dados globais da atividade coletados nesses sistemas, gerando estatísticas para planejamento estratégico também merecem ser mencionadas, mostrando que os mecanismos de governança da Defensoria Pública são destacados em relação ao que se espera das AJMs.

Conclusão: há tanta vida lá fora
Sorte ou revés a decisão do STF na ADPF 279? O tempo dirá.

As fases iniciais da história da Defensoria Pública mostraram seu despontamento como instituição que abraçou, prioritariamente, a assistência jurídica gratuita individual ao hipossuficiente econômico: esse foi seu carro-chefe.

Contudo, a história constitucional recente da Defensoria Pública a transformou em um órgão constitucional de defesa de direitos humanos, o que excede a mera defesa processual de quem não pode pagar.

Ora, a Defensoria vive também para proteger outras e múltiplas formas de hipossuficiência, as ditas. A Defensoria inclusive, ajuíza medidas protetivas em favor grupos especialmente vulneráveis (idosos, portadores de psicopatologias, mulher vítima de violência) etc.

A Defensoria vive também para atuar na defesa dos direitos coletivos, nas mais diversas searas, indo dos incidentes coletivos na execução penal ao requerimento de Reurb no Direito Urbanístico, sempre fruindo da posição privilegiada que tem ao ver as realidades do dia-a-dia, que lhe permite  conhecer e extrair os problemas coletivos dos processos individuais.

A Defensoria vive para falar, verbalizar, representar e, assim, ser um ator democrático dentro e fora de processos judiciais. Participa como amicus curiae em certos processos, intervém como custos vulnerabilis em outros. Emite notas técnicas a projetos legislativos, subsidiando os debates dos parlamentos nas mais variadas esferas. Participa de audiências públicas sobre diversos temas locais e nacionais. Onde quer que haja vulneráveis, a Defensoria estará.

E as AJMs? Nada disso farão. Podem ter um papel importante a cumprir, mas o ator principal na efetivação de direitos ainda será a Defensoria Pública, e seu brilho ainda será candente. Basta que se saiba como tal.

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