Consultor Tributário

Quem vota a favor da PEC dos Precatórios sabe que ela é inconstitucional

Autor

  • Hugo de Brito Machado Segundo

    é mestre e doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (de cujo programa de pós-graduação — mestrado/doutorado — foi coordenador) professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado) membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA) advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität em Viena (Áustria).

10 de novembro de 2021, 9h21

Debate-se atualmente no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional que visa a modificar a sistemática de pagamento de precatórios. Para o governo, trata-se de medida necessária a que o orçamento não seja comprometido com o pagamento de condenações judiciais, tornando possível destinar maior quantidade de recursos a despesas que seriam supostamente mais importantes, como aquelas relacionadas a programas sociais ou assistenciais.

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Referida proposta, contudo, é inaceitável, por uma multiplicidade de razões, muitas delas apontadas em diversos textos já publicados por especialistas no assunto, inclusive aqui na ConJur. Precatórios não são despesas que o ente público escolhe, entre outras, priorizar ou não. São fruto de condenações judiciais já transitadas em julgado. Visam a reparar lesões a direitos que sequer deveriam ter acontecido. Não cabe ao poder público, na condição de réu e devedor de tais quantias, definir se, como e em que termos irá adimpli-las. Menos ainda estabelecer um teto que considera "razoável" para o que pretende cumprir em um exercício, deixando os valores que ultrapassarem referido patamar para o ano seguinte, em procedimento que rolará de maneira indefinida a dívida, perpetuando e acentuando o problema.

Reconheça-se que a própria figura do precatório já é, em alguma medida, inaceitável, porquanto todas as condenações judiciais deveriam ser pagas no curso do próprio exercício em que concluídos os respectivos cumprimentos de sentença, tal como ocorre com as requisições de pequeno valor (RPVs). É até difícil para juristas estrangeiros entenderem como, e por que, no Brasil existe uma sistemática tão intricada para que o poder público faça algo que deveria ser tão óbvio e trivial em um Estado de Direito: o cumprimento das leis e das decisões judiciais que as aplicam. Mas examinar tudo isso, aqui, não comportaria nos limites deste pequeno texto, sendo suficiente lembrar, apenas, que o precatório, por maiores que sejam seus defeitos, veio para corrigir uma sistemática anterior que conseguia ser ainda pior, conforme nos testemunha Pontes de Miranda nos comentários à Constituição de 1946.

Neste texto, contudo, não pretendo insistir em tais pontos, tampouco tratar especificamente dos motivos pelos quais referida PEC é inconstitucional. O propósito, aqui, é apenas o de lembrar que a matéria não é nova. Já foi submetida ao crivo do Supremo Tribunal Federal pelo menos duas vezes e em ambas as tentativas de mudar o texto constitucional para protelar o pagamento de condenações judiciais foi considerada inconstitucional.

A Emenda Constitucional nº 30, em 2001, pretendeu parcelar o pagamento de precatórios em dez anos. Imagine-se a situação da cidadã que, depois de litigar contra o poder público por muito tempo, ao cabo do processo de conhecimento e do processo de execução da sentença (ou, hoje, do cumprimento da sentença contra a Fazenda), ainda tem de esperar dez anos para, a cada ano, receber um décimo do que nunca lhe deveria ter sido subtraído. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 2.356, declarou essa iniciativa inconstitucional, sendo conveniente destacar, do julgado, o trecho em que se reconhece que a emenda, ao alterar a forma de pagamento dos precatórios, "violou o direito adquirido do beneficiário do precatório, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Atentou ainda contra a independência do Poder Judiciário, cuja autoridade é insuscetível de ser negada, máxime no concernente ao exercício do poder de julgar os litígios que lhe são submetidos e fazer cumpridas as suas decisões, inclusive contra a Fazenda Pública, na forma prevista na Constituição e na lei. Pelo que a alteração constitucional pretendida encontra óbice nos incisos III e IV do § 4o do artigo 60 da Constituição, pois afronta 'a separação dos Poderes’ e ‘os direitos e garantias individuais'". Tudo isso se aplica, por igual, à proposta ora em discussão.

Mas o STF demorou a declarar inconstitucional a EC 30/2001, o que somente ocorreu, mesmo em sede de medida cautelar, no final de 2010. E ela havia instituído a possibilidade de, em não sendo paga a parcela do precatório parcelado, esta poder ser utilizada para pagamento de tributos, e inclusive ser cedida a terceiros. Criou-se, assim, no período em que permaneceu em vigor, um mercado no qual devedores do Fisco compravam precatórios de pessoas que esperavam pelo seu adimplemento ao cabo de demorados processos judiciais. A compra se dava à vista, mas, naturalmente, com deságio, permitindo que os precatórios fossem em seguida utilizados na quitação das dívidas tributárias de quem os adquiria. O procedimento atendia ao interesse do titular do precatório, que recebia com brevidade seu crédito, ainda que por valor menor; atendia ainda aos interesses dos que os compravam, que ganhavam com o respectivo deságio.

