Opinião

A nova Lei de Improbidade Administrativa e o Superior Tribunal de Justiça

Autor

  • Leonardo Bruno Pereira de Moraes

    é sócio do escritório Bornhausen & Zimmer Advogados professor doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC e membro do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da UFSC e da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

8 de novembro de 2021, 16h10

Inicialmente, destaca-se a expressão "nova Lei de Improbidade Administrativa". Ainda que a Lei n° 14.230/2021 somente promova alterações na Lei n° 8.429/1992, sem uma revogação completa, a verdade é que as inovações legislativas modificam de forma substancial a própria lógica da "antiga" Lei de Improbidade Administrativa.

Sob a perspectiva social, a nova Lei de Improbidade Administrativa aparece como uma resposta da classe política aos alegados excessos praticados pelo Ministério Público e às interpretações do Poder Judiciário. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo destacar as mudanças legais que superam expressamente entendimentos do Superior Tribunal de Justiça. De modo diverso do que é colocado tradicionalmente no fenômeno do backlash, a nova Lei de Improbidade Administrativa não resulta de uma revolta da sociedade diante das decisões proferidas pelo Judiciário, mas constitui um contragolpe da classe política tradicional às interpretações dadas pelo Superior Tribunal de Justiça, que tornaram mais severas as sanções previstas em lei e autorizaram uma persecução generalizada dos gestores públicos, causando o chamado "apagão das canetas".

Desse modo, o trabalho parte de temas repetitivos e de julgamentos recentes em sede de embargos de divergência pela 1ª Seção, para verificar se existe na nova Lei de Improbidade Administrativa uma contraposição ao entendimento firmado pela Corte Superior de Justiça. Sendo assim, os seguintes tópicos serão analisados: 1) decretação da indisponibilidade de bens quando ausente ou não demonstrado o perigo da demora (Tema 701); 2) reexame necessário em ações de improbidade administrativa (Tema 1.042); 3) inclusão do valor da eventual multa civil nas medidas de indisponibilidade de bens (Tema 1.055); 4) ocorrência de dano presumido (in re ipsa) na frustração à licitude de processo licitatório ou na sua dispensa indevida (Tema 1.096); 5) dolo genérico nas contratações de servidores públicos sem concurso público (Tema 1.108); 6) conversão da sanção de perda da função pública em cassação de aposentadoria (EREsp nº 1.496.347); 7) extensão da sanção de perda da função pública (EREsp nº 1.701.967); 8) dolo genérico nas hipóteses de violação a princípios (EREsp nº 1.193.248).

Inicialmente, destaca-se que o Superior Tribunal de Justiça havia firmado entendimento no Tema Repetitivo 701, que era possível a decretação da indisponibilidade de bens dos réus em ações civis de improbidade administrativa, ainda que ausente, ou não devidamente demonstrado, o periculum in mora consistente em um risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial. Entretanto, a Lei n° 14.230/2021 alterou o artigo 16 da Lei de Improbidade Administrativa para fazer constar expressamente em seu parágrafo 3º que "o pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência dos atos descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos elementos de instrução, após a oitiva do réu em cinco dias". Ou seja, o legislador passou a exigir a demonstração inequívoca do perigo da demora, não sendo suficiente a plausibilidade do direito, e, por consequência, superou o Tema 701.

Em relação ao reexame necessário em ações civis de improbidade administrativa, o Tema 1.042 se encontra afetado, mas pendente de julgamento. Nesse caso, a alteração legislativa introduziu o artigo 17-C na Lei de Improbidade Administrativa, que em seu parágrafo 3º estabelece que "não haverá remessa necessária nas sentenças de que trata esta Lei", de modo a encerrar as discussões acerca desse tópico na corte superior.

No que tange à possibilidade de inclusão do valor da eventual multa civil nas medidas de indisponibilidade de bens, o Superior Tribunal de Justiça havia decidido no sentido de sua legalidade, inclusive naquelas demandas ajuizadas com base na alegada prática de conduta prevista no artigo 11 da Lei 8.429/1992, relacionadas à ofensa aos princípios da administração pública. Ocorre que a Lei n° 14.230/2021 alterou a legislação vigente para prever em seu artigo 16, parágrafo 10, que "a indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita". Sendo assim, uma vez mais, o Congresso Nacional superou a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, e o Tema 1.055, ao limitar a indisponibilidade de bens ao valor do ressarcimento ao erário.

