Opinião

A tarifação do dano moral e o racismo estrutural

Autores

  • Fernanda Perregil

    é advogada e sócia do DSA Advogados mestranda em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas pelo Centro Universitário do Distrito Federal (UDF) especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP pesquisadora do Núcleo Trabalho Além do Direito do Trabalho da USP pesquisadora da Cielo Laboral e professora do Insper.

  • Luanda Pires

    é advogada palestrante e especialista em Relações Governamentais Direito Antidiscriminatório Cultura Inclusiva e Diversidade & Inclusão com atuação na defesa dos direitos humanos em geral em especial direitos das mulheres da população negra e da população LGBTI+.

10 de novembro de 2021, 16h07

O polêmico tema da tarifação do dano moral introduzido pela reforma trabalhista de 2017 segue em votação no STF. O caso está relacionado com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6069, da relatoria do ministro Gilmar Mendes, para discutir os artigos 223-A e incisos I, II, III e IV do §1º do artigo 223-G da CLT.

As principais críticas à redação dos supracitados artigos envolvem a limitação de valores para indenização por dano moral nas relações de trabalho e a violação ao princípio da isonomia, uma vez que a indenização seria definida com base no salário contratual da pessoa ofendida. A Medida Provisória (MP) 808 tentou corrigir essa deformidade ao prever como critério de cálculo o valor máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, todavia não fora convertida em lei.

Assim, ações judiciais que questionem ofensas semelhantes e, portanto, passíveis de indenização por dano moral, podem ter valores indenizatórios completamente distintos. Imaginemos, por exemplo, que se um gestor comete o mesmo tipo de assédio contra duas pessoas da mesma empresa: a que tem salário maior terá uma indenização maior.

Isso também se aplica à indenização por dano moral, no caso de morte do empregado ou empregada, causado por culpa da empresa, considerado de natureza gravíssima. O cálculo da indenização pode ser de três a 50 vezes o valor do salário, dependendo do nível da ofensa — podendo ser enquadrada como leve, média, grave e gravíssima. Assim, se duas pessoas, em posições hierárquicas distintas e, por consequência, com salários diferentes, falecerem em um mesmo acidente de trabalho, e a primeira pessoa possuir um salário de R$ 15 mil por mês e a segunda, R$ 2 mil por mês, a primeira família pode receber até R$ 750 mil e a segunda, R$ 100 mil.

O tratamento dado pela legislação apenas exacerba as desigualdades sociais já existentes no Brasil quando analisadas as questões relacionadas a classe, raça e gênero dos grupos historicamente discriminados.

Segundo dados do IBGE [1], existe significativa diferença na renda de homens e mulheres, pessoas brancas e pessoas negras, bem como severa dificuldade de acesso ao mercado de trabalho (ainda que estejamos analisando pessoas com qualificações profissionais idênticas), quando analisadas todas essas questões de forma conjunta. O que impactaria na fixação dos valores de indenização por dano moral dessas pessoas e reforçaria o cenário de desigualdade de direitos a que essas pessoas são expostas.

Nos últimos anos, o combate às desigualdades sociais no Brasil tem sido objeto de estudo para criação e implementação de políticas afirmativas mais específicas e efetivas. No entanto, por se tratarem de problemas estruturais, essas desigualdades ainda se manifestam de maneira preponderante, principalmente quando analisadas a partir dos recortes de gênero e étnico-racial.

De acordo com pesquisa divulgada pelo IBGE [2] no primeiro trimestre deste ano, as mulheres, ainda que mais escolarizadas, possuem maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho e na vida pública do que os homens. Enquanto 89,2% dos homens estavam ocupando o mercado formal de trabalho em 2019, apenas 54,6% da população feminina do país encontrava-se empregada.

É importante considerar também que, segundo o mesmo estudo, naquele período o salário de mulheres representava apenas 77,7% do salário dos homens, ainda que ocupando a mesma função. Sendo que essa diferença salarial era ainda mais representativa quando a análise foi realizada entre os cargos gerenciais. Nesse grupo, partindo da perspectiva unicamente de gênero, o salário das mulheres representava apenas 61,9% do salário dos homens em idêntica posição.

O racismo presente no mercado de trabalho brasileiro fica ainda mais evidente quando são analisadas as posições ocupadas por pessoas negras, pardas e brancas. A desocupação, a subutilização da força de trabalho e a proporção de trabalhadores sem vínculos formais atingem mais fortemente a população negra.

De acordo com análise realizada pela empresa de recrutamento Vagas.com, ainda que o percentual em relação ao grau de escolaridade entre essas pessoas seja próximo (55% de pessoas brancas e 47,8% negras), as pessoas negras são a maioria nas posições operacionais e técnicas, representando 47,6% e 11,4% dos ocupantes dessas funções, respectivamente. Enquanto representam apenas 0,7% dos empregados em cargos de suporte e gestão.

Em 2018, o rendimento médio mensal das pessoas brancas (R$ 2.796) foi 73,9% superior ao das pessoas negras ou pardas (R$ 1.608). O recorte em categorias de rendimentos, segundo o tipo de ocupação, revelou que, tanto na ocupação formal como na informal, as pessoas negras ou pardas receberam menos do que as pessoas brancas.

Todavia, quando analisadas as razões de diferenças de renda entre categorias de raça e de gênero, os dados indicaram que a diferença salarial definida com base em questões raciais é maior do que as diferenças por gênero. No ano de 2018, as pessoas negras receberam apenas 57,5% dos rendimentos das pessoas brancas. Ademais, de acordo com levantamento realizado pelo Insper no ano de 2020, homens brancos com ensino superior completo possuem rendimento salarial 159% maior do que as mulheres negras de mesma escolaridade.

Todas essas diferenças são explicadas por fatores como segregação ocupacional, redução de oportunidades educacionais e remunerações inferiores em ocupações semelhantes. Demonstrando que a escolaridade, ainda que acessada por parcela da população negra do país, não é fator garantidor de acesso ao mercado de trabalho ou a remuneração condizente.

Por esses dados, não é difícil concluir que o sistema de indenização por dano moral previsto pela legislação trabalhista deságua em problemáticas sociais bastante complexas, que apenas fortalecem as raízes do racismo que estrutura o Brasil.

A forma de cálculo de indenização por dano moral com base no salário viola o artigo 5º da Constituição, o qual prevê que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Essa mudança da reforma trabalhista, além de implicar um verdadeiro retrocesso legal, é um meio de reprodução das discriminações que estruturam o país e manutenção de desigualdades sociais.

A questão, aqui, é que a limitação estabelecida pela nova lei não só intensifica diferenças estabelecidas unicamente por padrões sexistas, como mantém desigualdades estabelecidas a partir de critérios raciais.

O fato é que a população negra possui severas desvantagens em relação à população branca, com relação ao acesso ao mercado de trabalho e distribuição de renda, sendo que uma legislação como essa apenas valida as profundas feridas de uma história que a sociedade brasileira tenta ignorar.


[1] Estudo "Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil", IBSN 978-85-240-4513-4, IBGE, ano de 2019.

[2] Estudo "Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil", IBSN 978-85-240-4513-4, IBGE, ano de 2019.

Autores

  • é especialista em Direito do Trabalho e sócia da Innocenti Advogados, head das áreas de ESG e Direito do Trabalho, Sindical e Remuneração de Executivos e integrante da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP.

  • é advogada e sócia no Pires, Pratti & Soares Advogadas e CEO da P2 InterDiversidade — Consultoria em Diversidade e Inclusão.

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