Opinião

Sobre o julgamento de pessoas naturais pelos Tribunais de Contas

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6 de novembro de 2021, 6h33

Tribunais de Contas julgam contas, avaliando a correta aplicação do dinheiro público quanto a legalidade, economicidade e legitimidade, por meio da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Pública. São órgãos de controle externo da função executiva. Tribunais judiciários julgam conflitos de interesse entre particulares, empresas e instituições, julgam réus acusados de terem cometido crime ou ato ímprobo, além de promoverem a revisão das decisões de governos e órgãos executivos quando lesam direitos dos administrados.

Os Tribunais de Contas desempenham papel fundamental na defesa e avanço do Estado democrático de Direito no Brasil, exatamente pela ampla gama de atos que podem fiscalizar, pela efetividade das medidas que adotam e pelo caráter técnico de sua atuação. A expansão de sua influência nas últimas duas décadas foi notável e, do mesmo modo, o aumento da sofisticação e especialização de suas fiscalizações. O Tribunal de Contas da União é o exemplo mais notável, contando com equipes especializadas nas mais diversas áreas de atuação da Administração Pública, como saúde, educação, sistema financeiro, previdência, além das unidades especializadas em diferentes mercados de infraestrutura, como portos e ferrovias, petróleo e gás, concessões e rodovias.  

Todos os que administram recursos públicos, na Administração direta ou indireta, incluindo as empresas públicas ou sociedades de economia mista, têm o dever de prestar contas aos Tribunais de Contas. Diante de irregularidades, os Tribunais de Contas podem rejeitar as contas dos administradores públicos, constituindo contra eles a obrigação de restituírem ou indenizarem as perdas verificadas, além de lhes impor sanções, como multa a inabilitação para o desempenho de cargo em
comissão. Podem também, em caso de ilegalidade, assinalar prazo para que ajustem sua gestão ao parâmetro legal. No caso de contratos, tem a prerrogativa de provocar o Poder Legislativo para que suste o ato. Cabe-lhes, ainda, aplicar a sanção de proibição de contratar (inidoneidade) a empresas e, ainda, representar a outros órgãos para que adotem providências de sua competência.

Recentemente, o Tribunal de Contas da União tem imputado responsabilidade pela restituição de valores recebidos do erário não apenas a empresas privadas contratantes com a Administração Pública, mas também a gestores e empregados dessas empresas, ao entendimento de que essas pessoas, com suas condutas pessoais, teriam concorrido para o prejuízo ao erário, notadamente em casos que se relacionam ao contexto da operação "lava jato". Isso ocorre não porque esses valores teriam sido desviados para esses empregados e diretores, e muito embora os pagamentos tidos como indevidos tenham sido feitos à empresa que celebrou o contrato.

Este breve artigo alerta para o risco de os Tribunais de Contas atraírem para si o julgamento de pessoas naturais sob uma perspectiva característica do processo jurisdicional, desvirtuando-se de sua competência e vocação constitucional, em prejuízo da eficiência do controle externo e das garantias fundamentais dessas pessoas. 

A fiscalização pelos Tribunais de Contas de atos e contratos que envolvem a Administração Pública e particulares já mostra facetas por vezes polêmicas de sua função. A Constituição diz que os Tribunais de Contas podem julgar as contas de todos aqueles que deram causa a perda ou prejuízo ao erário público. Os particulares que firmam contrato com o Estado não administram dinheiros públicos, mas recebem pagamentos do Estado por força de um contrato sujeito à fiscalização de contas. São, portanto, beneficiários diretos dos atos fiscalizados. Se verificada ilegalidade, podem ver contra si constituída a obrigação de restituir o que foi indevidamente recebido do Estado. Claro que essa afirmação traz uma simplificação imensa, pois pode caber em cada caso concreto discussão complexa sobre o que é ou não ilegal e qual seria a medida ou extensão da responsabilidade daquele que contratou com a Administração.

