Opinião

Os embargos declaratórios na ADC 58

Autor

  • Cesar Zucatti Pritsch

    é juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA) juiz do trabalho membro da Comissão de Jurisprudência e vice-coordenador pedagógico da Escola Judicial do TRT da 4ª Região.

9 de novembro de 2021, 7h13

No último dia 22 se encerrou a sessão do Plenário Virtual do STF que julgou os embargos de declaração opostos na ADCs 58 e 59 e ADIs 6.021 e 5.867 [1], ações em que foi declarada a inconstitucionalidade da TR enquanto atualização monetária de débitos trabalhistas, bem como determinada a substituição de tal índice pela Selic  mas com exclusão dos juros de mora, encorajando atitudes procrastinatórias de devedores. Pelo gigantismo da questão, que afeta literalmente todos os processos em trâmite na Justiça do Trabalho, o julgamento de tais embargos era ansiosamente aguardado.

O caso em questão é extremamente controvertido, não apenas pelos bilhões de reais envolvidos, mas também porque, com a inacumulabilidade da Selic com juros de mora, o acórdão embargado indiretamente excluiu os juros de mora de 12% ao ano, que incidiam sobre condenações trabalhistas (conforme artigo 39, §1º, da Lei nº 8.177/91), o que restou mantido pelo Pleno do STF, ao rejeitar os declaratórios da Anamatra. Tal supressão foi chocante para a comunidade jurídica, seja porque a matéria de juros de mora aparentemente não fazia parte da discussão, seja ante o descompasso com o determinado em relação aos devedores integrantes da Fazenda Pública, na ADI 4.357 e Tema 810 da repercussão geral (lá aplicando IPCA a título de atualização, além de juros de poupança).

Já tivemos oportunidade de criticar academicamente tal inusitado decisum, o qual, apesar de declarar a inconstitucionalidade da TR porque esta não refletia a inflação real e vulnerava o direito de propriedade do credor trabalhista [2], a substituiu pela Selic [3], eviscerando ainda mais a mesma garantia constitucional de propriedade que pretendia proteger [4].

Veja-se que a opção pela Selic, em dezembro de 2020, se deu em sua maior baixa histórica, tendo chegado, à época, em um patamar de 2% ao ano. Logo, mesmo que se admitisse o uso da TR como indexador de correção monetária (a despeito de estar zerada desde 2017), sobre o crédito trabalhista incidiriam, em 2020, 0% de atualização e 12% de juros. Com a nova fórmula, entretanto, em 2020 se aplicam, a título de atualização somada com juros, aproximadamente 3% portanto, um decréscimo para a quarta parte! Por outro lado, ainda que a Selic tenha subido novamente em 2021 (para tentar conter a hiperinflação que se avizinha), 7,75% ao ano prefixados em outubro [5], tal percentual nem perto chega da soma dos antigos juros de mora + inflação. Considerando a previsão de 10,25% de inflação para 2021 [6], mais os 12% de juros de mora da Lei 8.177/91, apenas com o distante patamar de 22,25% ao ano a Selic faria jus à mora do devedor e ao esfacelamento do poder de compra das condenações judiciais laborais.

Entretanto, ressalvado tal entendimento e considerando o caráter vinculante, é necessário examinar objetivamente o alcance da ADC 58, dando aplicação aos seus comandos. Em tal senda, destacamos quatro observações extraídas do recente julgamento dos embargos de declaração [7]

1) Fase judicial termo inicial da Selic é o ajuizamento, não a citação
Como sabido, o início da incidência de juros de mora, no processo do trabalho, tradicionalmente se dá "a partir da data em que for ajuizada a reclamação inicia", conforme artigo 883 da CLT, dispositivo que não foi revogado nem declarado inconstitucional. Assim, já defendíamos que a minuta de voto do relator (que circulou entre os ministros para fins de julgamento da ADC 58) [8] incorreu em erro material ao mencionar "citação" como termo inicial para os juros sem qualquer fundamentação que mostrasse contrariedade em relação ao artigo 883 da CLT, presumivelmente mera confusão com o habitual termo inicial dos juros no processo civil (artigo 405 do Código Civil).

