Opinião

Alterações na Lei de Improbidade e o CPC/15: necessário diálogo entre as fontes

Autor

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

9 de novembro de 2021, 19h17

Assim como tivemos oportunidade de fazer em relação à nova Lei de Licitações [1], pretendo tratar, nas linhas a seguir, dos pontos de diálogo entre a Lei 14.230/2021, que trouxe profundas alterações à Lei de Improbidade Administrativa (LIA, Lei 8.429/92), e o Código de Processo Civil de 2015.

Não é papel deste ensaio se deparar pelas complexas e, por vezes, polêmicas mudanças advindas da legislação publicada no final de outubro, e, sim, fazer algumas reflexões acerca do necessário diálogo com a legislação processual geral, em relação a institutos como procedimento, competência, tutelas provisórias, litisconsórcio, partes, cumprimento de sentença, conversibilidade etc.

O ponto de partida para estas reflexões comparativas é a leitura do denso conteúdo do artigo 17 da LIA. Nele, há previsão de legitimidade ativa ao Ministério Público e tramitação pelo procedimento comum do CPC/15, ressalvados aspectos contidos na própria lei especial, como a prevenção para as demais ações com o mesmo objeto litigioso (artigo 17, §5º), os requisitos obrigatórios da peça de ingresso (artigo 17, §6º) e o prazo para a defesa comum em 30 dias (artigo 17, §7º).

Em seguida, este mesmo artigo 17 nos permite dialogar com chamada improcedência liminar do pedido, incluindo situações que ultrapassam os limites do artigo 330 do CPC/15, como quando não estiverem preenchidos os requisitos constantes nos incisos I e II do §6º do artigo 17, ou quando manifestamente inexistente o ato de improbidade imputado (artigo 17, §6º-B). Aliás, a lei especial permite que a improcedência seja decretada a qualquer momento, em casos de inexistência do ato de improbidade (artigo 17, §11).

Ademais, esse mesmo dispositivo consagra o cabimento do recurso de agravo de instrumento, de certo modo ampliando as hipóteses previstas no artigo 1.015, do CPC/15, para impugnar a decisão que: 1) rejeitar as preliminares suscitadas pelo réu (artigo 17, §9º-A); 2) converter da ação de improbidade em ação civil pública (artigo 17, §17); 3) tenha natureza jurídica de interlocutória (artigo 17, §21).

Em seguida, o artigo 17 estabelece que, após a contestação, poderá ocorrer o julgamento conforme o estado do processo (artigos 354 a 357 do CPC/15 e artigo 17, §10-B, I, da LIA), com decretação de manifesta inexistência de ato de improbidade e, se for o caso, com o desmembramento do litisconsórcio "com vistas a otimizar a instrução processual" (artigo 17, §10-B, II) o que, a meu ver, demonstra clara preocupação do legislador com a efetividade e a primazia da resolução de mérito.

De outro prisma, a leitura do §10-F deste artigo 17 permite identificar clara ligação com mais dois importantes institutos do CPC/15: julgamento parcial de mérito e nulidade da decisão (o que também está previsto no artigo 17-C, da LIA). Esse §10-F trata da nulidade da decisão de mérito total ou parcial (julgamento parcial de mérito — artigo 356 do CPC/15) que condenar o réu por tipo diverso do que fora definido na peça de ingresso ou sem a produção de provas por este tempestivamente indicadas.

Antes de encerrar os comentários ao artigo 17 da LIA, entendo necessário apontar ligação com mais dois importantes institutos previstos na lei processual geral: a) a citação da pessoa jurídica para, caso queira, intervenha no processo (§14), hipótese esta que, apesar da mudança redacional em relação ao que era previsto originariamente no texto legal, sempre trouxe proximidade com o previsto na Lei da Ação Popular (artigo 6º, §3º, da Lei 4.717/65) e influencia na sua legitimidade para os atos de cumprimento de sentença (artigo 18 — o que será ratificado em seguida); b) a possibilidade de desconsideração de pessoa jurídica, desde que atendidos os regramentos previstos nos artigos 133 a 137, do CPC/15 (artigo 17, §15, da LIA).

