Opinião

A violência contra as mulheres e a nova Lei de Licitações

Autor

  • Jaques F. Reolon

    é economista advogado mestre em Direito doutorando em Direito Constitucional e sócio fundador da Jacoby Fernandes & Reolon Advogados Associados.

8 de novembro de 2021, 20h33

A nova Lei de Licitações [1] fortalece o enfrentamento à violência doméstica contra a mulher ao permitir que os editais de licitações, conforme regulamento a ser editado, destinem a essas mulheres um percentual mínimo da mão-de-obra na execução dos contratos administrativos.

Por se tratar de uma suposta faculdade do gestor público, mas atrelada à satisfação de direitos fundamentais, espera-se que esse tema complexo seja tratado com acurácia, como tem sido a praxe do Ministério da Economia nos regulamentos que edita.

Todas as ações estatais de enfrentamento à violência contra a mulher, mais evidentes a partir de 2006 no Brasil, constituem o substrato de diretrizes constitucionais protetivas da família, da mulher, das crianças, dos adolescentes e de um rol considerável de direitos fundamentais, a exemplo da vida, da saúde, da dignidade humana e outros.   

Por isso, o §9º do artigo 25 da nova Lei nº 14.133/2021, como parte de um procedimento logístico de aquisições públicas, tem sua relevância jurídica na satisfação de tais direitos fundamentais, mas sem constituir-se um fim em si mesmo.

Não se trata apenas de coibir a violência física contra as mulheres, mais evidente, mas também a psicológica, a sexual, a moral e a patrimonial, por isso a importância de dar condições mínimas de sobrevivência financeira independente à mulher, além de primar por sua saúde mental.

Obviamente que o regulamento deverá erigir nortes para o gestor público trilhar caminhos de segurança jurídica ao concretizar a mens legislatoris, posto que as distinções legais são geralmente polêmicas.

A Constituição [2] e a nova Lei de Licitações objetivam a economicidade das contratações públicas e, ao permitir a alocação diferenciada desse tipo de mão-de-obra das mulheres vítimas de violência doméstica, pode ocorrer uma execução contratual mais onerosa e ensejadora de uma tomada de contas especial.

Ademais, embora haja cadastro com mulheres vítimas de violência doméstica, muitas não possuirão a aptidão técnica exigida para ocupar postos de trabalho nos referidos contratos e, a depender da situação, até desigualar a disputa ao favorecer uma empresa em detrimento às demais.

Como se vê, na concretização da vontade do legislador, vários fatores de insegurança surgem e é natural que isso aconteça no período de acomodação da norma, por isso a importância de um regulamento abrangente, detalhado e com a participação de vários agentes na sua redação.

Os regulamentos da Lei nº 14.133/2021 são postos em consulta pública pelo Ministério da Economia, na forma do artigo 29 da Lei nº 13.655/2018, mas, nesse caso específico da violência contra a mulher, realizar também diálogos institucionais será mais eficiente.

Haverá necessidade de usar as informações do Cadastro Nacional de Violência Doméstica contra a Mulher, gerido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) [3], para dar efetividade ao objetivo da norma, e não somente regulamentar um dispositivo de caráter instrumental de compras e de contratações públicas.

A iniciativa deve abarcar não somente o uso dessas informações, mas a inteligência institucional consolidada do CNMP e de outros órgãos e entidades, pois o desafio não é somente permitir esse percentual de mão de obra nos contratos, mas qualificar quem não possui aptidão e propiciar meios para que possam cumprir uma eventual jornada de trabalho. E todos os entes federativos e seus respectivos órgãos e entidades poderão congregar esforços para efetivar esse objetivo [4].

Trata-se, pois, de utilizar as licitações públicas como meio de acesso ao mercado de trabalho para viabilizar a proteção dos direitos fundamentais das mulheres vítimas de violência doméstica, à similaridade da garantia de acesso ao mercado às micro e pequenas empresas e aos oriundos ou egressos do sistema prisional [5].

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) também são atores importantes e devem participar desse diálogo institucional.

O primeiro, como órgão de cúpula da administração da Justiça brasileira, por instrumentá-la para enfrentar o tema e por contribuir intensamente na sua discussão, sob a perspectiva da atuação e da contribuição do Poder Judiciário brasileiro.

O segundo, pela sua iniciativa notória de combate ao feminicídio, em âmbito institucional e na interlocução com diversos stakeholders, cujo exemplo mais presente é a campanha Sinal Vermelho [6] Contra a Violência Doméstica.

Não seria desarrazoado um órgão jurisdicional anular um procedimento licitatório que não observou o comando do inciso I do §9º do artigo 25 da Lei nº 14.133/2021 se ausente uma justificativa plausível, porque as contratações governamentais devem satisfazer também os direitos fundamentais assentados na Constituição, na medida da lei. Obviamente que a análise deverá ser atrelada às circunstâncias do caso concreto.

Os Tribunais de Contas do Brasil e, de modo mais intenso, o seu paradigma, o Tribunal de Contas da União (TCU), visto que se estruturam em simetria ao modelo federal, também podem contribuir nessa temática.

Esses órgãos de controle entende-se devam exigir que a ausência de previsão, nos editais de licitação, de percentual de mão-de-obra feminina vítima de violência doméstica seja devidamente motivada pelo gestor público, expondo-se as razões de fato e de direito factíveis. E, mais, podem recomendar a adoção de medidas para evitar que essas omissões editalícias perenizem o descumprimento da norma de índole legal e constitucional.

Vale registrar que o Brasil é signatário de tratados internacionais que combatem a violência de gênero, espécie que contempla a violência contra a mulher. Fala-se aqui de direitos e garantias sob proteção constitucional [7].

 


[1] BRASIL. Lei nº 14.133/2021. Artigo 25, §9º: "O edital poderá, na forma disposta em regulamento, exigir que percentual mínimo da mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por: I  mulheres vítimas de violência doméstica".

[2] BRASIL. Constituição. Artigo 70, caput.

[3] BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Artigo 26, inc. III: "Artigo 26 – Caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de outras atribuições, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando necessário […] III  cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher".

[4] BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. "Artigo 8º – A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes […] VI  a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher".

[5] BRASIL. Lei nº 14.133/2021. "Artigo 4º – Aplicam-se às licitações e contratos disciplinados por esta Lei as disposições constantes dos artigos 42 a 49 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.” e Artigo 25, §9º: "O edital poderá, na forma disposta em regulamento, exigir que percentual mínimo da mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por: […] II – oriundos ou egressos do sistema prisional".

[6] De que se destaca a atuação da sua presidenta, Renata Gil, juíza do Estado do Rio de Janeiro.

[7] BRASIL. Constituição. "Artigo 5º, §2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."

Autores

  • Brave

    é presidente da Associação Nacional dos Advogados nos Tribunais de Contas do Brasil (Anatricon), vice-presidente da Jacoby Fernandes & Reolon Advogados Associados, mestrando em Administração Pública, especialista em Direito Administrativo e membro das comissões de Direito do Terceiro Setor e de Advocacia nos Órgãos de Controle da OAB. Ocupou diversos cargos em tribunais de contas, como assessor de conselheiro, assessor-chefe no Ministério Público e secretário executivo do Ministério Público.

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