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Vitor Soares: A Defensoria Pública vista como uma árvore

10 de novembro de 2021, 6h34

Por Vitor Valdir Ramalho Soares

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A Procuradoria-Geral da República (PGR) deseja retirar da Defensoria Pública a possibilidade de requisitar documentos de órgãos públicos, em favor da população necessitada.

Para isso, ingressou com várias ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) no Supremo Tribunal Federal com o objetivo de ver declarada inconstitucional a prerrogativa de requisição garantida em lei às defensoras e aos defensores públicos.

Os principais argumentos utilizados foram: 1) permitir que a Defensoria Pública requisite documentos não é isonômico pois "desequilibra a relação processual, notadamente na produção de provas" e isso "ofende o princípio da isonomia, do qual decorre o preceito da paridade de armas".

O que está dito nas entrelinhas é: "Se os advogados particulares não podem requisitar documentos dos órgãos públicos, então, o defensor público também não pode".

Neste texto será exposto o erro gritante que é comparar, como se fossem iguais, as funções da advocacia e da Defensoria Pública, usando uma metáfora simples para enxergar esta última como se fosse uma árvore com muitos galhos, cada qual sendo uma função institucional específica.

Primeiramente, a advocacia privada, função importantíssima e essencial, tem suas prerrogativas e objetivos previstos na Lei 8.904/1994, enquanto a Defensoria Pública tem suas prerrogativas e objetivos previstos na Lei Complementar 80/1994. Uma breve leitura das leis já demonstra claramente a essencialidade de ambas, como também a diferença de suas funções e objetivos.

No mesmo sentido, o Ministério Público é regulamentado por suas leis específicas (8.625/1993 e Lei Complementar 75/1993), assim como a advocacia pública (Lei Complementar 73/1993).

Nesse raciocínio, está claro que cada uma dessas atividades tem sua lei e, portanto, objetivos e funções próprios.

Especificamente quanto à metáfora citada, proponho um exercício de criatividade para que a leitora e o leitor percebam a Defensoria Pública como se fosse uma árvore.

A árvore Defensoria Pública possui como tronco, ou seja, como dever principal, a função de promoção de direitos humanos (artigo 134, CF), de maneira ampla e proativa.

Passando à análise dos vários galhos dessa árvore, um deles é a função de atuar na esfera individual judicial, sendo esta também exercida pela nobre advocacia. Como exemplo, temos a situação em que determinada cidadã procura a Defensoria Pública para ingressar com ação judicial pedindo alimentos para sua filha. A instituição fará análise da necessidade/vulnerabilidade dessa pessoa e ela se tornará assistida da Defensoria Pública, juntamente com centenas e milhares de outras pessoas na mesma situação.

Apesar de o primeiro galho da árvore Defensoria Pública possuir similaridade com a atuação da advocacia, todos os demais não a possuem.

O segundo galho, por exemplo, é a atuação extrajudicial, aquela que ocorre sem necessidade de ingressar com ação na justiça. Exemplos: a Defensoria Pública promove frequentes ações chamadas "mutirões" para: retificação de nome de pessoas; registro de nome de pais nas certidões de nascimento das crianças; atendimento a mulheres em situação de violência doméstica; reconhecimento voluntário de paternidade etc.

Outro exemplo de atuação extrajudicial da Defensoria Pública: um casal procura a Defensoria Pública desejando se divorciar. Ao atender ao casal, a defensora pública propõe a possibilidade de o divórcio ser consensual, o que ao final é aceito. Por fim, a defensora pública e o casal assinam um termo de divórcio e está finalizado o assunto, sem necessidade de ingressar na justiça.

A terceira ramificação daquela árvore é a atuação coletiva, a qual foi sempre foi preponderante, porém teve mais impacto ainda durante a pandemia da Covid-19. Por meio de uma ação coletiva, centenas e milhares de pessoas podem ser afetas de forma direta, sem necessidade de ingressar com uma ação individual para cada interessado.

Um quarto galho da árvore Defensoria Pública é sua atuação como guardiã das pessoas vulneráveis (custus vulnerabilis), ou seja, é a instituição reconhecida pela Constituição e sempre deve ser ouvida quando determina caso envolver grupos e pessoas vulneráveis.