Tal erro acabou sendo repetido no voto de outros ministros e na certidão de julgamento de 18/12/2020, mas corrigido ex officio apenas na ementa e na versão final do voto do relator (veja que suprimida, do dispositivo, a expressão "a partir da citação"), publicados em 7/4/2021 [9]. A corte, acompanhando o voto do relator nos declaratórios, reconheceu a contradição entre a fundamentação e dispositivo do voto condutor publicado e respectivo dispositivo, em relação à certidão de julgamento, mas asseverou que "conforme fundamentação do meu voto e ementa do acórdão, decidiu-se pela incidência da taxa Selic a partir do ajuizamento da ação" [10].

2) "Juros pela TR na fase prejudicial  tese estranha, inócua e inovatória, mas não mantida pelo Plenário
Do acórdão principal da ADC 58, publicado em 7/4/2020 [11], constou na parte final da fundamentação do voto condutor (mas não do dispositivo) e na ementa, a cumulação do IPCA-E, na fase pré-judicial, com "juros legais (artigo 39, caput, da Lei 8.177, de 1991)" (ou seja, TR desde o vencimento da obrigação). Trata-se de situação: a) estranha à discussão dos autos, já que ninguém pleiteou o uso da TR enquanto juros; b) estranha porque a jurisprudência é pacífica em que houve impropriedade linguística em tal dispositivo, o qual refere, na realidade, atualização monetária; c) inócua porque a TR está zerada ou quase zerada há muito tempo; e d) inovatória, já que inserida no acórdão publicado em 7/4/2021 à revelia do decidido pelo Pleno no dia 18/12/2020.

A propósito do caráter inovatório, veja-se que a TR enquanto juros não foi mencionada no voto original circulado pelo relator [12], não foi mencionada nos debates orais, nem na leitura de voto pelo próprio relator, nem tampouco constou da certidão de julgamento.

Considerando que a ementa é um elemento auxiliar sem caráter vinculante, e que, nos embargos de declaração, não foi determinada a inclusão no dispositivo de "juros legais pela TR"  mas apenas "a incidência do IPCA-E na fase pré-judicial e, a partir do ajuizamento da ação, a incidência da taxa SELIC", sem qualquer referência à TR  tem-se que o Pleno do STF não aquiesceu nessa parte à fundamentação monocraticamente acrescida pelo relator na versão do acórdão publicada em 7/4/2021.

No mesmo sentido, ainda, milita a fundamentação exarada pelo próprio relator nos embargos de declaração, que agora expressamente declara a inconstitucionalidade do caput do artigo 39, da Lei 8.177/91 (o que não fizera no acórdão principal)  misto acompanhado pelo Pleno [13]. Logo, se tal dispositivo é inconstitucional, deixa de figurar no mundo jurídico, não podendo embasar o uso da TR em dívidas trabalhistas, ainda que a outro título.

3) Fazenda Pública enquanto devedora direta  aplicação da ADI 4.357 e Tema 810 da repercussão geral
A discussão sobre a inconstitucionalidade da TR como indexador de débitos judiciais iniciou justamente em um contexto de Fazenda Pública, na ADI 4.357, na qual em 14/3/2013 se declarou a inconstitucionalidade parcial do §12 do artigo 100 da Constituição, introduzido pela EC 62/2009, in verbis:

"CRFB, Artigo 100, §12 A partir da promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de valores de requisitórios, após sua expedição, até o efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança, e, para fins de compensação da mora, incidirão juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança, ficando excluída a incidência de juros compensatórios".