Pode ser, ainda, que o particular não tenha concorrido para a falha, tenha confiado no que foi ajustado com a Administração e cumprido satisfatoriamente sua obrigação. Em outros casos, a contratação pode nem mesmo ser irregular, por haver atendido a todos os parâmetros legais e regulamentares, porém ser considerada antieconômica, ou seja, com preços desvantajosos para a Administração Pública. Não raras vezes, esse tipo de discussão, de ordem técnica, sobretudo em contratos de engenharia, coloca em rota de colisão os técnicos dos Tribunais de Cotas e os técnicos dos entes fiscalizados ou das empresas, em complexos exercícios de orçamentação de custos. É questão por vezes difícil e aberta ao debate saber em que medida e extensão devem os fiscalizados serem responsabilizados nos casos em que não praticaram ato ilegal, mas divergente do entendimento técnico do Tribunal de Contas naquele caso concreto.

Contudo, nos casos de empregados e diretores que trabalham ou trabalharam na empresa privada que firmou o contrato fiscalizado, a definição da responsabilidade e culpabilidade passaria pela apuração detalhada de sua participação nos fatos e também dos aspectos volitivos da conduta: se realmente participou de ajustes ilícitos naquele caso, se determinou ou realizou a entrega de dinheiro ou transferências de recursos financeiros a agentes públicos, se elaborou proposta ficta em dada licitação etc. Como se vê, são fatos difíceis de ser apurados, que dependem de bom aparato investigativo, para muito além de análise técnica, jurídica e documental.

Essa nova dimensão de auditoria é que se entende fora da competência constitucional e infraconstitucional e da vocação dos Tribunais de Contas, por não se amoldar à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Pública a que elude o artigo 70 da Constituição, e poder mesmo ser prejudicial à higidez do desempenho de sua função.

Ao dizer, no artigo 71, que os Tribunais de Contas poderiam responsabilizar quem desse causa a perdas e desvios, por certo a Constituição não se refere a todo aquele que pratica um ilícito contra o Estado, se apropria de um bem material ou oferece vantagem ilícita  inclusive porque, ao limite, é possível extrair consequências econômicas de todo e qualquer ato que se relacione à Administração. A investigação de muitas dessas condutas caberá à Polícia Judiciária e ao Ministério Público, que tem estrutura e contam com os processos próprios para isso.

Cabe ao Tribunal de Contas apurar que dado contrato não atende à legalidade, inclusive por ter havido fraude à licitação, ou que determinada despesa foi irregular e que causou dano ao erário e mesmo definir a responsabilidade daqueles envolvidos e beneficiados pelo ato fiscalizado. Isso pode envolver, por exemplo, o gestor público ou a empresa contratada, chamada a integrar o processo de contas. Entretanto, não lhe cabe, por exemplo, dizer que o contador da empresa privada agiu com negligência, concorrendo para o resultado, ou má-fé, a fim de atribuir-lhe responsabilidade pessoal. Isso já não seria um julgamento de contas.

É preciso lembrar também do modo pelo qual o Tribunal de Contas da União, dos 27 Tribunais de Contas dos estados e os seis Tribunais de Contas de municípios são estruturados por suas leis orgânicas. As auditorias contam com análise dos técnicos do próprio tribunal, que assessoram os ministros e indicam as possíveis falhas na prestação de contas ou as irregularidades verificadas em dado contrato. Pode ser instaurada a tomada de contas especial, processo próprio para apuração e constituição da obrigação de restituição de valores ao erário. A instauração da tomada de contas leva à citação dos responsáveis, cuja defesa é analisada pelo Tribunal de Contas contando com o assessoramento de suas equipes técnicas. Os ministros ou conselheiros decidem colegiadamente e eventual recurso é julgado pelos mesmos julgadores.

Não há, em regra, perícia por profissional técnico nomeado pelo julgador, externo ao quadro do próprio tribunal e independente de quem formulou a imputação. Não há depoimento pessoal, oitiva de testemunhas. Não há julgamento e revisão de decisões por julgadores independentes da estrutura de quem trouxe a acusação e de quem se defende. É, além disso, um processo essencialmente escrito.

Já se percebe a impossibilidade de que o acusado de ter praticado determinada conduta pessoal, em um contexto fático intrincado, exercite seu direito de defesa perante os Tribunais de Contas nos moldes constitucionais que lhe são assegurados no Poder Judiciário, dada a ausência de estrutura e conformação processual correspondente. 

