Opinião

As provas digitais e o operador do Direito do século 21

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8 de novembro de 2021, 14h04

O conhecimento sobre "provas digitais" é essencial ao sucesso do operador do Direito no Século 21.

Estamos inseridos na sociedade da hiperconexão ou, como também pode ser referida, do tudo online, com a singularidade de pessoas estarem ininterruptamente ligadas umas às outras, assim como pessoas ligadas a coisas e, ainda, coisas conectadas a coisas [1]; da inteligência artificial, na qual máquinas substituem o homem nos postos de trabalho e desempenham até mesmo tarefas do cérebro; do algoritmo, caracterizada por programas de internet que reconhecem nossos desejos e nos conduzem a uma decisão, como por exemplo, a de comprar ou não comprar; das relações interpessoais mais virtuais do que físicas, atreladas à impessoalidade e "pessoalidade à distância"; e, sobretudo, da vigilância constante dos nossos atos cotidianos e do armazenamento ilimitado de dados da nossa rotina pessoal, social e profissional.

O jurista atento sabe "navegar" com segurança no mundo da "revolução 4.0", aproveitando os mecanismos de interação entre o homem, a máquina e suas conexões múltiplas para beneficiar o trabalho forense. Hoje, é imprescindível a preparação face às inovações tecnológicas, que afetam a vida em sociedade e que, rapidamente, se tornam obsoletas ou são substituídas.

Importante dizer que atravessamos uma etapa disruptiva da história, as atuais relações sociais são marcadas pela presença de tecnologias inovadoras que proporcionam interação imediata entre os interlocutores, seja qual for a distância física. Tais características foram precipitadas pela pandemia do coronavírus, que impôs o isolamento das pessoas e fez com que as reuniões telepresenciais se tornassem regra de convivência, não estamos simplesmente evoluindo de um modo de interação social que já existiu.

A "era da informação" constituída pelos avanços em ciência, robótica e tecnologias da Terceira Revolução Industrial, em conjunto com a consolidação da internet e a criação de ciberespaços para compilação de dados fizeram surgir inúmeras possibilidades de alcançar a verdade real dentro do processo judicial. Nesse contexto, a "prova digital" é mais uma ferramenta para comprovação de fatos ou de reforço a outros elementos probatórios.

As "provas digitais" podem ser conceituadas como a forma de demonstrar um fato ocorrido no meio digital ou fora deste, servindo de igual modo para comprovar a autoria de um ato, através do conteúdo digitalizado da informação, obtenível em ambiente da internet (fontes abertas — livre acesso; ou fechadas — necessidade de login e senha) ou armazenado em dispositivos eletrônicos. A título de exemplo de provas digitais, cito o "envio de um e-mail, envio de uma mensagem por aplicativo de mensagens (WhatsApp, Telegram, entre outros), cópia ou desvio de base de dados, cópia de software, disponibilização de um vídeo na internet (conteúdo íntimo ou difamador), dentre outros" [2]. Existem, ainda, os rastros digitais (estação rádio base, informações de localização, logs de registros, IP — internet protocol etc.).

No ordenamento jurídico brasileiro, prevalece a regra da vedação da prova ilícita e são admitidos todos os meios probatórios, desde que legal ou moralmente legítimos, razão pela qual a prova obtida por meio eletrônico é válida. É preciso alertar, no entanto, que a prova digital para ter validade deve ser coletada eletronicamente, com preservação da cadeia de custódia [3], mediante a qual juízes e as partes podem periciar o processo da produção da prova (identificação, localização no meio digital, coleta e extração de resultados), confirmando a autenticidade e a idoneidade como meio probatório. No particular, a lei processual civil estabelece que o ônus da prova incumbe à parte que produziu o documento, quando impugnada sua autenticidade (artigo 429, II, do CPC).

A utilização da prova digital não significa liberdade ampla para apresentação de todo e qualquer dado eletrônico nos autos do processo. Não é demais lembrar que a Constituição Federal consagra a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (artigo 5º, X, da CF).

Frente a essa transformação social, com a internet em crescimento exponencial e a utilização indevida de imagens e dados pessoais ("conteúdos virais" [4]), foi necessária a regulamentação de utilização da rede mundial com intuito de preservar a intimidade, honra e vida privada das pessoas (usuárias ou não da internet) expostas na web. Com a intenção de disciplinar essa situação, foram editadas as Leis nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) e nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais — LGPD).

