Opinião

Quando as pessoas são insignificantes, mas o patrimônio é sagrado

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3 de novembro de 2021, 17h12

Recentemente, e mais uma vez, os holofotes da Justiça Penal foram lançados para o caso em que Rosangela Sibele, 41 anos, mãe de cinco filhos, desempregada e em situação de rua, foi presa pela prática de um furto de dois refrigerantes, um refresco em pó, dois pacotes de macarrão instantâneo, avaliados em R$ 21,69. Surpreendida pelos seguranças do supermercado, Rosangela tentou correr, foi perseguida por policiais militares e, após tropeçar e cair, machucando sua testa, foi presa em flagrante e formalmente autuada.

Para a PM, em seu interrogatório de camburão, Rosangela disse: "Roubei porque estava com fome". Para o delegado, ela disse "Roubei porque estava com fome". E para a juíza, na audiência de custódia, ela disse: "Roubei porque estava com fome". Mas seria a fome — algo tão alheio às autoridades do sistema de Justiça  motivo para impedir alguém de ser preso?

Apesar de a Defensoria Pública de São Paulo ter pedido o relaxamento da prisão com base na clara incidência do "princípio da insignificância" ou do "estado de necessidade" (furto famélico), a prisão em flagrante foi convertida em preventiva. Mais do que isso, a juíza fez questão de ressaltar em sua decisão que "o momento impõe maior rigor na custódia cautelar, pois a população está fragilizada no interior de suas residências, devendo ser protegidas pelos poderes públicos e pelo Poder Judiciário contra aqueles que, ao invés de se recolherem, vão às ruas com a finalidade única de delinquir".

No Tribunal de Justiça de SP, Rosangela não teve sorte diversa. Para os desembargadores, "comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido a sua reprovabilidade, perdem a característica da bagatela e devem se submeter ao direito penal".

Apenas no STJ, após 15 dias e muita repercussão midiática do caso, Rosangela foi solta por força da decisão monocrática do ministro Joel Ilan Paciornik, nos autos do HC 699.572/SP. Ao sair do cárcere, vaticinou: "Meu grande sonho é ser gente. Eu ainda não sei o que é isso, não sei o que é ser mãe, filha e irmã".

Desde as primeiras lições, ainda na faculdade, aprendemos que o Direito Penal deve ser a "derradeira trincheira" no combate aos comportamentos desviados. O Direito Penal, nos disseram os professores, só deve ser aplicado quando estritamente necessário, sendo sua intervenção condicionada ao fracasso das demais esferas de controle (caráter subsidiário). A violência estatal somente se justificaria nos casos de relevante lesão ou perigo de lesão a bem jurídico tutelado (caráter fragmentário). Trata-se do que se convencionou chamar de princípio da intervenção mínima.

É desse princípio da intervenção mínima, mais especificamente da fragmentariedade do Direito Penal, que emerge o princípio da insignificância, impedindo, ao menos em tese, que condutas que não afetem o bem jurídico sejam sancionadas neste ramo do Direito.

Ocorre que, por influência da já falida teoria das janelas quebradas e de neoclássicos que acreditam que o crime decorre de uma escolha estritamente racional, existe uma crença generalizada de que o tratamento leniente das pequenas infrações levaria a um incremento no número e intensidade dos crimes. Apesar da inexistência de comprovação estatística dessa conclusão, há tempos os tribunais superiores vinculam o reconhecimento da bagatela à existência de quatro requisitos: mínima ofensividade da conduta do agente; ausência de periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica causada.

Dada a abertura conceitual dos quatro requisitos, há quem entenda  como a juíza e os desembargadores do caso de Rosangela  que a reincidência impede o reconhecimento da atipicidade material decorrente da insignificância porque haveria periculosidade social na ação e reprovabilidade do comportamento (cf. STJ, AgRg no HC 680716 / SC).

No entanto, apesar de inicialmente reconhecerem a reincidência como uma barreira à insignificância, com o tempo as cortes superiores passaram a admitir que seria, sim, possível tratar um furto de bagatela como tal mesmo diante da reincidência do agente (cf. STJ, HC 205.247 e STF, HC 205.232). Aliás, ainda em 2016, o STF estabeleceu, por seu órgão pleno, as seguintes teses:

"1) A reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto; e
2) Na hipótese de o juiz da causa considerar penal ou socialmente indesejável a aplicação do princípio da insignificância por furto, em situações em que tal enquadramento seja cogitável, eventual sanção privativa de liberdade deverá ser fixada, como regra geral, em regime inicial aberto, paralisando-se a incidência do artigo 33, §2º, c, do CP no caso concreto, com base no princípio da proporcionalidade"
 (HC 123108, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016).

Como não concluir que o sistema penal brasileiro é uma máquina de moer pobre quando à insignificância de pequenos delitos patrimoniais se impõe uma pista de obstáculos kafkanianos e à insignificância dos crimes tributários se concede uma módica margem de R$ 20 mil (cf. STJ, REsp, 1.709.029/MG 28/2/2018 recurso repetitivo), sem que haja necessidade de se perquirir sobre periculosidade social da ação e outros tecnicismos destinados à prender a marginalidade social. Ao que parece o princípio da insignificância só vale para as pessoas "significantes".

Em outro norte, é importante destacar que a existência de um crime não se limita ao reconhecimento da tipicidade penal. Acreditamos que a conduta de Rosangela, além de materialmente atípica, também não satisfaz o conceito analítico de crime no que tange à antijuridicidade e culpabilidade. Vejamos. Mesmo que tivéssemos tipicidade, poderíamos excluir a antijuridicidade, pois o furto famélico se enquadra na excludente do estado de necessidade (CP, artigo 24). Vamos além: se a análise se estendesse até o plano da culpabilidade, poderíamos alegar inclusive uma causa supralegal de inexigibilidade de conduta diversa.

