Opinião

A prova analógica da gestão do trabalho orientado a dados

Autor

  • José Eduardo de Resende Chaves Júnior

    é doutor em Direitos Fundamentais professor adjunto IEC-PUCMINAS e da Skema Business School professor convidado do PPGD (mestrado e doutorado) da UFMG desembargador aposentado do TRT-MG diretor do Instituto IDEIA – Direito e Inteligência Artificial e do Instituto de Pesquisa e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho – IPEATRA e membro do Conselho Acadêmico da Escola dos Magistrados da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

5 de novembro de 2021, 7h13

Em artigo financiado pela Oracle, a Technology Review Custom, do MIT, publicou uma visão bastante esclarecedora de como o mercado de dados enxerga o novo data capital [1]. Segundo o levantamento entre os 500 maiores ativos das bolsas norte-americanas (S&P 500), 84% desses ativos que dominam a economia mundial são intangíveis, traduzidos em marcas, patentes, software e, sobretudo, dados.  Isso em 2019. Atualmente, sobretudo com a pandemia, esse percentual deve ter aumentado.

Essa informação impressiona muito, porquanto há cerca de 25 anos esse percentual era de apenas 5%, ou seja, 95% da economia antiga era real, de bens tangíveis, como máquinas, equipamentos, fábricas, edifícios e imóveis. Estamos em plena hegemonia da economia virtual orientada a dados.

O Direito do Trabalho Comparado vem sofrendo uma rápida adaptação legislativa e jurisprudencial para tentar responder às transformações que a economia orientada a dados (data-driven economy) vem impondo às relações de trabalho. Citamos o exemplo mais recente a Lei AB-701 na Califórnia, de setembro deste ano, que entrará em vigor em janeiro de 2022.

A AB-701 institui um novo conceito no Direito do Trabalho californiano, denominado quota, que consiste numa explicitação contratual e jurídica do padrão de trabalho sob o qual um funcionário é designado a executar, numa velocidade de produtividade especificada, ou executar um número quantificado de tarefas, ou, ainda, para manusear ou produzir uma quantidade quantificada de objetos ou materiais, dentro de um período de tempo definido e sob o qual o funcionário pode sofrer uma ação adversa no emprego se não cumprir o referido padrão de desempenho.

A percepção do legislador do Estado norte-americano mais rico dos Estados Unidos, e onde toda a economia orientada a dados nasceu, é a de que o escrutínio, a metrificação e a gestão do trabalho humano passaram, de forma radical, do mundo analógico dos átomos para o mundo digital dos bits.

Do trânsito da disciplina ao controle
Na era do trabalho intensivo e rastreável, com a exponencial redução de sua porosidade
 até sua completa oclusão com os mecanismos de contrato zero-hora, que só remunera o trabalho efetivo —, a disciplina do trabalho cai para segundo plano.

Na sociedade disciplinar [2] (Foucault), da fábrica, do capitalismo industrial, havia ainda a necessidade do disciplinamento individual do trabalhador, até mesmo no que toca a horário ou assiduidade.

Na sociedade do controle [3] (Deleuze), do empreendimento de "em rede", georreferenciado, tele-escrutinado, é necessário apenas o controle coletivo e estatístico dos trabalhadores, por meio de ajustes telemáticos do controle do trabalho à demanda.

Na sociedade do controle, as tecnologias ditas disruptivas, contudo, potencializam essa tendência do poder nebuloso, por meio do escrutínio, da metrificação e da decupagem intensivas do trabalho humano. O poder empregatício não tem mais essência, nem disciplina formal, é puramente operatório [4].

A disciplina opera de forma individualizada sobre o trabalhador. O controle preocupa-se mais com aspectos estatísticos, coletivos da subsunção do trabalho alheio. Reforça-se a liberdade operacional no trabalho, com flexibilização da disciplina, mas intensifica-se o controle coletivo.

Necessidade da prova computacional  rectius: prova orientada a dados
As diferenças entre as sociedades da disciplina e do controle são muitas vezes de grau e numérica, quantitativas, antes que qualitativas. Disciplina e controle induzem sempre, em alguma escala, à qualidade dependência ou subordinação. Mas é a quantidade das tarefas que efetivamente conta na organização produtiva digital. Nesse sentido, a prova analógica tradicional não é a mais adequada para captar essa realidade virtual, fragmentadas em bits, pelos algoritmos de gestão.

