Opinião

A Lei da Sociedade Anônima de Futebol: novo cenário de investimentos?

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7 de novembro de 2021, 7h13

Introdução
A Lei nº 14.193/21, conhecida como Lei do Clube-Empresa ou Lei das Sociedades Anônimas do Futebol (LSAF), após alterações promovidas por alguns vetos presidenciais e derrubada de parte deles pelo Congresso Nacional, teve sua versão final publicada no último dia 21 e pode ser a grande responsável por iniciar a transição do amadorismo para o profissionalismo do futebol brasileiro, ao menos em termos de gestão corporativa e estruturação da atividade econômica.

A justificativa da criação da LSAF, atribuída pelo senador Rodrigo Pacheco, foi de que seria necessário "oferecer aos clubes uma via societária que legitime a criação desse novo sistema, formador de um também novo ambiente, no qual as organizações que atuem na atividade futebolística, de um lado, inspirem maior confiança, credibilidade e segurança, a fim de melhorar sua posição no mercado e seu relacionamento com terceiros, e, de outro, preservem aspectos culturais e sociais peculiares ao futebol" [1].

A discussão sobre a criação de um sistema de transição do modelo atual de organização dos clubes de futebol do Brasil  a maioria deles constituída sob a forma de associação civil que, por definição, não tem fins lucrativos  é antiga e, até então, não havia qualquer lei capaz de gerar otimismo no mercado.

A entrada em vigor da LSAF, embora não seja imune a críticas, parece-nos oportuna na medida em que assegura um sistema que proporcionará aos clubes a possibilidade de estruturar o futebol como atividade empresária, modelo este já praticado há anos nos mais diversos campeonatos de futebol estrangeiro, como Premier League (Campeonato Inglês), Série A (Campeonato Italiano) e Bundesliga (Campeonato Alemão).

Nesse sentido, a LSAF criou o tipo societário denominado sociedade anônima de futebol (SAF) como uma estrutura específica para os clubes de futebol, que, nos termos do artigo 1º, §2º, da LSAF podem ter como objeto social a prática de atividades vinculadas ao futebol, tais como: 1) o fomento e o desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática do futebol, feminino e masculino; 2) a formação de atleta profissional, nas modalidades feminino e masculino, e a obtenção de receitas decorrentes da transação dos seus direitos desportivos; 3) a exploração dos direitos de propriedade intelectual de sua titularidade; 4) a exploração de direitos de propriedade intelectual de terceiros, relacionados ao futebol; 5) a exploração econômica de ativos, inclusive imobiliários, sobre os quais detenha direitos; 6) quaisquer outras atividades conexas ao futebol e ao patrimônio da SAF, incluindo organização de espetáculos esportivos, sociais ou culturais; e 7) a participação em outra sociedade, como sócio ou acionista, cujo objeto seja uma ou mais atividades mencionadas acima, com exceção à formação de atletas.

As SAFs poderão ainda ser constituídas por meio: 1) da transformação do clube ou da pessoa jurídica original em SAF (artigo 2º, inciso I, da LSAF); 2) pela cisão do departamento de futebol do clube ou da pessoa jurídica original (artigo 2º, inciso II, da LSAF); ou, ainda, 3) pela iniciativa de pessoa natural, jurídica ou de fundo de investimentos (artigo 2º, inciso III, da LSAF).

Contexto
A possibilidade de os clubes de futebol se organizarem como sociedade empresária [2] tem origem na Lei nº 8.672/93 (Lei Zico) que permitia aos clubes, por meio de seu artigo 11, "manter(em) a gestão de suas atividades sob a responsabilidade de sociedade com fins lucrativos".

Em 2003, a Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé) foi alterada para refletir algumas alterações promovidas pela entrada em vigor do Código Civil de 2002 e, em seu artigo 27, §9º passou a dispor expressamente sobre a faculdade "às entidades desportivas profissionais constituírem-se regularmente em sociedade empresária, segundo um dos tipos regulados nos artigos 1.039 a 1.092 (do Código Civil)", o qual inclui, em seus artigos 1.088 a 1.089, as sociedades anônimas. Ou seja, desde 2003 a constituição de sociedades desportivas sob a forma de sociedades anônimas já era permitida.

No entanto, a previsão sem um respaldo econômico-jurídico transitório não foi bem recepcionada pelas entidades futebolísticas, especialmente pela desvantagem no âmbito tributário, na medida em que as associações civis  modelo adotado majoritariamente pelos clubes de futebol do Brasil  são isentas do recolhimento de diversos tributos federais, como o IRPJ, CSLL e Cofins, e apresenta vantagens no pagamento do PIS.

Não por outro motivo que, a título de exemplo, na Série A do Campeonato Brasileiro deste ano, dos 20 clubes que disputam o torneio, apenas dois deles são organizados como sociedades empresárias: Red Bull Bragantino e Cuiabá Esporte Clube.

Nesse sentido, a LSAF estabeleceu alguns incentivos àqueles que adotarem o novo modelo.

Podem ser citados como benefícios, entre outros: 1) a possibilidade de o clube cindir o departamento de futebol e transferir o seu patrimônio relacionado à atividade de futebol à SAF, criando um clube-empresa e separando do clube social (artigo 2º, inciso II, da LSAF); 2) regras objetivas de governança, como retirada do direito a voz e a voto nas assembleias gerais do acionista da SAF que detiver 10% ou mais do capital social em mais de uma SAF (artigo 4, parágrafo único, da LSAF); 3) a possibilidade de pedir recuperação judicial (artigo 13, inciso II, da LSAF) ou utilizar o regime centralizado de execuções, perante juízo único, para renegociar o seu passivo (artigo 13, inciso I, da LSAF); e 4) a adoção do regime de tributação específica do futebol (artigos 31 e 32 da LSAF).

