Tribunal do Júri

Racismo estrutural e sua relação com o júri

Autores

  • Thais Pinhata de Souza

    é advogada com experiência nas áreas de Direito Criminal e Fashion Law mestre e doutoranda em Direito pela Universidade do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo professora do curso de extensão Mulheres Encarceradas da UFRJ (Núcleo de Direitos Humanos) e consultora do Departamento Jurídico em Direito Antidiscriminatório do Instituto Nelson Mandela no Rio de Janeiro.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

6 de novembro de 2021, 8h00

Os debates envolvendo racismo e direito penal não são novidade. Entretanto, com a expansão da Teoria Racial Crítica (Critical Racial Theory — CRT), novas luzes foram lançadas a estudos que buscam racializar as relações entre as agências oficiais estatais e pessoas processadas criminalmente. No Brasil, esses debates ganharam destaque com a popularização do termo racismo estrutural, trabalhado, sobretudo, pelo jusfilósofo Silvio Almeida.

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Em linhas gerais, podemos entender o racismo estrutural como a naturalização de hierarquizações raciais por ações, posturas, pensamentos e hábitos que promovam, direta ou indiretamente, segregação e preconceitos relacionados imediatamente à cor; ligados mais profundamente à herança cultural e genética dos povos negros escravizados por mais de 300 anos nas Américas. Como resultado deste processo histórico estruturante da sociedade, temos a desvalorização de vozes que fogem aos padrões estabelecidos como socialmente ideais, restando para os povos negros o lugar de outro.

Faticamente, o reflexo é visto no acentuado abismo de desigualdade social e na desvalorização da cultura e da história dos negros brasileiros, indiretamente, e diretamente, nos diversos constrangimentos e questionamentos traumatizantes diários que serão perpetuados nos mais diversos ambientes e situações, entre eles também no tribunal do júri e suas condenações. Tal tese se apoia nas estatísticas criminais que apontam que o número de pessoas negras condenadas após o indiciamento é maior do que número de pessoas brancas na mesma situação, considerando-se números proporcionais [1]. Não obstante no último censo demográfico ter sido identificado que 51% da população é formada por negros e pardos, este número sobe para 67% no universo da população carcerária.

Esse conceito, entretanto, não deve ser pensado de maneira descontextualizada, sob pena de tratarmos tudo como um problema externo aos atores envolvidos e, portanto, desonerar racistas de responsabilidade por suas ações. Assim, é importante entender como tratá-lo no âmbito do direito criminal, o que pode ser feito a partir da experiência da Teoria Racial Crítica.

Nesse sentido, a racialização das relações entrou na teoria do direito pelos esforços de autores vinculados à já citada Teoria Racial Crítica. Esse movimento intelectual surgiu no final da década de 1980, em Escolas de Direito dos Estados Unidos — a partir, notadamente, de Harvard e Yale —, como ramificação dos Critical Legal Studies (CLS), corrente teórica que despontou nos anos 1970, sob inspiração da contracultura, das políticas de segregação nos EUA e do processo de descolonização da África e da Ásia.

A CLS buscou conciliar o marxismo com a sociologia vinda da escola francesa, leia-se, as então novíssimas teorizações de Michel Foucault, contrapondo-se à de ideologia liberal e ao formalismo jurídico que dominavam nosso campo. Enquanto a Critical Racial Theory, apoiada em autores como Derrick Bell, Patricia J. Williams, Richard Delgado, Kimberlé Crenshaw e Neil Gotanda, viu como única possibilidade de destruição da sociedade de mercado o enfrentamento direto do racismo e do colonialismo [2], vistos como estruturantes da sociedade e exigindo, nesse sentido, que se mudasse "o lugar da raça no mundo" [3].

Foi com base no desenvolvimento desses trabalhos e conceitos que hoje utilizamos, também no Brasil, que temas como a interseccionalidade e racismo estrutural penetraram no campos jurídico, permitindo-nos medir, questionar e remediar os efeitos do racismo no judiciário, ainda que pouco se tenha dedicado a trazer esses debates para o tribunal do júri.

Essa falta de debate é, muito provavelmente, resultado da própria natureza do júri no Brasil, que delibera, soberanamente, por íntima convicção, criando uma dificuldade de mensurar quais os reais motivos por trás de cada decisão. Entretanto, é mais que necessário que passemos, na qualidade de tribunos a pensar sobre os reflexos de tais temais e articulá-los perante os jurados, para conscientizá-los dos vícios adquiridos — a despeito da vontade própria — e capazes de estimular uma condenação que, por vezes, não deveria acontecer.