A utilidade dessa distinção é sobretudo para aferir quantidades, não propriamente qualidades. É a quantidade de vezes que uma tarefa se repete que determina o grau de dependência ou subordinação de um trabalhador, não sua potencialidade em abstrato de exercê-la ou não. Nesse sentido, o decisivo é quantificar-se o grau de liberdade positiva. A mera liberdade negativa, em potência, é irrelevante numa economia orientada a dados.

Nesse contexto, perguntas (analógicas) a testemunhas, no sentido de se elas tinham ou não obrigação de acionar o aplicativo diariamente ou se tinham horário para começar e terminar o trabalho, nada revelam, porquanto não têm significado algum para uma gestão algoritmizada. Essa gestão computacional não cogita de perspectivas subjetivas, senão aspectos objetivos e quantificáveis, traduzidos em números.

A subjetividade é capturada por outra via, diferente da disciplina, ou seja, não com regras, regulamentos e possibilidades abstratas, senão com a gameficação do comportamento, ou seja, pela indução do comportamento laboral pelo uso metrificado e algoritmizado da psicologia comportamental e da neurociência, o que também só é desvelado com a perícia digital no sistema da plataforma.

Contrato-hiper-realidade de trabalho
De La Cueva desenvolveu, como se sabe, a partir de uma decisão da Suprema Corte do México, a ideia de contrato-realidade para contrapor a prevalência da realidade operacional do trabalho em detrimento, na relação de emprego, de um acordo abstrato de vontades.

Adaptando-se esse conceito ao mundo digital, a prevalência da realidade-virtual sobre a forma tradicional dos atos jurídicos (termo de uso do produto), faz emergir a ideia de um novo contrato-realidade-virtual ou contrato-hiper-realidade [5], no qual o decisivo, para se aferir o estrato fático da relação de trabalho é a realidade que emerge do conjunto de fatores que promove a integração de várias soluções de comunicações, tecnologias de identificação e rastreamento, redes de sensores e atuadores, com e sem fio, protocolos de comunicação avançados e inteligência distribuída para objetos inteligentes [6]

A primazia da realidade-virtual, algoritmizada, portanto, se dá como um parâmetro jurídico para dirimir controvérsias que decorram das novas relações de trabalho, com ênfase na prevalência do sistema, do software, do aplicativo, enfim, do algoritmo sobre disposições abstratas contratuais.

A e-discovery à brasileira e proteção de dados. Segredo industrial
Providencial para um tratamento jurídico-processual mais adequado a essa questão é o instituto denominado e-discovery, que foi introduzido no sistema processual civil norte-americano em 2006, com a alteração dos artigos (rules) 26 e 34 do Código Federal de Processo Civil (Federal Rules of Civil Procedure).   

Trata-se de um dever legal (duty to disclose) de apresentar todos os dados e sistemas que digam respeito a uma disputa judicial. Essa obrigação é dirigida a todas as empresas norte-americanas, ou que lá atuem, bem como às empresas norte-americanas que atuem no exterior.

Quando uma determinada demanda envolver segredo industrial, isso não impede que os dados necessários à instrução do processo sejam examinados pelo perito do juízo ou até da parte adversa. É justamente isso que demonstra o documentário produzido pela Netflix chamado no Brasil de "O Caso Google Earth".

Sem as pompas e circunstâncias da e-discovery norte-americana, o sistema brasileiro tem regulação satisfatória a respeito, pelo menos desde 2006, com a Lei 11.419/2006, sobre o processo eletrônico, especialmente no que toca a seu artigo 13, que consagra o princípio da conexão e a e-discovery à brasileira, ao permitir que o juiz esteja autorizado a "determinar que sejam realizados por meio eletrônico a exibição e o envio de dados e de documentos necessários à instrução do processo".

O atual CPC, muito embora tenha uma regulação pífia e frustrante do processo digital, é taxativo no sentido de assegurar, em seu artigo 440, in fine, o acesso das partes aos documentos eletrônicos.