Por sua vez, o Tema 1.096, ainda pendente de julgamento, trata da ocorrência de dano presumido (in re ipsa) na frustração à licitude de processo licitatório ou na sua dispensa indevida. Nesse ponto, a Lei n° 14.230/2021 alterou a redação do caput do artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa para incluir a nova expressão "que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial" nos casos de prejuízo ao erário. Além disso, especificamente quanto ao inciso VIII, que versa sobre o ilícito de frustrar a licitação, o legislador acrescentou os termos "acarretando perda patrimonial efetiva". Desse modo, resta inegável que a Lei n° 14.230/2021 tem impacto direto no Tema 1.096, que acabou superado com a recente alteração legislativa relativa aos danos ao erário.

O último recurso repetitivo a ser enfrentado é o Tema 1.108, sobre o dolo genérico nas contratações de servidores públicos sem concurso público. O assunto deve ser tratado em conjunto com os embargos de divergência no Recurso Especial n° 1.193.248, que consolida a jurisprudência da corte superior sobre a legalidade de condenação com base no dolo genérico nas hipóteses de violação a princípios da administração pública. Sob esse aspecto, a nova Lei de Improbidade Administrativa afastou a tese do dolo genérico com a alteração do artigo 1º para incluir o parágrafo 2º: "Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente". Para além da inovação mencionada, houve mudança no inciso sobre concursos públicos, de modo a acrescentar a expressão "com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros". Sendo assim, passou-se a exigir um ônus específico do Ministério Público em comprovar não somente irregularidades no concurso, mas as vantagens obtidas pelos agentes públicos.

Sobre a conversão da sanção de perda da função pública em cassação de aposentadoria, o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento que incide sobre as sanções da Lei de Improbidade Administrativa o princípio da legalidade estrita, por se tratar de matéria de Direito Sancionador. Por essa razão, nos Embargos de Divergência em REsp n° 1.496.347, determinou-se que a cassação de aposentadoria é competência privativa da autoridade administrativa, não sendo possível a sua decretação pelo Judiciário. A Lei n° 14.230/2021 não tratou do assunto, mantendo-se vigente a jurisprudência.

Finalmente, quanto à extensão da sanção de perda da função pública, a corte superior de Justiça recentemente tratou da citada matéria nos Embargos de Divergência no REsp n° 1.701.967. Naquela oportunidade, o Poder Judiciário decidiu que o agente público condenado à sanção de perda da função pública deveria deixar todos os vínculos que tivesse com o serviço público ao tempo do trânsito em julgado, ainda que parte desses vínculos (ou todos) não tivesse relação com o ato de improbidade administrativa. Nesse ponto, a Lei n° 14.230/2021 trouxe uma solução equalizadora do debate. O parágrafo 1° do artigo 12 da Lei de Improbidade Administrativa passou a dispor que nas hipóteses de dano ao erário sem enriquecimento ilícito a sanção "atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração". No caso de enriquecimento ilícito, caberá ao juiz estender excepcionalmente a perda aos demais vínculos, consideradas as circunstâncias do caso e a gravidade da infração. Por último, o legislador excluiu a sanção de perda da função pública nas hipóteses de violação aos princípios da Administração Pública.

As contraposições entre a Lei n° 14.230/2021 e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mencionadas acima, corroboram com a tese inicial de que a alteração legislativa sobreveio como uma resposta política ao endurecimento dos entendimentos do Poder Judiciário. Sob essa perspectiva, deve-se tecer uma breve crítica, pois aparentemente o Superior Tribunal Justiça havia alargado demasiadamente as interpretações punitivas da Lei de Improbidade Administrativa, mesmo sendo matéria de direito sancionador. Resta descobrir se o Poder Judiciário aceitará as decisões políticas traçadas pelo Legislativo ou se haverá uma resposta institucional por meio de novo ativismo judicial.

Autores

  • é sócio do escritório Bornhausen & Zimmer Advogados, professor, doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina, membro das Comissões de Direito Constitucional e Direito Eleitoral da OAB-SC, membro do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da UFSC e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.

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