Mesmo sem esquecimento

Citar réu absolvido por chacina no Linha Direta gera indenização, diz STJ

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9 de novembro de 2021, 20h08

Ainda que não se reconheça a existência do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico, ao citar no programa Linha Direta um acusado de participar da chacina da Candelária que foi absolvido, a TV Globo cometeu excesso no exercício da liberdade de informação. Logo, deve indenizar pelos danos morais.

Tânia Rêgo/Agência Brasil
Um dos casos trata da chacina da Candelária, no RJ, retrata pelo programa Linha Direta, da Globo
Tânia Rêgo/Agência Brasil

Com essa conclusão, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ratificou a condenação da emissora a pagar R$ 50 mil pelos danos morais contra o homem. O julgamento foi concluído nesta terça-feira (9/11) por maioria de votos, conforme a posição do relator, ministro Luís Felipe Salomão.

O caso foi o primeiro em que o STJ aplicou a tese do direito ao esquecimento, em 2013. A Globo recorreu ao Supremo Tribunal Federal, que em fevereiro de 2021 fixou tese no sentido de que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal.

A tese traz uma segunda parte indicando que "eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais — especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível".

É justamente nesse ponto que, segundo a 4ª Turma, a Globo pecou contra o homem.

O autor da ação esteve entre um dos acusados de cometer o crime que chocou o país em janeiro de 1993, quando policiais à paisana abriram fogo contra as cerca de 70 crianças e adolescentes que dormiam nas escadarias da igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro.

Ele foi preso, denunciado e absolvido pelo Tribunal do Júri. Quando a Globo quis retratar o episódio no Linha Direta, foi procurado pela emissora e manifestou sua expressa vontade de não ser citado no programa. Mesmo assim, teve nome e imagem exibidos.

Na ação, pediu indenização porque sua imagem no programa reascendeu na comunidade onde reside a imagem de chacinador e provocou ódio social e ameaças de morte. Ao fim, teve que se mudar de residência.

Para o ministro Luís Felipe Salomão, está configurado o abuso cometido pela emissora. Embora a reportagem tenha retratado o episódio de forma fidedigna, o home não teve sua imagem de inocentado reforçada, mas sim de indiciado.

"No caso, permitir nova veiculação do fato com a indicação precisa do nome e imagem do autor significaria a permissão de uma segunda ofensa à sua dignidade", concluiu o ministro Salomão.

Gustavo Lima/STJ
Ministro Salomão apontou que citação desnecessária em programa sensacionalista causou dano indenizável, segundo o STF
Gustavo Lima/STJ

Cadê o dano?
O ministro Raul Araújo abriu a divergência nesta terça-feira, em voto-vista que retomou o julgamento. Relembrou que a petição inicial e as instâncias ordinárias não trouxeram qualquer apontamento de abusos do direito de informar por parte da Globo.

O que se fez, em disso, foi aplicar a tese do direito ao esquecimento — tese essa que agora é inaplicável, como decidiu o Supremo.

“O único excesso foi ter anunciado o nome e ter mostrado o rosto do autor. Ao contrário, foi reconhecido não haver abuso do direito de informação e que a emissora não faltou com a verdade ao narrar os fatos, nem se reportou a eles de maneira desrespeitosa. O próprio recorrido disse que a causa de pedir era apenas a veiculação dos fatos sem a sua autorização, com graves consequências, excluindo-se a existência de afirmações falsas ou injuriosas”, disse.

Portanto, divulgar nome e imagem de uma pessoa indiciada pelo crime e que foi posteriormente absolvida, ainda que sem autorização da mesma, não caracteriza por si só conduta ilícita. Sem abuso ou adjetivações sobre o citado, não há ilícito. Por isso, propôs a retratação para julgar improcedente a ação.

Lucas Pricken
Divulgar nome e imagem de uma pessoa indiciada, por si só, não gera dano, divergiu o ministro Raul Araújo
Lucas Pricken

Sensacionalismo
Ao acompanhar o relator, a ministra Isabel Gallotti destacou que o programa Linha Direta era mais do que um programa de reportagens jornalísticas. Ele não abordava notícias do dia, mas episódios marcantes, que eram exibidos em vídeos especiais em horário nobre e com caráter fortemente sensacionalista.

“A divulgação desse fato, que virou evento histórico e não pode, nem deve ser esquecido, poderia muito bem ter sido feita sem mencionar o nome e a imagem desta pessoa que sofreu o processo e terminou absolvido”, afirmou. “Em se tratando de programa de TV, poderia até haver atores que representassem cada um dos processados”, sugeriu.

Para ela, o excesso praticado pela Globo não está em noticiar algum fato supostamente inverídico ou em adjetivar o autor da ação de forma negativa. “Basta mostrar a figura do autor e o seu nome em horário nobre de televisão, o que me parece inteiramente desnecessário para que se narre o fato histórico ocorrido”, afirmou.

O ministro Antonio Carlos Ferreira também votou com o relator. Disse que o acórdão inicial passou longe de simplesmente aplicar a tese do direito ao esquecimento: fez uma avaliação do caso concreto sobre a informação desnecessária transmitida pela Globo e que causou dano ao autor da ação.

Ao completar a maioria formada, o ministro Marco Buzzi citou “a receptividade do homem médio” a reportagens como as do Linha Direta, pela qual foi possível reascender uma desconfiança geral quanto à índole do homem, ainda que inocentado criminalmente pelos atos. A imagem que ficou foi a de indiciado, não de inocente. “Ela por si só causa grande clamor. É de um sensacionalismo inegável”, concluiu.

Rafael Luz/STJ
Em se tratando de programa de TV, poderia usar atores para retratar cada processado, sugeriu a ministra Isabel Gallotti
Rafael Luz/STJ

Mais juízo de retratação
Esse é o primeiro julgamento que o STJ recebe de volta do STF para eventual juízo de retratação. Outro caso já liberado pela vice-presidência da corte é o Recurso Especial 1.660.168, que será enfrentado pela 3ª Turma.

Em 2018, o colegiado aplicou o direito ao esquecimento para obrigar Google, Yahoo e Microsoft a filtrar resultados em suas páginas de busca referentes às suspeitas de fraude em concurso para magistratura que teria sido praticada por uma promotora.

Também nesse caso, a autora da ação foi inocentada — esta, pelo Conselho Nacional de Justiça, que reconheceu problemas no método adotado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e até emitiu recomendações para os concursos seguintes. Ainda assim, quaisquer buscas de seu nome na internet a vinculavam diretamente às acusações.

REsp 1.334.097

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