Público & Pragmático

O diálogo competitivo e a modelagem negociada de contratos complexos

Autor

  • Vitor Soliano

    é mestre em Direito Público (UFBA) professor da Faculdade Baiana de Direito membro da Comissão de Concessões e Parcerias Público-Privadas da OAB/BA e advogado.

7 de novembro de 2021, 8h00

Entre as múltiplas dimensões e características do Direito Administrativo contemporâneo, as interações público-privadas e o engajamento do particular nas múltiplas fases do exercício da função pública possuem um especial destaque. Essa nova realidade acabou se impondo ao longo do tempo por duas razões principais.

A primeira delas é o reconhecimento pragmático de que a Administração Pública e seus agentes, por melhor capacitados que sejam, não são infalíveis e que a estruturação, implementação, fiscalização e revisão de políticas públicas podem ser aprimoradas com a participação ativa dos particulares. Trata-se de uma razão ligada à busca por maior eficiência.

A segunda razão é um esforço para criar uma Administração Pública paritária, menos verticalizada, menos impositiva e cuja ação não se pauta apenas pela unilateralidade, mas pelo diálogo, pelo consenso, pela negociação. Uma Administração que se vale de contratos, consultas, audiências públicas e outros mecanismos de participação. Trata-se de razão ligada à busca de maior constitucionalização e democratização da ação administrativa, o que aprimora a sua legitimidade.

Esta característica da Administração Pública contemporânea se revela em diversos instrumentos e institutos positivados em uma miríade de leis e atos infralegais esparsos e efetivamente utilizados por uma variedade de órgãos e entidades administrativas.

A Lei Federal nº 14.133/21, diploma que alterou o regime geral de licitações e contratos administrativos, absorve alguns desses mecanismos anteriormente previstos apenas em leis especiais. Exemplos marcantes dessa absorção são a possibilidade de negociar condições mais vantajosas após o resultado final da licitação (artigo 61); a possibilidade de utilização do procedimento de manifestação de interesse para a estruturação de projetos em qualquer contrato administrativo (artigo 81); a possibilidade de se extinguir o contrato de forma consensual através da utilização da conciliação, da mediação ou pelo comitê de resolução de disputas (artigo 138, II); e a utilização de meios alternativos de solução de controvérsias (artigo 151).

O novo diploma, contudo, efetivamente inovou na ordem jurídica ao instituir o diálogo competitivo (DC), modalidade licitatória cuja lógica fundamental está em consonância com o paradigma de uma Administração Pública negocial e que vê no particular um parceiro não apenas na fase de execução, mas na fase de modelagem de contratos administrativos.

De acordo com o artigo 32 da Lei 14.133/21, o DC poderá ser utilizado somente em hipóteses restritas, seja quando a própria definição específica do objeto, seus contornos de execução e suas formas de avaliação sejam desafiadores (artigo 32, I), seja quando a Administração precise verificar meios e alternativas que atendam às suas necessidades (artigo 32, II).

A marca distintiva do DC é a existência de dois momentos: no primeiro, a realização efetiva do diálogo entre Administração e os particulares habilitados; no segundo, a competição pelo direito de celebrar o contrato modelado após o término do diálogo. A especificidade do DC está, portanto, no primeiro momento.

A fase dialógica pode e deve ser vista como uma etapa de negociação entre os particulares habilitados e o poder público. A operacionalização adequada do DC demandará que as reuniões entre Administração e particular não se resumam em apresentações unilaterais destes. É esperado, e positivo, que os encontros sejam marcados por diálogos francos e abertos, nos quais tanto a Administração quanto os particulares apresentem propostas e contrapropostas, apontem vícios, equívocos, excessos, insuficiências, expectativas irrealistas, realidades mercadológicas e técnicas etc. Nesse sentido, é fundamental que se enxergue a fase dialógica tal qual se encara uma negociação privada ordinária, respeitando-se, por obvio, o regime de Direito Público.

