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Barros: A gritante antijuridicidade na nova Lei de Improbidade

11 de novembro de 2021, 7h13

Por Laura Mendes Amando de Barros

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A recente edição da Lei nº 14.230/21  por muitos referida como "lei anti-improbidade"  trouxe, para além de inegáveis retrocessos ao sistema de combate à corrupção e promoção da integridade pública brasileiros, uma série de questões de duvidosa constitucionalidade  ou juridicidade.

Este breve ensaio destina-se a analisar a frontal ofensa ao ordenamento pátrio representada pelos seus parágrafos 10, "c", "d" e "f", I.

Comecemos, pois, por estabelecer o conteúdo de referidos dispositivos, segundo os quais, quando da propositura das ações de responsabilização por ato de improbidade administrativa  agora necessariamente o Ministério Público, tendo em vista a absolutamente inconveniente e nefasta exclusão das advocacias públicas do rol de legitimados ativos até então vigente , deverá o autor apontar, de forma absoluta e definitiva, o enquadramento legal a orientar todo o processo.

Em outras palavras, o que se exige do autor da ação é, a partir da entrada em vigor do novel diploma, a exata especificação do artigo e inciso a serem invocados com vistas à classificação dos atos de improbidades imputados ao réu.

Nesses termos, a hipótese de enriquecimento ilícito, dano ao erário ou ofensa a princípios (cujo rol passou a taxativo) deve vir exaustivamente indicada no ato processual inaugural, não havendo margem para qualquer alteração interpretativa por parte do magistrado.

E mais: a nova sistemática simplesmente exclui qualquer possibilidade de formulação de pedidos subsidiários, cumulativos ou alternativos  em mais uma aberração processual frontalmente agressiva do nosso ordenamento.

Da ofensa à máxima iura novit cúria
Uma das bases de toda a processualística geral toma por base a noção de que à parte é dado narrar os fatos e ao magistrado, classificá-los de forma a identificar a subsunção a determinado tipo legal.

Nas palavras de Humberto Theodoro Junior, "na apreciação das dimensões do princípio clássico do iura novit curia, às partes cabe, no processo, a invocação da prestação jurisdicional, mediante formulação do pedido e especificação dos fundamentos jurídicos que o sustentam, e ao juiz compete resolver o conflito estabelecido entre os litigantes, aplicando, com a autoridade estatal, os preceitos de direito material pertinentes. Nesse esforço comum e coordenado entre os sujeitos do processo  autor, réu e juiz , chega-se à sentença, prolatada soberanamente pelo juiz" (2019).

Nesse sentido, não pode haver qualquer vinculação entre os fundamentos legais eventualmente invocados na inicial e a decisão ao final da instrução probatória prolatada.

Conforme assevera Lima (2016), "a aplicação do direito é assunto que atine exclusivamente ao juiz, não estando as partes obrigadas a subsumir os fatos por elas invocados a normas jurídicas".

A possibilidade de formulação de pedidos alternativos, sucessivos ou subsidiários representa garantia processual fundamental decorrente dos princípios da economicidade e efetividade da atividade jurisdicional, a qual é incumbida, ao final e ao cabo (e após plena produção probatória), de "dizer o Direito".

Qualquer subversão dessa lógica determina rachadura estrutural na sistemática e dinâmica processuais, na medida que em pretende transferir ao particular pleiteante  que para tanto não está preparado  função típica, histórica e intransferível do juiz.

Diante dessas premissas, absolutamente descabida qualquer limitação no sentido de restringir o conhecimento e análise dos fatos à luz de um único e específico dispositivo legal, cuja ocorrência, até por questões de dificuldade probatória, pode não vir a restar plenamente caracterizado.

Incompatibilidade com o disposto no artigo 5º, XXXV, CF
O fenômeno da constitucionalização do Direito Processual tornou ainda mais patente a sua obrigatória orientação por todos os valores e princípios consagrados na Carta Maior.

