Opinião

Juiz das garantias, cultura das audiências e resistência a uma novidade tardia

Autor

  • Thiago M. Minagé

    é advogado criminalista professor de Processo Penal pós-doutor pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro doutor e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá conselheiro estadual da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ e presidente da seção do Rio de Janeiro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

6 de novembro de 2021, 15h14

Após alguns anos de muita espera pela reforma do processo penal, experimentando, apenas, mudanças pontuais, uma significativa alteração na estrutura processual penal, trazida pela Lei nº 13.964 de 2019, chega causando alvoroço e discordâncias teóricas e práticas.

Nossa atual estrutura, além de ultrapassada e em inúmeros pontos, incompatível com a CRFB/88, trazia uma insistência na estrutura inquisitiva, ou seja, um evidente acúmulo/confusão de funções processuais, vez que o juiz, além de possuir iniciativa probatória, realizava, simultaneamente, tarefas totalmente incompatíveis, como investigar os fatos, produzir e reunir provas, assegurar os direitos e garantias constitucionais/individuais do investigado/acusado, decidir o caso etc.

A nova lei começa (no que se refere o código de processo penal) com uma afirmação, bastante conhecida, mas até então, não reconhecida. Qual seja: "Artigo 3-A — O processo penal terá estrutura acusatória…". Digo isso pois muito se afirmou que nosso sistema é acusatório, porém, devido ao fato de não haver uma previsão expressa, sempre os deparamos com violações e ataques ao que se entende por sistema acusatório.

De nada adiantava afirmar que nosso sistema era acusatório se continuávamos a permitir, praticar e manter no texto legislativo institutos nitidamente inquisitivos. Em especial o papel atribuído aos sujeitos processuais, pois mencionava a separação das funções de investigar e julgar, atribuindo-as a sujeitos distintos, mas insistia na manutenção de textos legislativos totalmente contrários.

Nosso CPP desde sempre apresentou incompatível aos diversos tratados internacionais de direitos humanos (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Convenção Americana sobre Direitos Humanos), que insistentemente buscaram garantir o devido processo como expressão da dignidade da pessoa humana, garantia de direitos individuais e limitação/controle do uso do poder estatal.

Ao aderir à uma perspectiva de sistema acusatório, a recente reforma caminhou ao adotar a função primordial anunciada ao juiz criminal, qual seja: garantir direitos. Desde o momento de formalização da investigação, passando pelo controle da legalidade dessa fase, análise de pedidos de quebra de sigilos, prisões, cautelares reais etc., até o momento decisório de recebimento da denúncia (artigo 399, CPP).

Cabe ao magistrado criminal conduzir o processo e zelar pelo efetivo contraditório e pela plena observância das garantias processuais penais dispostas na Constituição e na legislação processual penal, perante cada ato estatal de natureza penal [1]. Para essa efetivação, a nova lei cria, de forma expressa, porém, tardia (até então não reconhecida), duas etapas de atuação jurisdicional: 1) juiz das garantias: fase pré-processual, até a fase de recebimento da denúncia (artigo 399 do CPP); e 2) juiz da instrução: que conduzirá o processo da fase probatória (a partir do artigo 400, CPP) até a sentença.

Pois bem, inúmeros aspectos podem e devem ser analisados, mas optarei pelo recorte político, técnico e cultural. Principalmente devido à compreensão sobre sistema processual e nossa (enraizada) mentalidade inquisitória, baseada na escrita burocrática e no sigilo inconstitucional.

No que se refere à questão política, faltava-nos um texto legal. Sim, uma lei. Basta observar os avanços conquistados nos países latino-americanos, onde muitos buscaram estabelecer medidas de resposta direta e simplificada, alheias à prisão preventiva, como, por exemplo, a cultura das audiências para requerimento (MP), impugnação (defesa) e decisão (juiz) imediata. Observem que, além de celeridade na solução dos impasses (e resposta estatal), conseguem respeitar o sistema acusatório, como também, direitos e garantias dos envolvidos.

Quanto às funções técnicas, basta observar: atualmente, a prisão preventiva é o centro do processo penal. Dificilmente nos deparamos com denúncias que não estejam no mínimo acompanhadas de um pedido de prisão preventiva. A centralidade do processo nas audiências nos leva a um patamar de maior rigor no controle dos atos invasivos de direitos, centralizando todos os atos a uma participação direta das partes e vinculação jurisdicional entre presentes. Toda atuação estaria atrelada ao crivo jurisdicional, respeitando os direitos dos envolvidos e viabilizando uma redução de erros e arbitrariedades, o que, de fato, refletiria na redução do manejo de recursos e impetrações de Habeas Corpus.