A legislação pátria estabelece que o acesso à internet é um direito do usuário inerente ao exercício da cidadania e prescreve a "inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial", bem assim, possibilita que "a parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet" (artigo 7º, III, c/c 22 da Lei nº 12.965/2014).

Por sua vez, a LGPD regulamenta o tratamento de dados pessoais, nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, tendo como objetivo a proteção dos direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, estabelecendo o conceito legal de dado pessoal sensível: "(…) Sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural" (artigo 5º, II, da Lei nº 13.709/2018).

Sublinho que a disciplina legal não é óbice para que o magistrado, havendo indícios da ocorrência do ilícito (artigo 22, §único, I, da Lei 12.965/2014), possa, devidamente fundamentado, decidir e requisitar informações insertas em redes sociais (contatos, conversas, postagens, "curtidas" etc.), localização geográfica em sistemas digitais (timeline do Google; rotas no Waze etc.); dados e registros telefônicos guardados em operadoras telefônicas, provedoras de internet e nos serviços de backup e nuvens digitais, com a finalidade de revelar a verdade fática e formar o convencimento dos sujeitos envolvidos no processo.

Registro que o processo judicial é regrado pelo princípio da cooperação, estampado no artigo 6 do CPC, devendo os sujeitos do processo cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito. Há possibilidade de obter informações relevantes para encontrar a realidade vivenciada entre os litigantes, a partir da inspeção das caixas de e-mail, do histórico de navegação na internet, de equipamentos eletrônicos e de informática (smartphones, computadores, notebooks, redes virtuais etc.) da própria parte interessada no processo, com aplicação inclusive do artigo 400 do CPC [5].

Na sociedade hiperconectada [6], as partes não estão vinculados apenas às provas encartadas nos autos (documentadas no PDF). Pelo princípio da conexão, diferentemente do princípio da escritura, é possível obter informações em outras fontes fora do processo para proferir sua decisão em conformidade com os fatos reais. No particular, os metadados [7] e registros de acesso podem surgir como fator determinante para confirmação de outras provas ou para exame do fato controvertido.

O magistrado, nesse contexto, poderá determinar a apresentação de provas que positivem a realidade do conflito, para adequada formação do seu convencimento, com vista a proferir a decisão justa e efetiva. Por exemplo, a partir da hora, data e "geolocalização" de um aparelho digital instalado nos caminhões, ou até de um smartphone do motorista, poderá ser confirmado o horário de ativação diária do trabalhador, onde começou e terminou o trajeto do veículo, para efeito de contrapor os controles de jornada documentados e de fixação da jornada do empregado de uma empresa de transporte.

Do mesmo modo, considerando que atos ilícitos praticados em assédio sexual ou moral ocorrem, via de regra, em espaço fechado e sem a participação de terceiros, o juiz pode ordenar, ao advogado cabe requerer, uma pesquisa em redes sociais e na internet aberta para verificar fatos, comportamentos do acusado e da vítima que podem contribuir para resolução da questão controvertida. Assim como podem ser trazidas aos autos conversas travadas nos aplicativos de mensagens, horas antes e horas depois do suposto ato ilícito, a fim de se verificar comportamento dos envolvidos e veracidade das alegações expostas na petição inicial e defesa. Tais providências podem demonstrar indícios do assédio sexual ou moral, confirmando a denúncia, através da análise do conjunto de provas.

Devidamente justificada e para investigação de ato ilícito, sendo útil ao processo, não há violação à intimidade e privacidade a obtenção de mensagens pessoais dos aplicativos, que foram apagadas e podem estar armazenadas na "nuvem" (backup) e, assim, podem ser extraídas e colacionadas aos autos, especialmente, as mensagens relacionadas ao objeto do litígio (contrato de trabalho, por exemplo).

Não se pode ignorar a advertência que a exposição do conteúdo das referidas mensagens deve ficar, via de regra, reservada às partes envolvidas no processo, resguardando o patrimônio imaterial da pessoa (sigilo das informações e dos dados sensíveis).

A título ilustrativo, os metadados podem identificar as páginas da internet visitadas diariamente pelo usuário da rede, essas informações coletadas podem indicar, por exemplo, a convicção religiosa da pessoa, a sua orientação sexual e seu pensamento político. Tais informações são de índole particular e a sua exposição acarreta danos à intimidade e honra do cidadão e, sim, caracterizam dados sensíveis. Caso haja apresentação de provas desse jaez nos autos do processo, o juiz deverá determinar a sua tramitação em segredo de Justiça com acesso permitido às partes e seus advogados, aplicando o artigo 189, III, do CPC.