Obviamente, a norma constitucional regula a atualização de precatórios relativos a condenações em todo o Poder Judiciário, inexistindo ressalva excluindo a Justiça do Trabalho de sua incidência. Logo, encontra-se a Justiça do Trabalho igualmente vinculada pela respectiva declaração de inconstitucionalidade, assim como pela modulação de efeitos exarada na mesma ação em 25/3/2015, que determinou a substituição da TR pelo IPCA-E. Aliás, tal conclusão é reforçada pelo fato de que o STF seguiu a orientação do próprio Congresso Nacional, o qual preencheu o vácuo deixado pela inconstitucionalidade da TR, determinando a atualização dos precatórios em geral pelo IPCA-E, "inclusive em relação às causas trabalhistas, previdenciárias e de acidente do trabalho", desde a LDO 2014, Lei 12.919 de 24/12/2013:

"Lei 12.919/13, Artigo. 27  A atualização monetária dos precatórios, determinada no § 12 do artigo 100 da Constituição Federal, inclusive em relação às causas trabalhistas, previdenciárias e de acidente do trabalho, observará, no exercício de 2014, a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – Especial  IPCA-E do IBGE".

No RE 870.947 (Tema 810 da repercussão geral, acórdão de 20/9/2017), o STF adotou a mesma ratio decidendi, dessa vez em relação à norma que regulava a atualização dos débitos da Fazenda Pública em momento anterior à expedição do precatório, buscando manter a paridade de critérios dos débitos fazendários antes e depois do precatório. Declarou inconstitucional o uso da TR previsto no 1º-F da Lei nº 9.494/97, e sua substituição pelo IPCA-E, novamente sem exclusão da Justiça do Trabalho.

Assim, considerando o caráter vinculante da ADI 4.357 e do Tema 810, não tendo havido na ADC 58 qualquer discussão sobre overruling parcial, a restringir a ratio daqueles julgados, nem seria necessária a conveniente ressalva aposta pelo relator na ementa do acórdão da ADC 58  de que os critérios desta se aplicam aos créditos reconhecidos pela Justiça do trabalho,

"…À exceção das dívidas da Fazenda Pública que possui regramento específico (artigo 1º-F da Lei 9.494/1997, com a redação dada pela Lei 11.960/2009), com a exegese conferida por esta Corte na ADI 4.357, ADI 4.425, ADI 5.348 e no RE 870.947-RG (tema 810)" ADC 58, 18/12/2020, publ. 07/04/2021, item 5 [14].

Finalmente, registre-se que, se ainda restava sombra de dúvida, dissipou-se com o julgamento dos embargos declaratórios, no último dia 25, em que foram negados os efeitos infringentes buscados pela Advocacia-Geral da União. Esta alegava que o regime deveria ser uniforme para devedores trabalhistas privados e públicos e, portanto, requeria a atribuição de efeitos infringentes aos declaratórios, para que se estendessem os critérios da ADC 58 à Fazenda Pública. No entanto, o Plenário Virtual acompanhou unanimemente o relator, que rejeitou o pleito, considerando que a matéria já fora debatida no voto e está conforme a jurisprudência do STF [15].

Logo, os critérios vinculantes da ADI 4.357 e Tema 810 continuam a se aplicar a débitos diretos da Fazenda Pública perante a Justiça do trabalho, aliás como observado na ementa da ADC 58, ratificada pelo Plenário em sede de embargos declaratórios.

4 ) Fazenda Pública enquanto devedora subsidiária ou sucessora de empresa extinta matéria infraconstitucional e estranha à discussão
A AGU requeria, nos mesmos embargos declaratórios, que a Excelsa Corte aclarasse como ficariam os critérios aplicáveis à Fazenda Pública enquanto devedora subsidiária ou sucessora de empresa extinta, caso mantida a inaplicabilidade da ADC 58 aos seus débitos como devedora principal. A corte entendeu, entretanto, que tal questão envolve a análise de legislação infraconstitucional, nem mesmo questionada nas ações diretas, posteriormente estranha ao debate, não sendo possível sua arguição em embargos declaratórios.

