Constitucionalização do ato de indiciamento pelo delegado de Polícia
3 de novembro de 2021, 6h25
O presente trabalho tem por escopo apresentar uma visão constitucional do ato de indiciamento previsto na Lei Federal 12.830/13 no art. 2º.§ 6º. "O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias". [1]
Fato é que, até a entrada da citada lei em vigor, sequer havia menção no texto legal ao ato de indiciamento, o Código de Processo Penal menciona apenas a figura do indiciado. Da mesma forma, não há conceito legal de inquérito policial, sendo o mesmo conceituado pela doutrina, que, de forma majoritária, o conceitua levando em conta suas características e suas finalidades, como um procedimento administrativo que visa apurar indícios de autoria e materialidade para a propositura da ação penal.
Vários autores já vem escrevendo que o conceito de inquérito policial e a visão da doutrina majoritária que se tem sobre o inquérito já não responde e não se coaduna com o Estado democrático de Direito, sobretudo quando reforçam de maneira quase absoluta seu caráter inquisitivo que atrofia direitos fundamentais do conduzido/investigado/indiciado, bem como já são muitas as críticas doutrinárias sobre a unidirecionalidade do inquérito no sentido de que seu objetivo não seria elucidar os fatos independentemente de serem pró-acusação ou pró-defesa e sim um objetivo mais míope de apenas servir de peça de informação para propositura da ação penal. [2]
Dentro dessas críticas nós temos proposto que normas atinentes à investigação preliminar ainda não passaram por uma devida constitucionalização releitura [3], no sentido de que grande parte da doutrina mantém uma mentalidade pré-constituição, repetindo ao longo dos anos o mesmo conceito nos era fornecido por autores clássicos, que possuem muita importância para o Direito Policial, mas que devem ser relidos a luz da Constituição, uma vez que toda construção teórica foi feita antes da mesma.
Em grande parte, o que se tem feito é uma interpretação constitucional de direitos fundamentais conforme normas processuais penais e não o contrário. E alguns direitos fundamentais de certa forma permanecem "encarcerados" durante a fase preliminar, e só posteriormente na fase judicial é que são contemplados na forma constitucional.
O ato de indiciamento previsto na Lei nº. 12.830/13 menciona que análise técnica devidamente fundamentada, deverá indicar autoria, materialidade e demais circunstâncias. Qual seria o motivo dessa imposição legal? Seria apenas facilitar o trabalho do Ministério Público/ofendido na propositura da ação penal? Nos parece óbvio que não.
Tema ainda cinzento na doutrina e sem previsão legal é o momento do ato de indiciamento. Na prática, autoridade policiais o fazem, em grande maioria, no relatório final que será enviado para o Ministério Público. Pensamos que esse é um tema que precisa ser melhor debatido, pois de certa forma tal prática permanece cativa à visão unidirecional do inquérito.
Trazemos a proposta para o debate que um dos motivos da lei exigir a explicitação técnica e a devida fundamentação/motivação do ato pela autoridade policial, que deve perpassar pela autoria, materialidade e circunstâncias, também está intrinsecamente ligado ao direito de defesa do indiciado na investigação criminal e a partir desse momento, alguns direitos fundamentais se expandem na investigação, como por exemplo o próprio direito de defesa e a contraditar elementos já produzidos na investigação.
O artigo 14 do Código de Processo Penal interpretado constitucionalmente, bem como conjugado com o avanço contínuo da legislação e da jurisprudência sobre as prerrogativas do advogado na investigação preliminar, incluindo direito de acesso e uma postura cada vez mais ativa e não apenas de mero expectador do sistema inquisitivo, indicam a necessidade de interpretar as funções do ato de indiciamento.
Quando um investigado é indiciado, é como se o Delegado de Polícia, dentre todas as possíveis pessoas citadas na investigação, passasse uma caneta marca texto reluzente especificamente em uma pessoa indicando que o Estado investigador direcionou seu poder/dever em desfavor dele na elucidação do fato, lembramos que não apenas circunstâncias de autoria devem ser motivadas, mas também de materialidade, indícios suficientes da prática criminosa e suas circunstâncias.
