Opinião

A Lei do Superendividamento e os seus primeiros reflexos no Poder Judiciário

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8 de novembro de 2021, 7h10

A Lei nº 14.181/2021, ou Lei do Superendividamento, que entrou em vigor em 1º de julho deste ano, promoveu alterações substanciais na Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor, ou CDC) e acréscimo pontual na Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso). Veio, pois, em boa hora para concretizar a prevenção e o tratamento do fenômeno preocupante do superendividamento do consumidor.

É interessante observar como a nova normativa vem gradualmente sendo incorporada pelas práticas rotineiras das empresas, sobretudo por aquelas alinhadas aos preceitos de boa governança e de responsabilidade social do ESG (environmental, social and governance"). Afinal, são inquestionáveis os pontos de contato entre a Lei do Superendividamento e o prestígio à dignidade da pessoa humana e à cidadania, ao fornecer mecanismos concretos de mitigação do superendividamento da pessoa natural, prestigiar o crédito responsável, promover a educação financeira e preservar o caráter alimentar da remuneração.

Um dos grandes desafios da nova normativa, contudo, é que ela conta com diversos conceitos abertos, como, por exemplo, o indefinido "mínimo existencial" mencionado nos artigos 6º, XII, e 54, §1º, objeto, inclusive, de elucidativa audiência promovida pela Senacon e pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública no último dia 21, para fins de debates sobre sua conceituação.

No aspecto procedimental que envolve a "conciliação no superendividamento", a lei tem contornos mais fechados, mas, ainda, sujeitos a variações, tendo em vista a competência concorrente do Poder Judiciário e de diversos órgãos de defesa do consumidor em presidi-la.

Com efeito, operadores do Direito e fornecedores de crédito estão atentos às movimentações acerca do tema, de modo a observar e entender como esse protagonismo da conciliação ocorrerá na prática e, ainda, como os demais preceitos e premissas trazidas pela legislação serão observados.

Pois bem. O presente artigo busca compartilhar com o leitor duas recentes decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que, de forma vanguardista e ativa, estabeleceu que tudo deve ser feito a seu devido tempo: 1) primeiro, vem a instauração do procedimento de repactuação de dívida a pedido da pessoa natural, com a necessária designação de audiência de tentativa de conciliação, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento a todos os seus credores, e na qual será franqueada aos credores a plena oportunidade de debater e negociar, nos termos do novo artigo 104-A do CDC (algo que se assemelha a uma assembleia de credores em recuperação judicial, mas tendo o consumidor como figura central, e guardadas as particularidades do sistema consumerista, por óbvio); 2) após, e somente quando infrutífera a tentativa de conciliação, é que sobrevém o procedimento do plano compulsório avalizado pelo juiz, para fins de revisão e integração dos contratos e repactuação das obrigações no cenário de superendividamento, como determina o artigo 104-B. Cronologia esta que se alinha às lúcidas explanações do CNJ quando a lei entrou em vigor, em julho passado.

Destacamos, assim, em primeiro lugar, o quanto consignado no julgamento do AI nº 2192582-61.2021.8.26.0000 (18ª Câmara de Direito Privado, relator desembargador Roque Antonio Mesquita de Oliveira, j. 9/9/2021), no qual a corte bandeirante bem decidiu no sentido de que "o processo de repactuação de dívidas será apresentado ao juiz, o qual providenciará a audiência conciliatória, com a presença de todos os credores das dívidas previstas no artigo supra referido (artigo 54, § 1º, do CDC)", ocasião na qual o consumidor apresentará a proposta de plano de pagamento nos termos dispostos no novo artigo 104-A.

Nesse particular, foi bem o tribunal ao consignar que "não existe fundamento legal para o deferimento da tutela" de urgência pleiteada pelo autor para suspensão dos pagamentos de parcelas de dívida, novamente "em face da clareza da lei a respeito da necessidade da audiência prévia, considerando a ausência da probabilidade do direito e a possibilidade do risco ao resultado útil do processo, antes de dar oportunidade aos agravados de apresentarem manifestação a respeito do plano de pactuação, observando-se, bem por isso, o princípio constitucional do contraditório".

Não deixa de ser louvável a invocação do contraditório em favor dos credores — a ser exercido, em sua plenitude, somente na audiência de tentativa de conciliação, nos termos do artigo 104-A, caput, do CDC —, o que endossa que a repactuação das dívidas não depende apenas da vontade do devedor (que deve estar de boa-fé, frise-se), mas que deve ser facultado ao credor a ampla faculdade de opinar, negociar, contrapor e até mesmo se recusar a embarcar na proposta.

Mais recentemente, sobreveio o julgamento do AI nº 2178280-27.2021.8.26.0000 (15ª Câmara de Direito Privado, relator desembargador Mendes Pereira, j. 11/10/2021), no qual bem se decidiu que "o procedimento inserido no Código de Defesa do Consumidor para pagamento de débitos que o devedor supostamente não tenha condições de adimplir ao tempo e modo contratados demanda a realização de uma audiência conciliatória, nos termos do artigo 104-A. Apenas nesta oportunidade é que o consumidor apresentará sua proposta de pagamento".

E, com clareza solar, a corte cravou: "Respeitada a tese do recorrente de que teria direito à repactuação dos seus débitos, na verdade, o que há é tão somente a possibilidade de junção dos débitos contraídos perante o mesmo credor, respeitadas aquelas as limitações do artigo 104-A, § 1º. Além do que não existe imposição legal ao réu para que aceite as condições oferecidas pelo devedor". Tudo para, ao final, ordenar a realização de audiência conciliatória prévia, prevista no novo artigo 104-A do CDC.

Como se observa, portanto, dos bem lançados acórdãos, a nova diretriz legislativa vai no sentido de que não há um direito absoluto à repactuação para o superendividado, mas que há, antes de tudo, o direito à renegociação com os credores, que podem, ou não, aceitar a proposta colocada na mesa; e se não aceitarem, sujeitam-se à compulsoriedade do plano judicial do artigo 104-B do CDC, sem prejuízo da oportunidade de justificarem as razões pela negativa de aderir ao plano voluntário ou renegociar (§2º do mesmo dispositivo).

Restam prestigiados, portanto, não apenas o contraditório em favor do credor que merece ser ouvido, mas também o respeito, ao menos de plano, à autonomia das partes no que efetivamente pactuaram, que somente após o debate entre devedor e credores, e mediante o detido escrutínio judicial ou dos órgãos de defesa do consumidor, pode ser modificada, salvo nas situações periclitantes autorizadoras da concessão da tutela de urgência.

A despeito de os julgados do TJ-SP serem um bom "começo de prosa", o assunto ainda é novo e, como tal, demandará observação e, quando necessária, proatividade, de modo a que os elementos teleológicos que dão sustentação à prática conciliatória, inclusive respeitando os direitos dos credores, não sejam violados ou mitigados.

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