Opinião

Portaria 620/21 e insegurança jurídica: como reduzir risco de passivo trabalhista

Autores

  • Valton Pessoa

    é mestre e doutor em Direito do Trabalho pela PUC-SP e sócio-presidente do escritório Pessoa & Pessoa Advogados.

  • Juliane Facó

    é doutoranda em Direito e Processo do Trabalho pela USP mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e sócia do Pessoa & Pessoa.

5 de novembro de 2021, 14h04

O Ministério do Trabalho e Previdência publicou na segunda-feira (1º/11) a Portaria nº 620/21, que considera discriminatória a despedida de trabalhador em razão da não apresentação do certificado de vacinação. Praticado o ato pelo empregador, o empregado poderá optar entre a reintegração, com ressarcimento integral dos salários, ou o pagamento em dobro da remuneração relativa ao período de afastamento. O ato discriminatório também se configura, segundo o MTP, na fase de seleção e contratação do trabalhador.

A portaria contraria a diretriz até então seguida pela maioria das empresas, com o respaldo do Ministério Público do Trabalho e da jurisprudência, no sentido de exigir a comprovação das duas doses da vacina como condição de permanência no trabalho, sob pena de aplicação de penalidades, inclusive a despedida por justa causa. O entendimento é amparado na prevalência do interesse coletivo sobre o privado, na medida em que "a vacinação é uma política pública de saúde coletiva que transcende os limites individuais e das meras relações particulares, sendo um direito-dever também para os trabalhadores", conforme o Guia Técnico Interno do MPT sobre Vacinação da Covid-19 [1].

Assim, a recusa do empregado em se vacinar, se não pautado em motivos legítimos (excluem-se convicções religiosas, políticas e filosóficas), não pode prejudicar a imunização coletiva e violar a garantia fundamental a um meio ambiente do trabalho saudável e seguro. Desse direito, constitucionalmente assegurado (artigo 7º, XXII, e 225 da CF), decorre o dever de o empregador zelar por um ambiente do trabalho seguro e pelo cumprimento das normas de proteção ao trabalho (artigo 157 da CLT). Essa obrigação do empregador, ao lado do dever do empregado de respeitar tais normas (artigo 158 da CLT), respalda a exigência da comprovação da dupla dose de vacinação para todos os colaboradores em nome da proteção à coletividade e da concretização do interesse público.

Essa construção segue a linha do que foi firmado pelo STF na Tese de Repercussão Geral nº 1.103 sobre a constitucionalidade da obrigatoriedade da imunização por meio da vacina, com possibilidade de restrição ao exercício de certas atividades. Tudo condicionado à existência de evidências científicas que, até o momento, giram em torno da comprovação de que a vacina impede o avanço do coronavírus, mitigando o contágio e o desenvolvimento da doença — sobretudo o seu agravamento e mortes.

Diante de tudo o que foi narrado, constata-se que a portaria do MTP conflita com as normas inseridas na Carta Magna, na legislação, na jurisprudência e nos estudos científicos, além de extrapolar a sua finalidade como ato administrativo interno ao invadir a competência do Poder Legislativo, a quem compete, exclusivamente, a criação de direitos e obrigações que se aplicam às relações de trabalho. Uma portaria, sob o viés constitucional, não pode criar direitos, impor obrigações e penalidades a particulares, bem como contrariar normas fundamentais e erigir ao status de discriminatória uma conduta sem o respaldo legislativo.

Nesse sentido, embora o tema tenha recebido novo holofote em sentido oposto ao que já havia se consolidado, entendemos que a exigência da comprovação da dupla dose da vacinação ainda é medida salutar que deve ser observada pelos empregadores. O objetivo é proteger o meio ambiente de trabalho e a saúde dos seus empregados, que devem ser orientados acerca da necessidade e vantagens da imunização.

Recomenda-se ainda que a obrigatoriedade da vacina e da sua comprovação constem do PCMSO da empresa e seja alvo de comunicados para que seja do conhecimento de todos. Adverte-se que a justa causa só pode ser aplicada como ultima ratio, isto é, após esgotadas outras medidas disciplinares como advertência e suspensão, sem excluir a possibilidade de o empregado trabalhar de forma remota, se compatível com os serviços executados.

Por fim, enquanto a insegurança jurídica causada pela portaria não for sanada definitivamente por uma ação direta de inconstitucionalidade — que deve ser proposta por alguma entidade coletiva constitucionalmente legitimada (artigo 103 da CF) —, poderá o empregador valer-se, em cada caso concreto (de rescisão por justa causa), se assim desejar, da ação declaratória (artigo 19 do CPC) ou analisar a viabilidade do ajuizamento de uma "ação coletiva passiva" [2], a ser proposta contra o sindicato dos trabalhadores de determinada categoria profissional.


[2] Fredie Didier, in curso de direito processual civil, vol. IV.

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