Opinião

A inconstitucionalidade e a ilegalidade da Portaria 620 do Ministério do Trabalho

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5 de novembro de 2021, 19h13

Introdução
O Ministério do Trabalho editou a Portaria 620, proibindo os empregadores de demitirem seus funcionários que não receberem a vacina para a Covid-19.

Estaria a referida portaria de acordo com o nosso ordenamento jurídico?

A resposta ao questionamento acima é o que pretende se fazer no presente artigo por meio de uma metodologia exploratória e qualitativa com a análise da legislação e da jurisprudência brasileiras.

1) Vacina forçada x vacinação compulsória
Ao contrário dos que muitos pensam, a pandemia do novo coronavírus não é a primeira epidemia no Brasil, muito pelo contrário, já passamos por muitas outras, como a da varíola, a da febre amarela, a da peste negra, a do zika vírus, a da tuberculose, a da dengue [1] e, mais recentemente, a pandemia da H1N1 [2].

Assim, a discussão sobre uma vacinação forçada não é nova e a referida possibilidade efetivamente já aconteceu no Brasil. Em 31 de outubro de 1904, foi aprovada a Lei 126/04, que previa o seguinte:

"Artigo 1º — A vaccinação e revaccinação contra a variola são obrigatorias em toda a Republica.
Artigo 2º
— Fica o Governo autorizado a regulamental-a sob as seguintes bases:
a) A vaccinação será praticada até o sexto mez de idade, excepto nos casos provados de molestia, em que poderá ser feita mais tarde;
b) A revaccinação terá logar sete annos após a vaccinação e será repetida por septennios;
c) As pessoas que tiverem mais de seis mezes de idade serão vaccinadas, excepto si provarem de modo cabal terem soffrido esta operação com proveito dentro dos ultimos seis annos;
d) Todos os officiaes e soldados das classes armadas da Republica deverão ser vaccinados e revaccinados, ficando os commandantes responsaveis pelo cumprimento desta;
e) O Governo lançara mão, afim de que sejam fielmente cumpridas as disposições desta lei, da medida estabelecida na primeira parte da lettra f do §3º do artigo 1º do decreto nº 1151, de 5 de janeiro de 1904;
f) Todos os serviços que se relacionem com a presente lei serão postos em pratica no Districto Federal e fiscalizados pelo Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, por intermedio da Directoria Geral de Saude Publica.
Artigo 3º
— Revogam-se as disposições em contrario".

Conforme se percebe, a referida lei trouxe mais do que uma obrigatoriedade de vacinação, mas, sim, a previsão de que a vacina efetivamente deveria ocorrer, inclusive existindo a possibilidade de intervenção do Exército para garantir o cumprimento. Assim, a lei em testilha criou no Brasil a possibilidade de alguém ser forçado a se vacinar, o que gerou um descontentamento da população e, em consequência, a conhecida Revolta da Vacina [3].

Entretanto, não podemos confundir vacinação forçada e vacinação obrigatória. Na primeira a pessoa seria levada à força para se vacinar, o que não está em consonância com um Estado democrático de Direito, como é o caso do Brasil [4]; já a segunda hipótese não seria o caso de o Estado Leviatã deitar a pessoa em uma maca e simplesmente aplicar a vacina, podendo efetivamente alguém optar por não ir se vacinar, porém, quem assim o fizer vai ter de assumir o ônus da sua escolha, como, por exemplo, o afastamento do seu trabalho ou o impedimento de adentrar em determinados lugares.

Para melhor esclarecer o que estamos afirmando, trazemos um exemplo: todo mundo tem o direito de fumar. Entretanto, você não pode obrigar que alguém fume passivamente junto com você, sendo por essa razão que a Lei 9294/96 proíbe o uso de cigarro em "recinto coletivo fechado, privado ou público".

Assim, todo mundo pode optar por não se vacinar, mas só quem não se vacina deve assumir as consequências das suas escolhas.

2) A possibilidade da vacinação obrigatória e a Portaria 620
A Portaria 620 é manifestamente inconstitucional porque se trata do Poder Executivo usurpando uma função do Poder Legislativo, que é quem tem atribuição para criar direitos e obrigações por meio de lei.