Na realidade, a conformação do processo no Tribunal de Contas da União já inspira debate, considerando que suas decisões podem constituir obrigações de vulto e gerar consequências sérias aos fiscalizados, como, no caso de gestores públicos, multa e inabilitação para o desempenho de cargo em comissão, ou pena de inidoneidade para as empresas privadas, por exemplo. Disso, resulta, inclusive, a relevância do acesso ao controle judicial das decisões dos Tribunais de Contas.

Contudo, para as pessoas naturais que estão sendo chamadas a responder por uma conduta pessoal, dentro de molduras fáticas complexas, para apuração de sua culpabilidade, a questão se torna ainda mais sensível, pois sua defesa demandaria necessariamente uma típica instrução processual, em que um julgador independente do órgão de acusação assegurasse a ampla defesa e o contraditório, possibilitando a realização de perícia, oitiva de testemunhas e colheita de depoimentos.

A investida contra pessoas naturais levanta, ainda, um outro desafio. Se a função dos Tribunais de Contas fosse apurar, para além da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Pública, a responsabilidade de todos aqueles que, com suas condutas pessoais, produzissem algum dano ao erário, inclusive pessoas naturais particulares, sem vínculo direto com a Administração, isso simplesmente não seria viável.

Para ficar apenas com o exemplo de contratos ilícitos, teria de ser apurada a conduta e a correspondente defesa do acionista que participa da gestão da empresa, do diretor que comandou a combinação espúria, daquele que orientou seus profissionais ao pagamento de propina, do diretor que realizou as reuniões ilícitas ou que levou o dinheiro até o servidor público, do funcionário que realizou possível fraude para esconder a origem ou movimentação do dinheiro, e assim por diante. Não seria lícita ou ética uma escolha casuísta daqueles a quem responsabilizar.

Independentemente de qualquer avaliação jurídica, moral ou política, é impossível que qualquer Tribunal de Contas se enverede por todas essas apurações, cada qual a ensejar um processo próprio, com suas teses de defesa e produções de prova. A estrutura dos tribunais, já bastante desafiada com um volume imenso de conteúdo para ser fiscalizado, não suportaria receber tantos novos casos complexos e intrincados para apuração e julgamento.

Coloca-se, ainda, uma outra questão. Nos casos relacionados à operação "lava jato" em que o Tribunal de Contas da União tem imputado responsabilidade a pessoas naturais, integrantes de empresas que firmaram contratos ilícitos com entidades públicas auditadas, ele tem se voltado exatamente a diretores e empregados que firmaram acordos de colaboração com o Estado brasileiro por meio do Ministério Público.

Se, por razões de isonomia, já seria questionável que os Tribunais de Contas definissem esta ou aquela pessoa para responsabilizarem, causa perplexidade que essa escolha venha recaindo justamente naquelas que firmaram acordo com o Estado  ou seja, reconheceram sua participação no contexto ilícito, ofereceram provas, perderam bens e pagaram multa —, e muitas vezes valendo-se da colaboração do próprio acusado.

Por tudo isso, a investida dos Tribunais de Contas para investigar condutas pessoais de pessoas naturais privadas pode afastá-los de sua já grandiosa, imprescindível e desafiadora competência: julgar a prestação de contas dos gestores de dinheiro público e daqueles que dão causa à perda de dinheiro público por praticarem atos ilegais, ilegítimos e antieconômicos, com base em fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial.

Esse movimento pode ainda gerar graves injustiças, pois os acusados não terão condição de exercer sua defesa, na amplitude e profundidade necessárias, e serem julgados como ocorre no Poder Judiciário. De outro lado, seria contraproducente que assim fizessem os Tribunais de Contas, congestionando-se com inúmeros processos intrincados que retirariam seu foco na jurisdição de contas, ao que se acresce o risco de fragilização institucional, a erodir a legitimidade das decisões proferidas nesses casos.

Enquanto mantidos os contornos atuais da competência dos Tribunais de Contas, sua estrutura e processo, essas questões merecem ser mais bem sopesadas, revendo-se a orientação favorável ao julgamento pessoal de pessoas naturais privadas, cujas condutas potencialmente ilícitas devem, como já fazem os Tribunais de Contas, ser reportadas ao Ministério Público ou a outros órgãos competentes e interessados, conforme o caso, para apuração de possível crime, improbidade, infração administrativa e mesmo responsabilização civil.

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