Opinião

O acordo de não persecução penal e a incompetência do juízo

Autor

  • Galtiênio da Cruz Paulino

    é mestre pela Universidade Católica de Brasília doutorando pela Universidade do Porto pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp orientador pedagógico da ESMPU ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

4 de novembro de 2021, 19h14

Em alguns casos, o Ministério Público celebra um acordo de não persecução penal com um investigado e, ao submetê-lo ao Judiciário, o pacto não é homologado, em razão de o juízo homologador se declarar incompetente para o caso. Consequentemente, o feito é encaminhado à esfera jurisdicional competente para posterior envio ao órgão ministerial dotado de atribuição.

Em tal situação, o órgão ministerial que recebe o acordo declinado é obrigado a observar as obrigações pactuadas?

O acordo de não persecução penal, assim como acontece com a colaboração premiada, é um negócio jurídico processual e, desse modo, está submetido à disciplina do negócio jurídico presente no Código Civil, devendo observar os planos da existência, da validade e da eficácia do negócio.

O acordo de não persecução penal existirá quando partes, Ministério Público e investigado se manifestarem no sentido de celebrarem o acordo de maneira livre e consciente [1]. Ao Ministério Público cabe a palavra final sobre a celebração do acordo, em razão de ser o titular da ação penal pública [2]. Eventual negativa do Ministério Público deverá ser devidamente fundamentada.

Superado o primeiro plano do negócio jurídico (existência), deverá ser aferido se o acordo é válido, ou seja, se os agentes são capazes, o objeto é lícito e foi observada a forma prescrita ou não defesa em lei, conforme dispõe o artigo 104 do Código Civil. A capacidade plena do acusado será exercida por intermédio de um advogado. A presença de um advogado é um direito irrenunciável, não sendo admissível, inclusive, o início das tratativas de acordo se o acusado não estiver assistido por um advogado. 

Por fim, o acordo de não persecução penal, para produzir todos os efeitos pretendidos, deverá ser homologado pelo juiz, que fará o controle de legalidade do acordo firmado (plano da eficácia). Nesse momento, o juízo homologador verificará se os direitos e obrigações estabelecidos entre as partes estão de acordo com a lei.

A decretação da incompetência de um juízo para a homologação de um acordo de não persecução penal reflete na atribuição do órgão ministerial responsável pela celebração do pacto. Ou seja, se o Ministério Público estadual encaminha para homologação na Justiça estadual um acordo de não persecução penal e o juízo estadual entende ser o caso da competência da Justiça federal, haverá o reconhecimento também da ausência de atribuição do órgão ministerial estadual para a celebração do pacto.

Ocorre que o acordo é constituído no momento em que o Ministério Público e o acusado o celebram, cabendo ao juízo, ao homologá-lo, dar plena eficácia, após analisar a legalidade do acordo. A decisão de homologação possui, portanto, natureza declaratória, pois o juízo não participa da celebração do pacto, nem pode adentrar no mérito das obrigações acordadas entre as partes, sob pena de se ferir o sistema acusatório, visto que penetraria em um campo de negociação do Ministério Público, vinculado à persecução penal e à decorrente da titularidade da ação penal.

Se o acordo de não persecução penal está constituído desde a celebração entre as partes, a decisão de declínio pode interferir na existência do pacto?

Mesmo a decisão de homologação possuindo natureza declaratória (plano da eficácia), no momento em que é reconhecida a incompetência é decretada a invalidade do acordo, em decorrência de ter sido celebrado por um órgão ministerial não dotado de atribuição (plano da validade). Ou seja, o acordo passou a existir no momento da celebração entre as partes (plano da existência), mas não observou os limites legais, no caso a atribuição para o pacto (plano da validade), tendo sido declarado, no momento da análise de legalidade do juízo, que os limites legais não foram respeitados.

Por conseguinte, com o declínio de competência realizado pelo juízo que o pacto foi submetido à homologação e, por conseguinte, a declaração de ausência de atribuição do órgão ministerial celebrante, o representante do Ministério Público que receber o caso não está obrigado a respeitar os direitos e deveres anteriormente pactuados, em razão de se tratar de um negócio jurídico (acordo) inválido. Não foi superado, portanto, o plano da validade, que, uma vez observado, junto com o plano da existência, gera uma série de direitos e obrigações, que serão plenos após a homologação do acordo (plano da eficácia).  

 


[1] CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais. 2.ª edição. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 324.

[2] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do acordo de não persecução penal. Salvador: JusPodivm, 2021. 2.ª edição, p. 138.

Autores

  • é mestre pela Universidade Católica de Brasília, doutorando pela Universidade do Porto, pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp, orientador pedagógico da ESMPU, ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

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