Além disso, a portaria em questão também é ilegal porque fere a Lei 13.979/2020, que prevê a possibilidade da obrigatoriedade de vacinação como medida para combater a pandemia, nos seguintes termos:

"Artigo 3º — Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:
III  determinação de realização compulsória de:
(…)
d) vacinação e outras medidas profiláticas".

Outrossim, a portaria também vai contra o entendimento do STF, que entendeu pela constitucionalidade da obrigatoriedade da vacinação ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, conforme pode ser visto no trecho abaixo do acórdão:

"II  A obrigatoriedade da vacinação a que se refere a legislação sanitária brasileira não pode contemplar quaisquer medidas invasivas, aflitivas ou coativas, em decorrência direta do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano, afigurando-se flagrantemente inconstitucional toda determinação legal, regulamentar ou administrativa no sentido de implementar a vacinação sem o expresso consentimento informado das pessoas. III  A previsão de vacinação obrigatória, excluída a imposição de vacinação forçada, afigura-se legítima, desde que as medidas às quais se sujeitam os refratários observem os critérios constantes da própria Lei 13.979/2020, especificamente nos incisos I, II, e III do §2º do artigo 3º, a saber, o direito à informação, à assistência familiar, ao tratamento gratuito e, ainda, ao "pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas", bem como os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a não ameaçar a integridade física e moral dos recalcitrantes" [5] (grifos do autor).

A portaria em testilha também vai contra o entendimento do TST, que, inclusive, exige a vacinação para adentrar em suas dependências (ato 279/2021) [6].

Enfim, a dita portaria do Ministério do Trabalho deve ser simplesmente desconsiderada em face da sua ilegalidade e inconstitucionalidade, de modo que a pessoa que opta por não se vacinar tem que assumir sozinho o ônus da sua escolha, devendo efetivamente se isolar, não podendo aumentar o risco de contágio das pessoas que receberam a vacinação ou até mesmo das que ainda não receberam por causa da idade ou por questões de saúde.

É por essa razão que o empregador, público ou privado, pode demitir quem opta por não se vacinar, devendo, em verdade, assim o fazer, pois o artigo 7º, XII, da Constituição, prevê como direito dos trabalhadores a "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde".

Conclusão
Estamos enfrentando uma pandemia de uma dimensão nunca vista pelos atuais membros da nossa sociedade. A principal arma para enfrentar a referida realidade já se sabe qual é: a vacinação de todas e todos. Entretanto, infelizmente, algumas pessoas negam a eficácia da vacina e se recusam a receber a mesma.

Vimos que ninguém pode ser forçado a se vacinar, porém não podemos confundir a vacinação forçada com a vacinação obrigatória. Assim, um superior hierárquico pode e até mesmo deve exigir que os seus subordinados recebam a vacina contra o novo coronavírus na medida em que cada um for contemplado pelo Plano Nacional de Vacinação da Covid-19 [7]

Caso a determinação supra não seja cumprida, o empregador não poderá vacinar o seu subordinado à força, mas deverá tomar as medidas cabíveis, incluindo o afastamento (demissão) do seu funcionário, não podendo uma portaria do Poder Executivo impedir que aconteça dessa forma.

Enfim, a Portaria 620 é formalmente e materialmente inconstitucional, pois se trata de uma usurpação pelo Executivo de uma atribuição do Poder Legislativo e que atenta contra o principal direito fundamental: a vida.

 

Referências bibliográficas
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52042879.

https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/marco/23/plano-nacional-de-vacinacao-covid-19-de-2021.

https://www.infoescola.com/saude/principais-epidemias-ocorridas-no-brasil/.

https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346093809&ext=.pdf.

https://super.abril.com.br/historia/oswaldo-cruz-e-a-variola-a-revolta-da-vacina/.

https://www.tst.jus.br/web/guest/-/tst-passa-a-exigir-comprovante-de-vacina%C3%A7%C3%A3o-para-ingresso-e-circula%C3%A7%C3%A3o%C2%A0

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ªed. São Paulo: Malheiros, 2020.

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