Nesse diapasão, ganha destaque o princípio da garantia à jurisdição, traduzida em três fundamentais dimensões: 1) acesso à Justiça propriamente dito; 2) adequação da tutela; e 3) efetividade da tutela. (Marinoni; Miditiero, 2012, p. 628).

Sob esse olhar, a efetividade da tutela jurisdicional da probidade administrativa, com a garantia de todos os direitos coletivos a ela inerentes, mostra-se absolutamente incompatível com a pretensão consubstanciada nos dispositivos ora em comento.

Realmente, não se pode admitir que eventual inexatidão de cunho meramente formal  capitulação legal das condutas ilícitas perpetradas em detrimento a Administração  seja invocada como motivo de extinção do poder-dever do Judiciário combater, repreender e apenar os atos que atentem materialmente contra o ordenamento jurídico, com o comprometimento dos valores mais fundamentais relacionados à promoção dos interesses públicos e preservação da integridade da ação pública.

Trata-se de estratagema extremamente desleal, que, na sanha de afastar com cada vez mais veemência a responsabilização por ilícitos cometidos no exercício da ação pública, cria como que uma "imunidade processual" em razão dos imprevistos e complexidade inerentes ao exercício do contraditório e produção probatória.

Realmente, e diante desse cenário, cada vez menos provável à propositura de ações de improbidade com fundamento no artigo 9º da lei, posto que a condenação sob tal fundamento exige dilação probatória difícil e muitas vezes impossível de ser levada a efeito em razão dos prazos prescricionais estabelecidos.

Não fosse isso, a capitulação, quando da propositura da ação, no tipo "subsidiário" de improbidade  ofensa a princípios , pode se mostrar igualmente ineficaz: ainda que seja possível ao longo do processo comprovar a ocorrência de dano ao erário ou enriquecimento ilícito, estará o juiz impedido (?) de condenar o réu, em razão da esdrúxula redação do artigo 17, §10-F, I, da nova lei.

Aliás, a capitulação prévia e vinculante dos fatos em discussão vai contra a própria noção de contraditório e ampla defesa, incompatível com o prejulgamento a ser imposto pela parte ao juiz (?).

Como se pretender uma conclusão firme e confiável sobre a que tipo se subsumirão os fatos antes que da dilação probatória, e, mais grave, que seja dado ao réu se manifestar?

Trata-se, conforme demonstrado, de estratégia absolutamente esquizofrênica, a subverter toda a lógica processual e constitucional de desenvolvimento do processo e atuação das partes e do juiz.

Não se pode olvidar que a natureza colaborativa do processo moderno exige uma atuação orquestrada, coordenada e interativa entre os envolvidos: "O juiz cuidará, não apenas de regularizar a observância dos pressupostos processuais e das condições da ação, mas também de auxiliar a parte na melhor formulação dos dados fáticos e na melhor exposição dos fundamentos de direito da pretensão, quando deficiente ou incompletamente expostos" (Theodoro Júnior, 2019).

Conclusões
Não se pode razoavelmente aceitar que, após exauriente produção probatória com a plena e inquestionável configuração de ato de improbidade, esteja inviabilizada a condenação do réu unicamente em razão de haver se delineado durante o processo hipótese legal distinta da indicada na peça inaugural.

Pior: absolutamente inadmissível a declaração e nulidade da sentença que reconheça a ocorrência de ato de improbidade efetiva e cabalmente demonstrado, com a consequente apenação do agente responsável por mera dissonância na invocação no número do artigo ou inciso realizada pelo autor.

Está-se diante, portanto, de mais um grave equivoco do legislador, que custará à Administração  e a toda a sociedade brasileira  marcantes e seríssimos retrocessos nas estratégias e ações de combate à corrupção e promoção da integridade pública.

 

Referências bibliográficas
LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. Iura novit curia no processo civil brasileiro: dos primórdios ao novo CPC. Revista de Processo, 2016. Disponível em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RPro_n.251.06.PDF. Acesso em 07/11/2021.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. "Iura novit curia" e o moderno Direito Processual Civil. Disponível em  http://genjuridico.com.br/2019/12/16/iura-novit-curia-processual-civil/. Acesso em 07/11/2021.