Hodiernamente, a partir da era da proteção de dados, a LGPD é também pródiga em assegurar aos titulares o acesso não só aos dados, mas sobretudo aos tratamentos a que a eles estejam destinados.

O artigo 20 da LGPD não poderia ser mais explícito ao dispor sobre o dever do controlador de dados de fornecer informações sobre os critérios e dos procedimentos envolvidos nas decisões automatizadas. Vale ressaltar que o seu parágrafo 2° autoriza até mesmo auditoria administrativa, sem nem mesmo autorização judicial, quando se tratar de segredo industrial ou comercial.

Na mesma linha, o inciso VI do artigo 6° da LGPD, ao instituir o princípio da transparência quanto ao tratamento de dados, determina a observância do segredos industriais, o que não significa vedação ou obscuridade em relação ao Judiciário, mas senão de observância ao preceituado pela Lei de Propriedade Industrial, Lei 9.270/96, que dispõe, em seu artigo 206, que na "hipótese de serem reveladas, em juízo, para a defesa dos interesses de qualquer das partes, informações que se caracterizem como confidenciais, sejam segredo de indústria ou de comércio, deverá o juiz determinar que o processo prossiga em segredo de justiça".

Nessa ordem de ideias, cumpre destacar que, além de o segredo industrial ou comercial não ser oponível ao Judiciário, esse suposto segredo envolvido no algoritmo das plataformas de trabalho é, na verdade, um "segredo de polichinelo", pois existem já centenas de plataformas que usam as ferramentas de georreferenciamento. Qualquer startup de garagem pode programar algoritmos similares.

É importante salientar, por outro lado, que o que se pretende desvendar não são tampouco os supostos segredos industriais, mas apenas e tão somente o tratamento dos dados relativos à gestão do trabalho. Impedir esse conhecimento ao Judiciário significa criar uma espécie de blindagem jurídica ao gerenciamento trabalhista das pessoas, o que não encontra precedente em qualquer nação civilizada.

Considerações finais
A transição de uma economia industrial-metalúrgica, material, analógica, da escassez, para uma economia digital e semiúrgica e da abundância de bits ainda não nos permite definir os seus contornos finais, mas já é possível vislumbrar suas tendências e perigos, sobretudo no que toca ao âmbito da anomia regulatória, da concentração da riqueza e da opacidade dos sistemas.

A potência (potentia de Espinosa) virtual de emancipação da sociedade em rede tem um outro lado da moeda: o enredamento. O poder (potestas) da rede mais enreda que liberta. Barabási [7] já havia formulado matematicamente essa incômoda constatação.

O que se percebe é que a tendência da economia de plataforma faz emergir a figura da opacidade da gestão digitalizada do trabalho, inacessível à contraparte que trabalha, elevando ainda mais a assimetria entre os sujeitos contratuais.

Por essas razões, é importante que a jurisprudência evolua de uma posição catatônica e inercial, para que possa efetivamente promover um acesso mais transparente e equilibrado à Justiça, com redução da disparidade de armas processuais. Numa sociedade orientada a dados, que se pretenda democrática e transparente, a gestão do trabalho humano não pode ser comanda por algoritmos opacos.

 


[1] The Rise of Data Capital  in   MIT TECHNOLOGY REVIEW CUSTOM disponível em http://files.technologyreview.com/whitepapers/MIT_Oracle+Report-The_Rise_of_Data_Capital.pdf  acesso 31/10/21.

[2] FOUCAULT, Michel   Suveiller et punir    Paris: Gallimard, 1998 – pp. 253-264.

[3] DELEUZE, Gilles   Conversações    São Paulo: Editora 34, 1992 – pp 219-226.

[4] DELEUZE (1987) pp. 53  tradução livre.

[6] ATZORI,  IERA & MORABITO (2010)

[7] BARABASI, Albert-Laszlo   Linked – how everything is connected to everything else and what it means for business, science and everyday life  New York: Plume, 2003 pp. 55-64

Autores

  • é advogado, doutor em Direitos Fundamentais, professor adjunto do IEC-PUCMINAS e da Skema Business School, professor convidado do PPGD (mestrado e doutorado) da UFMG, diretor do Instituto IDEIA – Direito e Inteligência Artificial e do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho e desembargador aposentado do TRT-MG.

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