O quinto galho pode ser destacado como a atuação na educação em direitos. Poderíamos seguir citando os demais galhos, todos mencionados no artigo 4º da LC 80/1994.

E não faltam galhos e ramos. Os casos listados são meramente exemplificativos, sendo que todas as prerrogativas dessa grande árvore Defensoria Pública estão em 14 incisos do artigo 128 da Lei Complementar 80/1994.

Portanto, vê-se que a Defensoria Pública possui atuações completamente diferentes da advocacia (privada e pública), assim como do Ministério Público, podendo-se dizer que as principais esferas de atuação são: 1) judicial individual e coletiva; 2) extrajudicial individual e coletiva; 3) guardiã dos vulneráveis (custus vulnerabilis).

Estando clara a diferença entre as funções e instituições citadas, voltemos às ações propostas pelo PGR. Percebe-se que estas comparam coisas incomparáveis, como se comparasse laranja com banana. Ora, não é justo comparar a advocacia (privada e pública) com a Defensoria Pública, já que as funções de ambas são essenciais, mas diferentes entre si.

Além disso, é importante destacar que mesmo se a função da Defensoria Pública fosse exclusivamente atuar na esfera judicial individual (o que não é), só a Defensoria Pública do Espírito Santo, entre 2020 e o mês de setembro deste ano já realizou mais de 500 mil atendimentos à população capixaba, contando com apenas cerca de 160 defensoras e defensores públicos. Nesse ponto, ficam as seguintes perguntas:

1) Será que as defensoras e defensores públicos, com tantos assistidos para atender ao mesmo tempo, possuem as mesmas estrutura, pessoal, condições físicas e, principalmente, tempo, se comparado com um advogado profissional liberal?;

2) A isonomia não seria justamente tratar os desiguais desigualmente?

Dessa forma, vê-se que a PGR mencionou suposta ofensa ao artigo 5º da Constituição, mas apenas citou de forma rasa o artigo 134 do mesmo texto, sendo que este determina que a Defensoria Pública tem o dever de promoção de direitos humanos.

Portanto, qualquer interpretação dada aos incisos citados pelo PGR deve ser feita em expressa comparação com o artigo 134, CF, caso contrário será uma análise superficial.

E o que significa o termo "promoção de direitos humanos" constante do artigo 134, CF? Significa que a Defensoria Pública é uma instituição que tem o dever de ser proativa quanto ao objetivo de promover direitos da população necessitada.

E proatividade é atitude ativa, não passiva/omissa. Em resumo, a Defensoria Pública possui o dever constitucional de se atrever a fazer o que for necessário, nos termos da Constituição, para buscar a promoção dos direitos humanos da população necessitada.

Significa, ainda, que as pessoas que integram a Defensoria Pública (defensoras e defensores públicos, estagiários e servidores) não podem e não devem ficar em seus gabinetes aguardando as demandas chegarem, pois a "promoção" dos direitos humanos, como dito, traduz esse papel proativo.

Diante disso, depois de estar claro o real papel da "árvore" Defensoria Pública e suas ramificadas possibilidades de atuação (judicial individual e coletiva, extrajudicial individual e coletiva, e como "guardião dos vulneráveis"), bem como sua característica inerente de instituição com obrigação constitucional de promover direitos humanos, fica o convite para a reflexão sobre o real interesse por trás dessas ações ajuizadas no STF.

Aliás, recentemente o mesmo STF já decidiu expressamente ser inconstitucional exigir de defensor público inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil – OAB (RE 1.240.999). Dessa forma, olhando do ponto de vista estritamente jurídico, não faria sentido lógico decidir que defensor público não é advogado e, ao mesmo tempo, declarar inconstitucional a prerrogativa da requisição pois os advogados não a têm.

Por fim, levando em conta a totalidade de galhos dessa árvore Defensoria Pública — o que comprova sua distinção perante outras instituições e funções —, não parece compreensível que queiram podá-la de forma tão violenta. Com mais esse ato deliberado de corte, a maior prejudicada, mais uma vez, será a população necessitada.