No quesito cultural, seria necessária uma efetiva compreensão do que significa um processo democrático constitucional. De forma magistral, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho nos diz: "Compatibilizar o aparentemente incompatível é imperioso, porque só assim as pessoas se vão dando conta que a CR precisa ter eficácia plena e sair do papel" [2], e mais à frente continua: "Enfim, pode-se ter um novo CPP, constitucionalmente fundado e democraticamente construído, mas ele será somente linguagem se a mentalidade não mudar" [3].

De forma positiva, tivemos o avanço e a atualização legislativa e a questão política começa a ser superada. O primeiro passo foi dado: editamos e acertamos a legislação. Pois bem. Mas ainda temos dois aspectos: o técnico e cultural, que, de certa forma, estão interligados.

A matriz inquisitória e centralizadora de poderes está enraizada no judiciário. Magistrados não querem garantir direitos (exceto os próprios), e, sim, restringi-los.

Nesse cenário, identifica-se ser plausível a existência de traços não acusatórios, no sentido do desempenho real dos postos dos atores processuais técnicos. Esses podem confundir as suas funções, polarizando seus atos no sentido de convergir a interesses alheios à finalidade do processo penal.

A principal alteração e desafio com a adoção do juiz das garantias será a implementação da cultura das audiências para requerimentos de cautelares, quebras de sigilos e controle da investigação. Abandona-se a superficialidade formal para uma efetiva participação de todos os envolvidos, em especial, do investigado e sua defesa técnica.

O respeito e o cumprimento das formas processuais devem ser considerados como uma das tarefas mais importantes para que o exercício do poder seja, efetivamente, controlado e limitado. O cumprimento das regras postas denota confiança nos atos praticados, ou seja, por mais que existam divergências e descontentamentos, supera-se a burocracia e as práticas ocultas de atos a serem executadas de surpresa. É priorizar a legalidade dos atos, das formas jurídicas e o respeito à lei.

Vários são os fatores que podem contribuir com a adoção do juiz das garantias e a consequente cultura das audiências: as práticas dos atos judiciais, em especial, no que se refere aos atos invasivos, terão maior controle sobre incontáveis violações de direitos [4].

O juiz das garantias, em consonância com a cultura de audiência, será pautada pela objetividade no debate. Metodologia pautada na hipótese levantada pela acusação (v.g. pedido de prisão preventiva), e resistência da defesa à pretensão afirmada [5], desconstruindo a hipótese exposta e/ou defendendo medidas alternativas ao pretendido (exemplo: prisão domiciliar).

Fato é: existe uma limitação compreensiva nos textos, na escrita a compreensão é padronizada. A retórica ou a heurística necessitam da escrita para burlar na simplificação do complexo, afastando os interlocutores, não mais havendo garantia de atenção, ou seja, a retórica na escrita é uma roupagem para tentar legitimar algo decidido. Com a prática do ato de forma oral, basta observar na predominância de institutos processuais, tais como: identidade física do juiz, imediatidade, concentração dos atos, celeridade, economia processual, entre outros.

Avançando, tem-se hoje a compreensão de processo para além das formalidades procedimentais, que são importantes, porém insuficientes. Jurisdição é direito fundamental, processo é instrumento de garantia de direitos fundamentais/individuais e controle de poder. Defender o sistema acusatório, o juiz das garantias e a cultura das audiências deve partir da compreensão de que a função do Judiciário é garantir, e não restringir, direitos.


[1] BIZZOTTO, Alexandre. RODRIGUES, Andrei de Brito. O Juiz de garantias e o perigo de sua transfiguração em face dos anseios acusatórios: impressões à praxe judicial do Uruguai com olhos para o Brasil. In. : pp. 137.

[2] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Observações sobre os sistemas processuais penais. Organizadores: marco Aurélio Nunes da Silveira e Leonardo Costa de Paula. Vol. 1. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p.139.

[3] MIRANDA COUTINHO, 2018, p. 260.

[4] RIEGO, Cristian. La Oralidade En La Discusión Sobre La Prisión Preventiva. IN: Estudios Sobre El Nuevo Proceso Penal — Implementación y Puesta En Prática. Associación de Magistrados Del Uruguay. Montevideo: FCU, 2017, p. 107.

[5] GUTTIEREZ PUPPO, Maria Cecília. El Principio de Defensa Tecnica. In: Curso sobre El Nuevo Código del Proceso Penal. Vol. 1. Coordenação Alejandro Abal Oliú. Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria, p. 141.

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  • Brave

    é advogado, pós-doutorando na UFRJ/FND, professor de Processo Penal, conselheiro estadual da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ e presidente da Abracrim-RJ.

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