Opinião

Sobre reserva legal extrapropriedade e agronegócio sustentável

Autor

  • Heráclito Higor Bezerra Barros Noé

    é advogado do agronegócio especialista em Direito Público e Tributário pela UFRN pós-graduado em Gestão Patrimonial pelo Insper sócio do escritório Amaral & Melo Advogados e consultor da Agri Company em Crédito Rural e Gestão Patrimonial.

4 de novembro de 2021, 10h43

Nas ultimas décadas muita coisa tem sido falada sobre meio ambiente e legislação ambiental, especialmente a relação entre o meio ambiente e o agronegócio, o impacto dessa atividade para natureza e sua adequação para o desenvolvimento sustentável do nosso país.

Dessa forma, cumpre-nos destacar que, de acordo com o Censo Agropecuário 2017 (IBGE), temos no Brasil uma área de 351,3 milhões de hectares dos estabelecimentos, o que corresponde a 41,3% do território nacional. Assim, a área ocupada com lavouras, 63,5 milhões de hectares, representa 7,5% do território; as lavouras somadas às pastagens, 26,2%; e as matas e florestas dentro dos estabelecimentos representam 15,1% do território (fonte: IBGE Censo Agropecuário).

Nesse cenário, é importante esclarecer que o aumento da produção agrícola nacional ocorrido nos últimos 20 anos se deu em decorrência da eficiência produtiva e tecnológica do agronegócio. Tanto é verdade que a projeção de crescimento nos próximos dez anos é de 26,9% da produção, mas com aumento de área de apenas 16,7% (fonte: IBGE Censo Agropecuário). Importante esclarecer ainda que grande parte da área de expansão de lavoura é decorrente da migração de áreas de pastagem para plantio, o que não afeta a área efetivamente utilizada para atividade agropastoril.

Para um melhor entendimento, nenhum outro país produz com tanto volume, eficiência e sustentabilidade como o Brasil. Isso é facilmente demonstrado com números: 282,8 milhões de hectares, ou seja, 33,2% do território é composto por área de preservação de vegetação nativa nas propriedades rurais (fontes: Embrapa e Censo Agropecuário).

Tudo isso graças a uma legislação ambiental moderna e um Código Florestal que poucos países possuem. A título ilustrativo, apenas 3% da área total de florestas na Europa é de mata nativa (fonte: EEA), demonstrando o motivo pelo qual nas últimas décadas houve uma preocupação desse continente com reflorestamento.

Um dos principais instrumentos de preservação ambiental no Brasil com relação direta com o agronegócio é a instituição no Código Florestal das áreas de reserva legal.

O que é a reserva legal?
Segundo nosso Código Florestal (Lei 12.651/12), a reserva legal pode ser resumida como uma área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural (artigo 3º, III), ou seja, uma área a ser definida dentro da propriedade rural onde seu responsável terá o dever de conservar ou restaurar a vegetação nativa, de acordo com os percentuais mínimos estabelecidos por região e tipo de bioma.

A legislação e a jurisprudência nacional destacam que o dever de instituição e preservação das áreas de reserva legal tem natureza jurídica de direito real, ou seja, obrigação propter rem, que significa um direito por causa da coisa, inerente à coisa, no caso ao imóvel rural, independentemente de quem seja seu proprietário ou possuidor.

Isso significa que mesmo havendo a venda da propriedade rural, transmite-se com ela o dever de instituir e conservar a RL, bem como o dever de recuperar áreas degradadas, ainda que o novo proprietário não tenha sido o responsável pelo dano ambiental, pois a obrigação, por ser de natureza real, transfere-se com a coisa, passando ao novo proprietário ou possuidor do imóvel rural.

Qual o seu objetivo?
A instituição da reserva legal tem como objetivo a sustentabilidade do uso dos recursos naturais, auxiliando na conservação e reabilitação dos processo ecológicos, na conservação da biodiversidade, na proteção da fauna e flora nativas de cada região, de modo a permitir a exploração econômica do imóvel rural juntamente com a preservação da vegetação nativa em uma área considerável do mesmo.

Como ocorre a instituição da reserva legal?
O proprietário ou possuidor de imóvel rural deve escolher uma determinada área, com elaboração de memorial descritivo, obedecendo os percentuais mínimos exigidos pelo Código Florestal para cada região do país. Em seguida, deve obrigatoriamente proceder ao registro da reserva legal no Cadastro Ambiental Rural (CAR).

Aqui temos um ponto a ser destacado, qual seja, a alteração legislativa que passou a dispensar a averbação do reserva legal na matricula do imóvel. Atualmente a RL deve ser registrada administrativamente no CAR, tornando o procedimento mais célere e menos oneroso, permitindo ainda que através desse sistema eletrônico os órgãos do Sisnama tenham um maior controle sobre essas áreas.