A fase dialógica é, portanto, a fase de negociação de aspectos técnicos, econômicos, financeiros e jurídicos do futuro projeto que será contratado. Um contrato com objeto complexo, cuja execução demanda um arranjo econômico-financeiro complexo e uma arquitetura jurídica complexa, tem muito a ganhar com essa etapa negocial. Mais ainda, é razoável assumir que contratos modelados por este mecanismo possuam maior aderência com o seu respectivo mercado.

Os artigos 179 e 180 da Lei Federal nº 14.133/21 alteraram, respectivamente, o artigo 2º, II e III, da Lei Federal nº 8.987/95 (Lei Geral de Concessões) e o artigo 10 da Lei Federal nº 11.079/04 (Lei das PPPs) para inserir o DC como modalidade licitatória passível de ser utilizada na modelagem e contratação de concessões. Na medida em que os módulos concessórios são instrumentos de delegação de serviços, bens, utilidades e atividades públicas e, por isso, instrumentos regulatórios por excelência, é possível afirmar que o novo diploma legal desenvolveu mecanismos de regulação negociada ou regulação consensual.

Embora a participação privada na modelagem de projetos de concessão já fosse uma realidade em razão da utilização do PMI, da contratação de consultorias especializadas e da realização de audiências e consultas públicas, o DC passa a ser um instrumento negocial de estruturação dos padrões, finalidades, mecanismos e incentivos regulatórios, assim como da alocação de riscos, dos deveres de investimento, dos níveis de serviço etc., veiculados nos contratos de concessão.

O DC também poderá ter espaço frutífero de utilização na estruturação dos novos modelos contratuais criados pela Lei nº 14.133/21 ou por legislação esparsa recente. Pense-se, por exemplo, no contrato de fornecimento ou obra com prestação de serviço associado (artigo 6º, XXXIV e 46, VII, Lei nº 14.133/21), ajuste por meio do qual o particular é contratado para fornecer um bem ou equipamento ou realizar uma obra pública e prestar um serviço associado a este bem/equipamento/obra. Embora possa se fazer paralelo com contratos já existentes, trata-se de inovação legislativa significativa e que, exatamente por essa razão, a Administração Pública não possui experiência em sua estruturação [1].

Nesse caso, a Administração tem a ganhar com a convocação de particulares interessados para modelar negocialmente esse tipo de ajuste, para colher elementos técnicos, jurídicos, econômicos fundamentais, assim como reflexões e apontamentos sobre a alocação de riscos, dificuldades de implementação e gestão, enfim, com o fito de receber inputs que não teria caso não se abrisse para o diálogo.

Em qualquer caso de utilização do DC, contudo, existem razões para se preocupar com comportamentos oportunistas de ambas as partes. Afinal, é esperado e normal que existam assimetrias informacionais entre o poder público e os particulares. Esses riscos, contudo, podem ser compensados, ao menos em favor da Administração, por meio do contato com os diversos particulares habilitados. As múltiplas reuniões que serão realizadas com diversos particulares poderão desempenhar função similar à da competição: a de revelar informações, o que reduz o risco de oportunismo, ainda que não o anule.

Ademais, embora possa servir como mecanismo de aprendizado, a própria utilização do DC demandará experimentação e aprendizado pela Administração Pública. Isso porque, embora os instrumentos negociais, dialógicos, consensuais de ação administrativa sejam cada vez mais utilizados e estejam cada vez mais presentes no sistema jurídico, estes ainda não são universais e ainda existe um elevado nível de desconhecimento e falta de preparo por parte dos agentes públicos para sua utilização.

Logo, apesar das virtudes que possui, o DC não deve ser enxergado como panaceia e deve ser utilizado de modo progressivo, colhendo-se experiência e aprendendo a utilizá-lo ao longo do tempo.


[1] O mesmo vale para o chamado "contrato de facility", previsto no artigo 7º da Lei Federal nº 14.011/20 e que consiste na "prestação, em um único contrato, de serviços de gerenciamento e manutenção de imóvel, incluído o fornecimento dos equipamentos, materiais e outros serviços necessários ao uso do imóvel pela administração pública, por escopo ou continuados".

Autores

  • é mestre em Direito Público (UFBA), professor da Faculdade Baiana de Direito, membro da Comissão de Concessões e Parcerias Público-Privadas da OAB/BA e advogado.

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