Neste aspecto, importante considerar o perfil e a composição da lista geral de jurados. Não é de hoje que se critica uma certa elitização dos potenciais membros do Conselho de Sentença [4]. Como normalmente se tem jurados de raças e classes socioeconômicas distintas daqueles que são julgados, o preconceito e vieses não apenas estão presentes como assumem um papel de protagonismo no resultado. Pelo aspecto cognitivo, os jurados tendem a ser mais lenientes com pessoas do mesmo grupo racial e mais severos com seus desiguais [5].

Por mais que ainda se tenha a necessidade do desenvolvimento de pesquisas empíricas sobre as influências raciais na tomada de decisão no Judiciário brasileiro (e, em especial, no júri), alguns estudos norte-americanos servem de alerta para a questão. A disparidade racial no sistema judicial dos EUA está bem evidenciada, com negros recebendo penas mais elevadas que brancos [6], bem como com a proporcionalidade entre negros na população em geral (13%) e encarcerados (30%). Pelo aspecto do julgamento pelo júri, os negros também são sub-representados como jurados tanto no momento do alistamento, quanto como membros do Conselho de Sentença [7]. A condenação de negros a penas mais severas também resta amplamente comprovada, até mesmo como consequência das desigualdades anteriormente citadas. Ademais, os negros têm sete vezes mais chances que os brancos de serem condenados indevidamente por homicídio [8].

Isso denota que a falta de consciência racial e o racismo estrutural possui consequências graves para aqueles que historicamente são os preferidos do sistema de justiça. Cabem a todos os envolvidos (magistratura, promotoria e defesa) uma preparação adequada com vistas a concretizar os ideais de justiça e de igualdade efetiva.

Pelo aspecto da defesa, a plenitude da defesa, princípio fundamental do Tribunal do Júri previsto no artigo 5º, inciso XXXVIII, da CF, exige, entre outras coisas, a atuação completa de uma defesa técnica que não se preste meramente a atuar de maneira formal, mas preze pela efetividade. Para pessoas racializadas, isso só será possível levando-se em conta, justamente, os efeitos que a categoria raça tem sobre suas vidas, incluindo-se aí uma equivocada percepção social de propensão à prática de crimes.

Um defensor que não seja capaz de sensibilizar o jurado para essas questões e, maiormente, não seja capaz de possuir uma escuta atenta à esses processos ou, por outro lado, uma acusação que se usa de signos raciais para garantir a condenação de um acusado, falham miseravelmente à principal justificativa pela manutenção do júri: a concretização da democracia.


[1] BORIN, Ivan. Análise dos processos penais de furto e roubo na comarca de São Paulo. 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2006. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-25052007-155007/en.php

[2] SOLORZANO, Daniel; CEJA, Miguel; YOSSO, Tara. Critical race theory, racial microaggressions, and campus racial climate: The experiences of African American college students. Journal of Negro education, p. 60-73, 2000, p 63.

[3]  Zuberi, Tukufu, and Eduardo Bonilla-Silva, eds. White logic, white methods: Racism and methodology. Rowman & Littlefield Publishers, 2008, p. 336.

[4] Veja-se, por exemplo: STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri. Símbolos & Rituais. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001; Capítulos 9.2.2 e 9.2.3 do livro Manual do Tribunal do Júri (PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021).

[5] MORRISON, Mike; DEVAUL-FETTERS, Amanda; GAWRONSKI, Bertram. Stacking the Jury: Legal Professionals' Peremptory Challenges Reflect Jurors' Levels of Implicit Race Bias. Personality and Social Psychology Bulletin, 2016, Vol. 42(8), p 1129–1141.

[6] Por exemplo, cita-se o artigo "Racial Disparities in the Criminal Justice System: Prevalence, Causes, and a Search for Solutions", de Margaret Bull Kovera (Journal of Social Issues. Vol. 75, n. 4. 2019, pp. 1139-1164).

[7] Por mais que a Suprema Corte Norteamericana tenha proibido a recusa de jurados baseada na raça (caso Batson v. Kentucky).

[8] GROSS, Samuel; POSSLEY, Maurice; STEPHENS, Klara. Race and Wrongful Convictions in the United States. The National Registry of Exonerations, Newkirk Center for Science and Society, 2017.

Autores

  • é advogada criminalista, doutoranda e mestre em Direito pela USP e professora do projeto de extensão Mulheres Encarceradas, do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.

  • é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE, Curso CEI) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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