Atualmente temos como percentuais mínimos de área de reserva legal 80% nas florestas e 35% do bioma cerrado localizados na Amazônia Legal e 20% em campos gerais e demais regiões do país.

Importante destacar que, diferentemente da legislação anterior, é possível incluir a área de preservação permanente (APP) dentro da reserva legal para toda e qualquer posse ou propriedade rural.

Com isso é possível perceber que no Brasil os produtores rurais possuem obrigação legal de preservar entre 20% e 80% do seu imóvel rural com vegetação nativa, o que coloca o Brasil entre os países com mais de 32% de vegetação nativa nas propriedades rurais, demonstrando que o agronegócio brasileiro consegue ser eficiente e sustentável, tendo seu crescimento relacionado com tecnologia e eficiência produtiva, e não com degradação ambiental.

Visando a melhorar ainda mais o cenário de sustentabilidade e, ao mesmo tempo, permitir a pujança do agronegócio nacional, houve o estabelecimento na legislação pátria da reserva legal extra propriedade.

O que significa a RL extrapropriedade, ou seja, compensar a reserva legal?
De acordo com o diploma florestal, é possível o proprietário ou possuidor de imóvel rural regularizar a situação do seu imóvel com algumas alternativas, entre elas compensar a reserva legal (artigo 12, III).

Essa compensação "(…) deverá ser precedida pela inscrição da propriedade no CAR e poderá ser feita mediante, segundo previsão do §5º do artigo 66: I – aquisição de Cota de Reserva Ambiental – CRA; II – arrendamento de área sob regime de servidão ambiental ou reserva legal; III – doação ao poder público de área; IV – cadastramento de outra área equivalente e excedente à reserva legal, em imóvel de mesma titularidade ou adquirida em imóvel de terceiro, com vegetação nativa estabelecida, em regeneração ou recomposição, desde que localizada no mesmo bioma" [1].

Dessa forma, desde que atendidos os requisitos do §6º do artigo 66 do Código Florestal, entre eles estar localizado no mesmo bioma da área a ser compensada, o proprietário ou possuidor de imóvel rural pode continuar a exploração econômica de seu imóvel e utilizar de uma dessas modalidades para reequilibrar os percentuais da sua área produtiva, se adequando à legislação ambiental e produzindo de forma sustentável.

É de ser notar que a compensação da reserva legal possui duplo efeito: em primeiro lugar é uma forma de adequação ambiental para quem explora área rural com percentual acima do permitido, e em segundo lugar estimula que outros proprietários de imóveis rurais instituam voluntariamente área de reserva legal acima do mínimo exigido na legislação.

Esse segundo aspecto ocorre porque a área de vegetação nativa excedente ao mínimo legal é tida como cota de reserva ambiental (CRA). Essa CRA, após o devido registro no órgão competente do Sisnama, será emitida em favor do proprietário do imóvel incluído no CAR e poderá ser transferida onerosa ou gratuitamente justamente servindo para compensar reserva legal de imóvel situado no mesmo bioma.

Para isso a CRA deve ser averbada na matrícula do imóvel cuja área está vinculada e ainda na matrícula do imóvel beneficiado com a referida compensação.

A outro modalidade mais comum de compensação é a aquisição de outra área equivalente e excedente de RL, em imóvel de mesma propriedade ou adquirida de imóvel de terceiro, desde que localizado no mesmo bioma, sendo nessa área estabelecida RL em área necessária à regularização dos percentuais mínimos exigidos, e passando o adquirente a ter o dever de conservação e restauração de mata nativa na respectiva área.

Quem ganha com isso: o meio ambiente ou os produtores rurais?
Se por um lado os produtores rurais que utilizavam área sem observância dos percentuais mínimos legais podem regularizar sua situação e compensar a reserva legal com aquisição de CRA, ou mesmo de outra área de RL em imóvel localizado no mesmo bioma, o meio ambiente sai fortalecido, mediante o cadastramento das áreas de RL excedentes e que agora deverão ser mantidas conservadas sob pena de responsabilização ambiental nas esferas administrativa, cível e criminal, podendo culminar inclusive com a interrupção da atividade produtiva.

Com todo esse arcabouço legal existente e a pluralidade de instrumentos de compensação de RL o Brasil demonstra que é possível continuar sendo uma potência mundial na produção de alimentos e, ao mesmo tempo, preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.


[1] SARLET, Ingo Wolfgang, FENSTERSEIFER, Tiago, Curso de Direito Ambiental – 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, pág. 839

Autores

  • é advogado do Agronegócio, especialista em Direito Público e Tributário pela UFRN, pós-graduado em Gestão Patrimonial pelo INSPER, sócio do escritório Amaral & Melo Advogados, consultor da Agri Company em Crédito Rural e Gestão Patrimonial.

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