Uma investigação criminal pode flexibilizar direitos fundamentais, inclusive podendo gerar restrição de liberdade, do patrimônio e ainda pode gerar efeitos deletérios sobre outros direitos fundamentais, por exemplo, honra e imagem dentro tantos outros.
Uma das propostas que apresentamos no livro "Constitucionalização da Investigação Policial" é de que o ato de indiciamento interpretado constitucionalmente deve ser visto como um marco para expansão do direito de defesa e do contraditório possível, sendo evidente que após um indiciamento o indiciado preenche o requisito de "acusado em geral" previsto expressamente no artigo 5º, inciso LV, [4] da CRFB/88. Logo, tal visão pode nos levar à reflexão sobre o momento do indiciamento na investigação policial.
Não é por acaso que a lei exige do delegado motivar sua decisão de forma técnica sobre autoria, materialidade e circunstâncias. Tal exigência se coaduna com o dever de motivação da administração pública nos atos administrativos, notadamente em decisões que restrinjam ou tenham potencial de flexibilizar direitos fundamentais. Dentro da investigação policial, tal decisão sinaliza para defesa do investigado pontos que podem ser atacados/contraditados, de maneira endógena, dentro da própria investigação, exógena, fora da investigação com manuseio de ações constitucionais perante o Poder Judiciário.
Uma das possibilidades é o indiciamento ser realizado no momento imediatamente anterior ao relatório final e não no próprio relatório final. Em seguida, ocorreria a intimação do indiciado que poderia ofertar razões por peça escrita, propor oitivas de testemunhas e contraditar os argumentos da autoridade policial expostos de forma técnica no ato de indiciamento.
Tal proposta não burocratiza o inquérito e não nos parece acertada a crítica de que seria despropositada pelo fato de ensejar a prática de atos que já devem ser praticados na fase posterior judicial, pelo contrário, pode ser que os argumentos da defesa do investigado sobre todo arsenal de "provas" já produzido contra ele, possam fazer o Delegado de Polícia rever a marcha investigativa, levando inclusive ao ato de desindiciamento, evitando a injustiça de um processo penal temerário e todas a dores inerentes ao próprio processo que uma mera acusação criminal formalizada gera [5], além da economicidade em não se movimentar a máquina judicial de forma desnecessária.
Mesmo que o Delegado de Polícia, agora diante da peça defensiva, mantenha o indiciamento e relate o feito concluindo pela autoria, há o saudável efeito de seguirem anexadas no inquérito policial as razões da defesa, o que poderá influenciar o Ministério Público na decisão de ofertar a denúncia/arquivar ou determinar o prosseguimento das investigações indicando diligências faltantes na forma do artigo 16 do CPP, bem como servirá para uma melhor análise por parte do Magistrado no momento de decidir sobre receber ou não a peça inicial acusatória, no deferimento ou não de outras medidas cautelares e, também, em casos de possível absolvição sumária.
O indiciamento, sob uma perspectiva moderna e garantista tem, portanto, utilidade prática para todos os operadores do direito e é de suma importância que seja interpretado constitucionalmente, devidamente compatibilizado com o Estado democrático de Direito.
É necessário avançar!
REFERÊNCIAS
HOFFMANN, Henrique. O Inquérito Policial tem sido Conceituado de Forma Equivocada. Brasil, 2007. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia- policia-inquerito-policial-sido-conceituado-forma-equivocada.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12830.htm.
MACHADO, Leonardo Marcondes. Introdução crítica à investigação preliminar. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 91.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: Teoria, História e Métodos de Trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
XAVIER, Luiz Marcelo da Fontoura; Constitucionalização da investigação policial. Rio de Janeiro. Freitas Bastos, 2020.
[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12830.htm. Último acesso: 28/10/2021.
[2] HOFFMANN, Henrique. O Inquérito Policial tem sido Conceituado de Forma Equivocada. Brasil, 2007. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia- policia-inquerito-policial-sido-conceituado-forma-equivocada. Acesso em 28/10/2021.
[3] SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: Teoria, História e Métodos de Trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
[4] Artigo 5º, inciso LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
[5] MACHADO, Leonardo Marcondes. Introdução crítica à investigação preliminar. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 91.
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