Opinião

'Pejotização' e planejamento tributário: o que ainda falta dizer?

Autores

  • Mayara Aguiar Kikuchi

    é advogada formada pela PUC-SP atua com direito público consultivo e contencioso. É pós-graduanda em processo civil e assistente acadêmica em Direito Administrativo na PUC-SP.

  • Thiago Fabri Berni

    é advogado formado pela PUC/SP atua com direito público consultivo e contencioso pós-graduando em direito tributário pelo Ibet associado ao IBDT e assistente acadêmico em Direito Administrativo na PUC-SP.

9 de novembro de 2021, 6h03

Ao longo dos anos não foram poucos os questionamentos que o tema da "pejotização" sofreu no âmbito da Administração Pública (leia-se Carf) e no Poder Judiciário. Recentemente algumas relevantes posições vieram à luz e sua análise pode ser a inauguração de um novo questionamento sobre as antigas posições estabelecidas, ou pior, a manutenção daquelas que já existiam.

Passemos à norma. O artigo 129 da Lei nº 11.196/05 nasceu como uma dupla-hélice: de um lado é norma que reforça a permissão de liberdade do contribuinte organizar da melhor forma seus negócios; de outro proíbe o abuso da personalidade jurídica, consubstanciado na confusão patrimonial ou desvio de finalidade (CC, artigo 50). É norma permissiva e proibitiva ao mesmo tempo [1].

Na biologia, a "dupla-hélice" é naturalmente associada à grande descoberta da forma do DNA, responsável por uma revolução tecnológica. E para que o DNA é uma dupla-hélice?

Primeiro, para aumentar a estabilidade das ligações de hidrogênio realizadas entre os famosos pares A-T e G-C, isto é, adenina com timina e citosina com guanina, com lembranças do ensino médio. Segundo, para que a substituição de uma das hélices possa levar a uma reprodução mais segura.

Voltemos ao Direito. Onde está a estabilidade (dupla-hélice) do artigo 129 da Lei nº 11.196/05? Onde está a segurança ao contribuinte em seguir os contornos da norma jurídica (rectius: reprodução da incidência)?

Poucos meses atrás, em março deste ano, o Supremo Tribunal Federal, por apertada maioria, declarou a constitucionalidade do comentado artigo na ADC nº 66. E o fez por alguns fundamentos, quais sejam: 1) liberdade de iniciativa (CF, artigo 1º, inciso IV); e 2) liberdade econômica no exercício das atividades profissionais (CF, artigo 5º, inciso XIII e artigo 170, parágrafo único).

Porém, o voto da ministra relatora, Cármen Lúcia ressalvou que "a opção pela contratação de pessoa jurídica para a prestação de serviços intelectuais descrita no artigo 129 da Lei n. 11.196/2005 não se sujeita à avaliação de legalidade e regularidade pela Administração ou pelo Poder Judiciário quando acionado, por inexistirem no ordenamento constitucional garantias ou direitos absolutos". Essa ressalva foi completada no voto-vista do ministro Dias Toffoli ao afirmar que "o artigo 129 da Lei nº 11.196/05, em sua parte final, prevê a observância do artigo 50 do Código Civil, o qual autoriza o Poder Judiciário a desconsiderar a personalidade jurídica em caso de abuso caracterizado, por exemplo, pelo desvio de finalidade".

A dupla-hélice para o Supremo Tribunal Federal poderia se sustentar na seguinte frase: "Poder até pode, dever é outra questão". Em poucas palavras, há a liberdade de organização negocial, porém essa liberdade encontra limite na confusão patrimonial e no desvio de finalidade da pessoa jurídica, sendo que, hoje, o desvio de finalidade se consubstancia legalmente apenas no intuito de lesar credores ou praticar atos ilícitos (CC, artigo 50, §1º, conforme redação da Lei nº 13.874/19), não se falando de simulação ou qualquer outra hipótese normativa, como o parágrafo único do artigo 116.

Muita coisa deveria ter mudado, mas não mudou. Dois são os posicionamentos do Carf posteriores ao julgamento da ADC nº 66 mais emblemáticos.