Entre os mencionados mecanismos assegurados às SAFs, destaca-se a exposição ao mercado de capitais  praticamente inexistente ao modelo de associação , em razão da aplicação subsidiária da Lei nº 6.404/76 (LSA).

Oportunidades geradas pela SAF para reestruturação do passivo e financiamento dos clubes
A Seção V do Capítulo I da LSAF (artigos 13 a 25) trata das alternativas disponíveis à SAF para "pagamento das obrigações diretamente aos seus credores", sendo elas: 1) o regime centralizado de execuções, previsto na própria LSAF; e 2) o ajuizamento de pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, regulados pela Lei nº 11.101/05 (LFR).

Quanto ao regime centralizado de execuções, o artigo 22 da LSAF permite "ao credor de dívida trabalhista, como titular do crédito, a seu exclusivo critério, (a faculdade de ceder o) crédito a terceiro", esclarecendo ainda que o cessionário "ocupará a mesma posição do titular do crédito original".

A referida previsão vai de encontro com a recente alteração promovida na LFR, que, em seu artigo 83, §5º, passou a dispor que "os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação", dando fim às discussões a respeito da possibilidade de alteração da classificação dos créditos cedidos no âmbito das recuperações judiciais.

A previsão é oportuna para fomentar oportunidade, de um lado àqueles jogadores detentores de créditos milionários que preferem obter liquidez imediata de parte do crédito e extinguir a relação obrigacional com o clube e, de outro, aos players do mercado, interessados em investimentos estruturados e de maior risco que, após adquirirem o crédito, podem, inclusive, optar pela conversão do crédito "em ações da sociedade anônima do futebol ou em títulos por ela emitidos, desde que previsto em seu estatuto", conforme o artigo 20 da LSAF.

Além disso, o artigo 26 da LSAF criou as denominadas debêntures-fut, com características específicas, determinando, ainda, que os recursos captados por tal instrumento de dívida necessariamente "deverão ser alocados no desenvolvimento de atividades ou no pagamento de gastos, despesas ou dívidas relacionadas às atividades típicas da sociedade anônima do futebol".

Importante destacar que o veto presidencial do artigo 27 que permitia às SAFs a criação de "qualquer outro título de valor mobiliário" não limitou sua atuação à emissão das debêntures-fut, como uma interpretação equivocada do veto poderia propor.

O veto reconheceu a boa intenção da proposta, mas entendeu que a redação utilizada pelo artigo resultaria na ausência de limites "a tais agentes enquanto emissores de valores mobiliários", o que poderia causar certa insegurança jurídica, considerando que existem "diversos instrumentos passíveis de emissão no mercado de capitais, muitas vezes sujeitos a regime específicos, que consideram, dentre outros fatores, a natureza do emissor" [3].

Assim, a emissão de títulos e realização de operações se utilizando do mercado de capitais está autorizada à SAF, desde que preenchidos os requisitos da LSA e da CVM.

Outro aspecto que foi retomado pelo Congresso Federal após o veto presidencial diz respeito à utilização da Lei 11.438/06 (Lei de Incentivo ao Esporte) pelas SAFs.

O artigo 30 prevê a possibilidade de a SAF captar "recursos incentivados em todas as esferas de governo", inclusive decorrentes da Lei de Incentivo ao Esporte, mantendo mais um aspecto econômico favorável ao clube que adotar a nova modalidade, na medida em que poderia, por exemplo, deduzir até 1% do Imposto de Renda dos valores despendidos a título de patrocínio ou doação, no apoio direto a projetos desportivos e paradesportivos previamente aprovados pelo Ministério do Esporte (artigo 1, §1º, inciso I da Lei de Incentivo ao Esporte).

Conclusão
Após quase dois anos de pandemia da Covid-19, que inquestionavelmente afetou a receita dos clubes de futebol, com o consequente inadimplemento das obrigações e aumento das dívidas, a LSAF entrou em vigor apresentando alguns mecanismos que, se devidamente aplicados ao contexto específico de cada clube, poderão ajudar a transformar não só a realidade financeira da entidade desportiva, mas também a cultura do brasileiro para assegurar a devida seriedade que a atividade exige.

Além disso, a participação ativa de agentes econômicos externos de mercado que efetivamente fiscalizem as tomadas de decisão pelos dirigentes  na medida em que a administração imperita do clube pode ter um impacto financeiro direto aos agentes interessados  poderá contribuir pela profissionalização da administração dos clubes, diminuindo o número de dirigentes que se colocam acima dos interesses das entidades futebolísticas.

Cabe agora aos dirigentes, associados e torcedores decidirem se pretendem ou não extinguir o amadorismo no futebol brasileiro, deixando de subsistir como exportador de commodities das jovens promessas da base, para passar a consolidar e ditar um modelo de excelência nacional no país que melhor conhece de futebol em todo o mundo.

 


[1] Justificação do Projeto de Lei N° 5.516, de 2019. Senado Federal. https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8025061&ts=1634829035884&disposition=inline.

[2] "A sociedade empresária pode ser conceituada como a pessoa jurídica de direito privado não estatal, que explora empresarialmente seu objeto social ou adota a forma de sociedade por ações" COELHO, Fábio Ulhoa. Novo Manual de Direito Comercial. 31. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brazil, 2020, p. 133.

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