Olhar Econômico

A Lei do Vale-Pedágio deve evoluir

Autor

  • João Grandino Rodas

    é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP da qual foi diretor mestre em Direito pela Harvard Law School mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

4 de novembro de 2021, 13h37

O vale-pedágio obrigatório sobre o transporte rodoviário de carga foi criado pela Lei Federal 10.209, de 23 de março de 2001, com duplo objetivo: atender à reivindicação de transportadores autônomos (pessoas físicas, proprietárias ou coproprietárias de um único veículo, sem vínculo empregatício) e eliminar "fugas", e, consequentemente, evasão de receitas nas vias pedagiadas, praticadas por caminhoneiros. Com o advento da citada lei, transferiu-se ao embarcador ou equiparado a responsabilidade pelo pagamento antecipado do transportador autônomo, a ser feito em documento próprio, separado do valor do frete [1].

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O descumprimento da lei acarreta sanções administrativas e civis. As primeiras podem materializar-se em multa administrativa de R$ 550 a R$ 10,5 mil (artigo 5º). As civis, por seu turno, obrigariam o embarcador a "indenizar" o transportador em quantia equivalente ao dobro do valor do frete, não do pedágio (artigo 8º).

A boa intenção do legislador foi seguida por reflexos comportamentais inesperados, de caráter negativo:

1) Empresas transportadoras de porte tem se apoiado na Lei do Vale-Pedágio para cobrar vultosas indenizações dos tomadores de seus serviços, mormente ao término de relação contratual, mesmo sem haver dano comprovado; 2) a Justiça tem aplicado penalidade civil desproporcional ao valor da obrigação acessória descumprida e, ademais, superior ao valor da obrigação principal do contrato; e 3) os referidos transportadores têm requerido a aplicação do prazo prescricional decenal, com relação às ações de vale pedágio, com certo sucesso.

Grandes transportadoras, que recebem o pedágio em formas ajustadas contratualmente com seus embarcadores e possuem fluxo de caixa e condições plenas de negociação de seus contratos, servem-se, amiúde, de dificuldades operacionais do sistema de vale-pedágio (complexidade de implementação, falhas em tags ou disponibilização de veículos sem tags) para cobrar a multa civil instituída, forçando equiparação aos pequenos transportadores autônomos. O fato de a mens legis não estar expressa faz com que o aplicador da lei venha concedendo o benefício da legislação a não tutelado pelo bem jurídico, destinando preciosos recursos do sistema produtivo e de logística a ente não amparado pela lei e que está atuando de forma oportunista.

Dois podem ser os pontos de vista sobre o assunto: 1) pugnar pelo aperfeiçoamento do texto legislativo, prevendo, expressamente, a aplicação da lei em comento apenas aos transportadores autônomos; ou 2) simplesmente aplicar os artigos 4º e 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), tomando em conta as consequências da decisão e as particularidades do caso concreto [2].

A retirada, neste ano, de um dos dois dispositivos da Lei do Vale-Pedágio [3] que explicitamente se referiam aos transportadores autônomos foi apontada por alguns como desfavor ao sistema do vale-pedágio, interferindo diretamente no escopo e no alcance subjetivo da lei, deturpando sua finalidade, mantida, inclusive, em alterações legislativas posteriores. Outros não dão tanta importância a essa mutilação, pois a interpretação pragmática e realista do texto legal resolveria apropriadamente a questão.

Merecem estudo mais aprofundado as consequências do julgamento do STF, que considerou improcedente a ADIn 6.031, proposta pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), visando à inconstitucionalidade do artigo 8º. A decisão do STF limitou-se unicamente a proclamar constitucional a penalidade desse artigo, sem pronunciar-se sobre a mens legis. Contudo, após o julgamento da Corte Suprema, aumentou consideravelmente o número de ações cobrando a incidência da multa pelas grandes transportadoras. Chamou a atenção, também, o fato de a corte ter aplicado o prazo prescricional decenal.

O fato de a constitucionalidade do artigo 8º ter sido reconhecida, não resolve a referida desproporcionalidade. Penalidade de tamanha proporção tem o condão de estimular comportamentos oportunistas como: 1) enviar veículos sem tags ou com tags inoperantes; 2) alegar invalidade de ajuste de outras formas de pagamento, livremente feito, sob argumentação do caráter cogente da norma; 3) usar a penalidade como barganha, ao encerrar relação contratual etc.

Um dos aspectos problemáticos da questão foi resolvido pela Lei 14.229, de 21 de outubro deste ano, em vigor desde sua publicação, que fixou em 12 meses o prazo prescricional para cobrança das multas de vale-pedágio. Tratou-se de inegável avanço, dificultando manobras contrárias à boa-fé que vinham sendo engendradas, diminuindo a litigância predatória.

Ainda que dois aspectos da questão em tela estejam assentes — a constitucionalidade (ADIn 6.031) e o prazo de prescrição (Lei 14.229/2021) —, uma série de problemas comportamentais e econômicos continua irredenta.

Dois aspectos fulcrais restam irresolvidos: 1) se o destinatário real da Lei do Pedágio é o transportador autônomo, por ser o único elo hipossuficiente e vulnerável da cadeia a carecer de proteção legislativa; 2) a desproporção econômica entre o dever violado em descumprimento ao preceito primário da norma (não antecipação do pedágio) e a sanção estabelecida em seu mandamento secundário (pagamento do dobro do valor do frete), cujo efeito é tanto mais perverso, quando fruto de litigância predatória.

Outras vertentes, ainda, esperam solução: 1) a intervenção do Estado nas relações entre empresa embarcadora e empresa transportadora viola a livre iniciativa e a liberdade de contratar?; 2) em havendo pagamento de pedágio intempestivo e, portanto, inexistência de prejuízo ao transportador, caberia a punição?; 3) a absoluta falta de proporcionalidade entre a multa e a obrigação inadimplida enquadrar-se-ia em enriquecimento sem causa?; 4) haveria dupla cobrança, pois a lei contempla multa administrativa e indenização?; e 5) tratando-se de indenização, não seria caso de responsabilidade civil culposa, com obrigação de provar a culpa?

Em atenção à série de questões merecedoras de discussão, o Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes), com o apoio de seus programas de pós-graduação — especialização e mestrado profissional —, encarregou o professor Luciano Timm de coordenar mesas científicas e outras atividades, em sequência, sobre a temática. O primeiro encontro de trabalho será realizado, virtualmente, nesta sexta-feira (5/11), das 9h30 às 10h20 (clique aqui). A partir das conclusões desse encontro, que serão publicadas, estabelecer-se-ão os passos ulteriores.

Juntem-se ao Cedes nessa empreitada quem tiver interesse e desejar, bem como, ao menos, discutam o assunto em seus respectivos grupos de pesquisa e o disseminem, para que se alcance conhecimento maior sobre o tema e se possa influir em sua evolução.


[1] Rodas, João Grandino, "Vale-pedágio antecipado é proteção aos caminhoneiros autônomos", Revista Eeletrônica ConJur, 14 de maio de 2020.

[2] Lindb – Artigo 4º — "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito"
Artigo 20 — "Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão".

[3] Artigo 3º, § 2º — "O Vale-Pedágio obrigatório deverá ser disponibilizado ao transportador contratado para o serviço de transporte pelo embarcador ou equiparado, no valor necessário à livre circulação entre a sua origem e o destino, e a comprovação da antecipação a que se refere o caput deste artigo deverá ser consignada no DT-e" (redação dada pela Lei 14.206/2021).

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    é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, da qual foi diretor, mestre em Direito pela Harvard Law School, mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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