Interesse Público

Deferência judicial, escolhas administrativas e a ADI 5.779

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

4 de novembro de 2021, 8h00

O tema da deferência judicial para com as escolhas administrativas vem se insinuando na jurisprudência do STF nos últimos anos. A par de reiteradas alusões a esta aproximação empreendidas pelo ministro Luiz Fux [1], tem-se ainda o precedente da ADI 4.874 [2], em que, não obstante a tese em si tenha sido debatida em profundidade, a corte restou dividida no exame do mérito. A linha de fronteira entre a deferência para com a escolha administrativa, materializadora (em tese) do exercício em concreto de uma especial capacidade institucional; e a preservação de garantias como aquela do acesso à justiça, e ainda a preservação do espaço de deliberação dos demais braços especializados do poder segue sendo de difícil traçado.

Spacca
Nos dias 13 e 14 deste mês de outubro, uma vez mais o STF se dedicou ao tema, analisando a ADI 5.779, que tinha por objeto a Lei 13.454/2017, que "autoriza a produção, a comercialização e o consumo, sob prescrição médica, dos anorexígenos sibutramina, anfepramona, femproporex e mazindol". A referida lei autorizadora veio à luz como lance último de verdadeira 'queda de braço' estabelecida entre o Legislativo e a Anvisa em torno da viabilidade do uso das referidas substâncias. Por meio da RDC 52/2011, a agência proibira a comercialização dos referidos produtos, ensejando a edição do Decreto Legislativo 273/2014, que suspendia seus efeitos. A incerteza em relação aos limites da comercialização, e do que ainda seria de se exigir como condição a essa mesma atividade determinou a edição da Lei 13.454/2017.

A imputação de inconstitucionalidade envolvia vários argumentos, destacando-se, para o que interessa às presentes considerações, a suposta necessidade de reservar-se ao Congresso Nacional a possibilidade ampla de formulação de seu próprio juízo deliberativo, inclusive no âmbito das competências assinaladas por lei à Anvisa. O eixo argumentativo principal envolvia a ideia de que o Legislativo, que criara a agência, não abdicaria, com essa providência, da possibilidade de empreender pontualmente à sua própria deliberação, ainda que pontual, em relação a produtos e substâncias específicas.

Observe-se que essa linha de compreensão afasta a deferência judicial como aproximação possível, ao menos quando se tenha como objeto de controle, a deliberação legislativa. A tese da reserva do espaço de deliberação do Legislativo opera a partir de uma lógica de predominância do critério do sujeito — no impasse entre criador e criatura, prevaleceria sempre o primeiro.

Este debate se viu iluminado pelo precedente conhecido firmado na ADI 5501, onde se debatera a viabilidade constitucional da edição de lei de efeitos concretos, em que o Poder Legislativo autoriza diretamente o uso de substâncias ou medicamentos — na Lei 13.269/2016 que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética, conhecida como "pílula do câncer" [3]. É verdade que o precedente haveria de ser considerado, quando se cogita do necessário dever de congruência entre as decisões judiciais, em especial quando elas são contemporâneas, como é a hipótese. Ocorre que o entorno fático de ambos não é o mesmo — enquanto na fosfoetanolamina sintética se tinha produto novo, não registrado e não testado; o mesmo não se diz em relação aos anorexígenos em debate — todos eles já objeto de anterior registro e longeva utilização. A questão que se punha na ADI 5779 envolvia justamente uma reformulação do juízo de benefícios e segurança dos produtos — avaliação que se insere integralmente no âmbito das competências da Anvisa.

A ADI 5779 não conta ainda com acórdão publicado — o relator,  Nunes Marques, restou vencido na sua convicção pela higidez da norma. A tese vencedora, que reconhecia o vício de raiz, foi inaugurada pela dissidência veiculada pelo ministro Edson Fachin, em substancioso voto que construiu a maioria de 8 votos, vencidos o relator, Nunes Marques, e ainda os ministros Alexandre de Moraes e Roberto Barroso. Os vídeos da sessão todavia permitem verificar a ainda associação da categoria da deferência com um critério do sujeito — e não da processualidade da decisão.

Assim é que o ministro Edson Fachin, que liderou a divergência, extraía da própria Constituição (artigo 200) a especial qualificação da Anvisa, como braço do sistema SUS, para as ações de vigilância sanitária [4].

Relevante evidencia a hesitação está em que, ainda que se tenha verificado nos votos vencidos o empenho em afirmar tenha a decisão legislativa se fundado (também) em manifestações técnicas de estruturas da sociedade civil; o mesmo crivo não se viu em relação ao procedimento deliberativo da Anvisa. Avaliar se a estrutura revestida de capacidade institucional para empreender à análise de risco no uso dos produtos se apresenta como condição ao manejo do argumento da deferência — a decisão da Anvisa haveria de prevalecer, não pura e simplesmente porque é da Anvisa, mas porque foi construída a partir de procedimento que evidencia a aplicação em concreto da capacidade institucional que a agência detém em abstrato [5].

Segundo ponto que revela uma matriz ainda mal construída para identificação das hipóteses em que a deferência é de ser aplicada, diz respeito à baixa investigação da dimensão de congruência com as decisões


[1] A título de ilustração, consulte-se SL 1425 AgR, relator(a): LUIZ FUX (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 24/05/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-105 DIVULG 01-06-2021 PUBLIC 02-06-2021 e MS 36062 AgR, Relator(a): LUIZ FUX, 1ª Turma, julgado em 06/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-102 DIVULG 15-05-2019 PUBLIC 16-05-2019.

[2] ADI 4874, relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 01/02/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 31-01-2019 PUBLIC 01-02-2019)

[3] ADI 5501, relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-283 DIVULG 30-11-2020 PUBLIC 01-12-2020)

[4] Lei 8080/90, artigo 16,III, "d" – dentre outros.

[5] DO VALLE, Vanice Regina Lírio. DEFERÊNCIA JUDICIAL PARA COM AS ESCOLHAS ADMINISTRATIVAS: RESGATANDO A OBJETIVIDADE COMO ATRIBUTO DO CONTROLE DO PODER. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 25, n. 1, p. 110-132, 2020.

Autores

  • é professora da Universidade Estácio de Sá, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, professora do programa de pós-graduação em Direito da Unesa-RJ, procuradora do Município do Rio de Janeiro e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!