O referido mercado, é claro, só surgiu por conta da inadimplência do poder público. Antes de a leitora reprovar os compradores dos precatórios, que se aproveitavam do deságio, convém lembrar que não foram eles quem criaram a situação dramática em que se encontravam os que esperavam pelo cumprimento de decisões judiciais pelo poder público. Mas este, o poder público, se sentiu estimulado pela "ideia" de ver seus credores aceitando receber menos, para receber logo, e editou a EC 62/2009, que, além de trazer novas condicionantes e dificuldades ao pagamento de precatórios, criou a sistemática de um "leilão" no qual credores do poder público podem receber seus precatórios primeiro, caso aceitem receber menos do que lhes seria devido. Ou seja: o mercado, e o deságio, surgidos pela postura reprovável do poder público perante condenações judiciais passou a ser aproveitado por ele próprio, que deu causa a tudo. Além de vários outros vícios, que também estavam presentes na EC 30/2001 e foram reconhecidos pelo STF, entre os quais a impossibilidade de uma emenda condicional limitar a forma como decisões judiciais passadas em julgado serão cumpridas, havia aí clara imoralidade de pretender tirar proveito (pagar com deságio) do próprio comportamento reprovável que criava as condições para que o tal deságio fosse cogitado (não pagamento tempestivo do precatório).

A EC 62/2009 também foi declarada inconstitucional, sendo relevante, do acórdão que apreciou a ADI 4.425, a parte em que se afirma, por igual, que essa nova tentativa de condicionar, dificultar ou postergar o pagamento das condenações judiciais "viola a cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, artigo 1º, caput), o princípio da Separação de Poderes (CF, artigo 2º), o postulado da isonomia (CF, artigo 5º), a garantia do acesso à justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (CF, artigo 5º, XXXV), o direito adquirido e à coisa julgada (CF, artigo 5º, XXXVI). (…)".

E o que isso tem a ver com a PEC dos Precatórios, discutida pelo Congresso Nacional agora em 2021? Tudo. A PEC pretende novamente condicionar o cumprimento de decisões judiciais passadas em julgado. Almeja proceder a alterações que incorrem em todos os vícios já proclamados pelo STF quanto às tentativas anteriores. Poderá o poder público, diante disso, afirmar que não sabia da inconstitucionalidade, quando a corte a declarar, se provocada, depois da eventual aprovação da emenda?

A pergunta é relevante, pois uma das condições que diversos tribunais constitucionais no mundo, e a Corte de Justiça Europeia, na União Europeia, exigem para (excepcionalissimamente) modular os efeitos de uma decisão que afirma a invalidade de uma norma é a comprovação, por quem editou a norma, de que não se poderia prever que essa invalidade seria declarada. A boa-fé na edição da norma impugnada, e a demonstração (e não a mera alegativa, às vezes inventada apenas em sede de memoriais) de danos excepcionais e irreparáveis causados caso se reconheça sua invalidade, são premissas necessária a que se possa sequer cogitar de modular efeitos de decisão que reconhece tal invalidade. E, no caso em exame, uma dessas premissas está claramente ausente. Parlamentares sabem, ou deveriam saber, que o STF, se mantiver sua jurisprudência estável, íntegra e coerente como didaticamente prescreve o artigo 926 do CPC, declarará esta emenda que se propõe inconstitucional, como o fez com a 30/2001 e a 62/2009. Quando isso ocorrer, será inaceitável que se aleguem "razões de Estado" para se postular a limitação temporal dos efeitos correspondentes.

Do contrário, ter-se-á tornado explícito e claro que, no Brasil, o poder público cumpre a lei apenas se e quando quer. Tal como preconizavam as Ordenações Filipinas, segundo as quais "nenhuma lei, pelo rei feita, o obriga, senão enquanto ele, fundado na razão e igualdade, quiser a ela submeter o seu poder real" (Livro 2, Título 35, § 21).

Não é possível que parlamentares e ministros permitam tamanho retrocesso nas instituições de nosso país. Muito sangue foi derramado, ao longo de séculos, para que viessem a ser como são. Isso não é pouca coisa, nem se deu à toa.

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    é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität de Viena (Áustria).

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