No primeiro, um avanço tímido com manutenção daquilo que já era conhecido e esperado [2]. O Acórdão nº 2202-008.531, de outubro de 2021, examinou a possibilidade de tributação na pessoa jurídica da atuação de advogado como árbitro. Nesse acórdão, considerando o julgamento da ADC nº 66, a 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara entendeu que houve prestação de serviço intelectual e personalíssimo, pois "a referência a prestação por pessoa jurídica, contida no art. 129 da Lei 11.196/05, concerne à existência de pessoa jurídica constituída para fins que englobem a atividade de prestação de serviços intelectual, aí incluídos os de caráter personalíssimo, de modo tal que se sujeite à legislação das pessoas jurídicas para fins previdenciários e fiscais" [3].

Já no segundo houve desavanço  a jurisprudência está sempre a avançar sobre algo e, nesse segundo posicionamento, deu passos desfavoráveis ao contribuinte, na medida em que a 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais manteve o entendimento de que o fato de artistas prestarem serviços personalíssimos e organizarem suas atividades por meio de pessoas jurídicas fraudaria ou simularia a real existência de contratos de trabalho [4], com fundamento no artigo 50 do Código Civil.

Todo desavanço geral decorre de um desentendimento. Desvio de finalidade da pessoa jurídica ocorre se a constituição e utilização da pessoa jurídica lesar credores ou for utilizada para praticar atos ilícitos — este é o axioma decorrente do entendimento do Supremo Tribunal Federal na ADC nº 66.

Porém, fato é que o Fisco não é um credor lesado, na medida em que há a possibilidade da terceirização da atividade-fim e  não obstante  há o direito fundamental da liberdade de organização dos negócios, ainda que isso implique em menor arrecadação aos cofres públicos. O interesse público primário está na organização e prosperidade dos negócios, e não na simples arrecadação (interesse público secundário).

Não nos parece que o fundamento da decisão esteja no artigo 50 do Código Civil, mas, sim, na seara do planejamento tributário abusivo e na ausência de propósito negocial para a organização dos negócios dos particulares. Esse é o segundo desentendimento na decisão da Câmara Superior que leva ao desavanço ocorrido.

Afinal, poderia se pensar na aplicação de todo arcabouço lógico do "propósito negocial" [5] para além daquilo que foi determinado pelo artigo 129 da Lei nº 11.196/05? Além da proibição de confusão e lesão de credores, deve ser considerada a inexistência de planejamento tributário abusivo?

Nos parece que sim, considerando que o artigo 129 não é um manto para acobertar quaisquer situações, mas toda cautela neste tema é pouca  e talvez esse seja o desafio após a ADC nº 66, saber quais são os limites da dupla-hélice de norma antielisiva e permissiva de planejamento tributário, que serão definidos no julgamento da ADI nº 2.446.

Por ora, ainda que tal ideia esteja presente na atual mentalidade do Carf de forma escondida, devemos lembrar que ninguém falou em abuso da personalidade jurídica na prestação de serviços e muito menos se trouxe à tona o famigerado "propósito negocial" em hipótese de planejamento tributário abusivo, que carece de qualquer previsão no ordenamento jurídico brasileiro, mas, sim, o único limite legal concebível ao artigo 129 da Llei nº 11.196 é o artigo 50 do Código Civil. A "dupla-hélice" nesse caso está mais para a desestabilizações das relações do que para sua reprodução segura, pois não são jurisprudencialmente claros os limites da atuação dos particulares na organização de sua vida civil.

 


[1] Apenas, antes de adentrar à reflexão, lembremos sempre que qualquer serviço é prestado sempre pela pessoa natural, esteja ela numa relação jurídica contratual ou trabalhista  há, isto sim, a liberdade na escolha da relação jurídica, mas não há qualquer liberdade no fato natural da vida, pois quem presta não quer dizer em qual caixinha jurídica presta, sendo necessário distinguir o mundo fenomênico do mundo jurídico e compreender, ainda, de modo eles se interseccionam.

[2] No acórdão nº 9202-003.031 julgado pela Câmara Superior de Câmara de Recursos Fiscais.

[3] Voto do Conselheiro Ronnie Soares Anderson.

[5] E que recentemente foi usado como "fundamento" no acórdão do REsp nº 1.925.025 —) SC julgado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça.

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