De outro prisma, é importante fazer o elo de ligação entre o instituto da tutela provisória prevista no CPC/15 e os preceitos contidos na LIA. Apesar dos requisitos, momentos e espécies estarem consagrados na legislação processual geral, as alterações ocorridas na lei especial tiveram preocupação específica em relação a indisponibilidade de bens, que pode ser requerida de forma antecedente (tutela provisória de urgência antecedente), ou mesmo incidental (artigo 16).

A leitura desse artigo 16 permite apontar que o cabimento da tutela provisória de urgência visando a indisponibilidade de bens, quando demonstrado o "perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência dos atos descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos elementos de instrução, após a oitiva do réu em 5 (cinco) dias" (artigo 16, §3º, da LIA), ou mesmo sem a oitiva do réu, em casos de possível frustração da eficácia da medida ou existindo outras circunstâncias que a justifique (artigo 16, §4º).

Portanto, a tutela provisória pode ser apreciada de forma liminar ou mediante oitiva prévia do réu em cinco dias, com a aplicação, no que couber, do regime da tutela provisória de urgência prevista no CPC (artigo 16, §8º, da LIA) e estando passível de interposição de impugnação mediante agravo de instrumento (artigo 1015, I, do CPC/15 e artigo 16, §9º, da LIA). O §12 deste mesmo artigo 16, determina que o magistrado faça a análise dos efeitos práticos da decisão que apreciar o pedido de indisponibilidade, sendo "vedada a adoção de medida capaz de acarretar prejuízo à prestação de serviços públicos" (artigo 16, §12). Nesse ponto, a LIA dialoga com o contido no artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb).

Em seguida, a previsão e detalhamento do acordo de não persecução civil (artigo 17-B e parágrafos da LIA). Referido acordo é cabível desde que dele advenham, ao menos, os resultados previstos no artigo 17-B da LIA: ressarcimento integral do dano / reversão da vantagem indevida à pessoa jurídica. Já o artigo 17-C consagra que a sentença deverá observar, além dos elementos essenciais previstos no artigo 489, do CPC/15, outros requisitos específicos da apuração do ato de improbidade.

No que respeita às consequências da sentença e a formação de título executivo judicial, vale destacar o regramento contido no artigo 18 da LIA: formação de título em favor da pessoa jurídica prejudicada pelo ilícito (apesar da legitimidade para a propositura da demanda ser do Ministério Público), visando à eventual liquidação e cumprimento de sentença referente ao ressarcimento dos danos e à perda ou à reversão dos bens e valores ilicitamente adquiridos, no prazo de seis meses após o trânsito em julgado, sob pena da medida ser adotada pelo Parquet, sem prejuízo da apuração de eventual responsabilidade em decorrência da omissão (§§1º e 2º do artigo 18). No §4º desse mesmo artigo 18, a LIA consagra a figura do parcelamento do débito resultante da condenação, o que se assemelha, exceto quanto ao prazo e alguns regramentos específicos, ao contido no artigo 916, do CPC.

De outro prisma, é importante destacar alguns institutos previstos no CPC/15 que expressamente não se aplicam à LIA. Pela redação do artigo 17, não se aplica à ação de improbidade: a) a confissão, em caso de recusa ou silêncio (artigo 17, §18); b) a presunção de veracidade dos fatos afirmados pelo autor, em caso de revelia (artigo 17, §19, I); c) imposição de ônus probatório ao réu, como previsto nos §§1º e 2º do CPC (artigo 17, §19, II); d) o reexame necessário em case de improcedência ou extinção do processo sem resolução de mérito (artigo 17, §19, IV).

Por derradeiro, mesmo não tendo ligação direta com o objeto central deste ensaio, entendo importante destacar que as alterações advindas da Lei 14.230/2021 procuram solucionar controvérsia antiga envolvendo os limites entre as ações de improbidade e civil pública. Enquanto o artigo 17-D da LIA deixa claro seu caráter repressivo e sancionatório, não se confundindo com as ações sujeitas ao regime da Lei 7.347/85, o artigo 17, §§16 e 17, permite a conversão da ação de improbidade em civil pública, decisão sujeita à interposição de agravo de instrumento.

 

Autores

  • é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), doutor e mestre em Direito (UFPA), professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do IDP-DF, advogado e procurador do estado do Pará.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!