Destaco que, a meu ver, o uso das "provas digitais" tem limites e que não compete ao juiz substituir a parte na tarefa de produzir a prova para elucidação dos fatos de interesse dos litigantes. Tal premissa, entretanto, não é empecilho para, em busca da verdade real, adoção de medidas probatórias de ofício pelo magistrado e isso não importa em imparcialidade do julgador, já que o seu poder investigativo tem respaldo na legislação processual.

Fato é que, sem dúvida, não há mais espaço para o "advogado analógico" [8]. Novos padrões de comportamento se estabeleceram, a rede mundial de computadores criou algo original e transformador, abrindo um novo mercado de trabalho nas diversas áreas de conhecimento e surgiram necessidades novas, que as pessoas nem sabiam que precisavam.

Começar a "pensar digital" é uma atitude necessária ao operador do Direito. Por oportuno, exponho o pensamento extraído da obra "21 lições para o Século 21", do consagrado autor Yuval Noah Harari, que faz a seguinte reflexão sobre o comportamento do homem: "O mais importante de tudo será a habilidade para lidar com mudanças, aprender coisas novas e preservar seu equilíbrio mental em situações que não lhe são familiares. Para poder acompanhar o mundo de 2050 você vai precisar não só inventar novas ideias e produtos — acima de tudo, vai precisar reinventar a você mesmo várias e várias vezes (…)". Para o operador do Direito do século 21 não é diferente, "o profissional da área jurídica tem que estar constantemente atualizado para acompanhar as mudanças do mundo e aplicá-las no cotidiano do processo" [9].

A atuação dos profissionais jurídicos está em constante evolução, faz parte desse desenvolvimento o pensamento crítico, comunicativo, colaborativo e criativo. Com atenção e respeito aos dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade, adotar novas tecnologias, linguagem digital, conceitos e mecanismos próprios da "revolução 4.0" são medidas que enriquecem o trabalho do julgador e dos causídicos, fortalecendo e legitimando a investigação no ambiente forense, o que permite decisões judiciais mais próximas da realidade social.

Concluo, portanto, que utilizar dados obteníveis em meio digital como prova para resolver demandas assegura a efetividade das decisões judiciais e, além de ser adequado ao atual momento, qualifica o próprio Poder Judiciário no século 21, colaborando para a solução pacifica das disputas, atributo fundamental do Estado democrático.


[1] A internet das coisas nada mais é que uma rede de objetos físicos (veículos, prédios e outros dotados de tecnologia embarcada, sensores e conexão com a rede) capaz de reunir e de transmitir dados. É uma extensão da internet atual que possibilita que objetos do dia-a-dia, quaisquer que sejam mas que tenham capacidade computacional e de comunicação, se conectem à Internet (fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Internet_das_coisas, acesso em 01/11/2021).

[3] No contexto legal, refere-se à documentação cronológica ou histórica que registra a sequência de custódia, controle, transferência, análise e disposição de evidências físicas ou eletrônicas. De particular importância em casos criminais, o conceito também é aplicado em litígio civil – e algumas vezes mais amplamente no teste antidoping de atletas e em gerenciamento de cadeia de suprimentos, e.g. para melhorar a rastreabilidade de produtos alimentícios, ou para fornecer garantias que produtos de madeira se originaram de florestas gerenciadas sustentavelmente. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Cadeia_de_cust%C3%B3dia, acesso 25/10/2021).

[5] Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar se: 1 – o requerido não efetuar a exibição nem fizer nenhuma declaração no prazo do artigo 398; 2 – a recusa for havida por ilegítima. Parágrafo único. Sendo necessário, o juiz pode adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para que o documento seja exibido.

[7] Todos os dados descritivos de um documento, físico ou digital, sobre autor, data de criação, local de criação, conteúdo, forma, dimensões e outras informações são metadados. Sejam as informações disponíveis sobre um livro no catálogo de uma biblioteca[1], sejam os dados técnicos extraídos de uma fotografia digital (câmera usada, data de criação da fotografia, formato, tamanho do arquivo, esquema de cor etc.). Metadados são informações estruturadas que auxiliam na descrição, identificação, gerenciamento, localização, compreensão[2] e preservação de documentos digitais, além de facilitar a interoperabilidade de repositórios (https://pt.wikipedia.org/wiki/Metadados, acesso em 01/11/2021).

[9] Palavras da Juíza do Trabalho e Professora Erotilde Ribeiro dos Santos Minharro.

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