Assim, tais questões deverão ser pacificadas pelas instâncias julgadoras trabalhistas, possivelmente na senda do vetor indicado pela OJ nº 382, da SBDI-1 do TST, que distingue o regime aplicável à Fazenda Pública devedora direta da situação em que responsabilizada subsidiariamente pelo débito.

 


[1] ConJur. STF esclarece que em casos trabalhistas Selic incide desde ajuizamento da ação. 23/10/2021, 10h36min. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2021-out-23/creditos-trabalhistas-selic-incide-partir-ajuizamento-acao>.

[2] Acerca da aplicabilidade da ratio decidendi sobre a inconstitucionalidade da TR em dívidas contra a Fazenda Pública (ADI 4377 e Tema 810 da Repercussão geral) também para o contexto de devedores trabalhistas privados, ver PRITSCH, Cesar Zucatti; JUNQUEIRA, Fernanda Antunes Marques; MARANHÃO, Ney. Correção monetária de débitos trabalhistas: análise da recente decisão monocrática do STF — ARE 1.247.402. Revista Migalhas, 6 de março de 2020. Disponível em: <www.migalhas.com.br/depeso/321322/correcao-monetária-de-débitos-trabalhistas-análise-da-recente-decisão-monocrática-do-STF-are-1247402>. Tal estudo teve a honra de ser citado no voto do Ministro Edson Fachin na própria ADC 58, páginas 107-108 do respectivo acórdão (ver ainda a leitura do voto em 27/08/2020, <https://youtu.be/sEnUtMEM2sQ?t=1927>). Ao menos quanto à inconstitucionalidade da TR como indexador de dívidas judiciais trabalhistas, acabou sendo a tese acatada unanimemente pelo Plenário do STF.

[3] Apesar de não medir a inflação, sendo alterada periodicamente conforme política monetária do COPOM, vinculado ao Banco Central, geralmente em patamares inferiores à inflação.

[4] Sobre tais contradições lógicas, ver PRITSCH, Cesar Zucatti; JUNQUEIRA, Fernanda Antunes Marques; MARANHÃO, Ney. ADC 58 e correção monetária de débitos trabalhistas: "tem caroço nesse angu". Revista Migalhas, 3 set. 2020. Disponível em: <https://migalhas.uol.com.br/depeso/332860/adc-58-e-correcao-monetaria-de-debitos-trabalhistas—tem-caroco-nesse-angu>.

[5] BANCO CENTRAL. Taxas de juros básicas – Histórico. Disponível em <https://www.bcb.gov.br/controleinflacao/historicotaxasjuros>.

[6] G1. IPCA: inflação oficial fica em 1,16% em setembro e atinge 10,25% em 12 meses. 08/10/2021. Disponível em <https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/10/08/ipca-inflacao-oficial-fica-em-116percent-em-setembro.ghtml>.

[7] Embora o acórdão ainda não tenha sido publicado, a minuta de voto do relator no Plenário Virtual foi disponibilizada neste CONJUR, em <https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/embargos-declaracao-adis-6021-5867.pdf>.

[8] Ver o "Dispositivo", item 6 da Minuta de Voto do relator disponibilizada por este CONJUR em <https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/voto-gilmar-acoes-correcao-trabalhista.pdf>.

[13]Logo, havendo inconstitucionalidade no caput do art. 39, que adota a TR, também fica comprometido seu § 1º, sob pena de determinarmos a cumulação de índices de correção monetária, gerando onerosidade excessiva e enriquecimento sem causa: …” Disponível em <https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/embargos-declaracao-adis-6021-5867.pdf>.

Autores

  • é juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA), juiz do trabalho membro da Comissão de Jurisprudência do TRT da 4ª Região, autor do "Manual de Prática dos Precedentes no Processo Civil e do Trabalho" (Editora LTr), coordenador de "Precedentes no Processo do Trabalho" (RT) e coautor de "Direito Emergencial do Trabalho" (RT, no prelo).

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