Ainda que rechaçadas todas as hipóteses acima e estivéssemos efetivamente diante da prática de um crime, impõe pontuar que não exisitria qualquer fundamento jurídico consitucional para a decretação da prisão preventiva da autuada. Prender alguém que furtou R$ 21,69 como garantia da ordem pública?!

Rechaçamos a argumentação falaciosa que sobrepõe a manutenção da ordem pública (interesse da coletividade) em detrimento à soltura da autuada como se esta fosse um interesse puramente individual: "(…) Os direitos da liberdade valoram não apenas interesses práticos e particulares, antes, eles avaliam os interesses público-jurídicos, isto é, que eles são interesses processuais" [1].  

Ademais, a expressão ordem pública finda por funcionar como uma licença ampla colocada à disposição dos magistrados para se prender os acusados de forma desenfreada. Essa ideia condiz com a própria gênese do termo: a Alemanha nazista, na década de 30, para abarcar qualquer prisão. Trata-se de um conceito vago e genérico, que permite que os aplicadores do Direito o preencham de forma variada, quando sabemos que o processo penal se sujeita ao princípio da legalidade e taxatividade.

Descartada a segregação cautelar com fundamento na ordem pública, estaria legitimada a prisão preventiva pelo fato de a autuada não ter residência fixa e, portanto, existir risco de não aplicação da lei penal? Faz sentindo que o mesmo Estado que negligencia às pessoas o direito à moradia, possa se valer da sua própria torpeza para também lhes negar o direito à liberdade?

Diante do caso ora analisado, não vislubramos periculum libertatis apto a legitimar uma prisão preventiva e, se por acaso existisse, a situação poderia ser resolvida com a aplicação de uma medida cautelar diversa da prisão.

Os incautos podem acreditar que estamos diante de um caso isolado. Todavia, inúmeros são os casos de furto famélico que reclamam atuação dos nossos tribunais superiores [2], causando prejuízos incalculáveis para a sociedade, o Judiciário e principalmente aos acusados. Tanto é recentemente circulou a notícia da sanha punitiva do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que, insatisfeito em denunciar duas pessoas pelo furto de comida descartada por um supermercado, se deu ao trabalho de recorrer da decisão que os absolveu sumariamente.

Indubitavelmente, a movimentação do aparato punitivo estatal, bem como os gastos com a manuntenção dos acusados no sistema carcerário, custa bem mais que caro aos cofres públicos do que o prejuízo experimentado pelas vítimas do crime patrimonial. Ademais, a tramitação desses processos impede que o Judiciário aja com celeridade em relação aos crimes realmente graves que acontecem em nossa sociedade. Por fim, àquele a quem o Estado já nega saúde, educação, moradia e comida resta ainda o estigma de criminoso. Não é à toa que, após sua soltura, a autuada declarou que seu grande sonho era ser "gente".

Mas por que temos tantos casos de furtos famélicos nos tribunais superiores? Por que há resistência em se reconhecer a insignificância com relação a furtos de valores ínfimos? Pensamos que a resposta ultrapassa o plano dogmático penal para atingir questões criminológicas, sociológicas e políticas, afinal, em um país em que as pessoas precisam furtar para saciar a fome, certamente o verdadeiro problema é camuflado com o indevido uso do Direito Penal: "Quando os problemas sociais são enfrentados através de punições, enfraquece-se a democracia na mesma proporção em que se fortalece a dominação de classes" [3].

É válido ainda ponderar que não aderimos a qualquer formulação teórica que postule a existência de um conceito ontológico de crime. Após anos atuando como defensores públicos, é impossível deixar de reconhecer que o delito é uma adjetivação atribuída pela Justiça Penal a determinados comportamentos e, especialmente, pessoas. Ao tratar da criminologia crítica, Figueiredo Dias lança uma lição que merece ser colacionada no presente artigo: "Em vez de se perguntar por que é que o criminoso comete crimes, passa a indagar-se primacialmente porque que é que determinadas pessoas são tratadas como criminosos, quais as consequências desse tratamento e qual a fonte de sua legitimidade" [4].

Como ensina Loic Wacquant, a doutrina do neoliberalismo propugna por um Estado social mínimo e um Estado penal máximo. O centauro penal. Dócil e deferente às classes sociais mais abastadas e truculento como um cavalo com a marginalidade social. Interessante averiguar como essa ideia reflete nas políticas públicas do Brasil, que acabam por gerar uma forte exclusão social e utilizar o Direito Penal como instrumento de controle social. Nesse contexto, o Estado democrático de Direito cede espaço para um Estado policial, cujo raio de ação dirige-se para as consequências do crime e não para a solução das causas determinantes da criminalidade.

Quando Robert K. Merton teorizou que a gênese criminal se radicava no desajuste entre metas culturais e meios institucionalizados, as metas que ele se referia poderiam ser resumidas no american dream: o sucesso financeiro e uma imagem idealizada de felicidade. No Brasil de 2021, a meta cultural mais básica é "ser gente", e nem para isso os meios institicionalizados têm se mostrado suficientes. Não há racionalidade na fome. Resta a inovação.

 


[1] HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertário. Traduzido por Regina Greve. Belo Horizonte: editora Del Rey, 2007, p.116.

[3] GUIMARÃES, Claudio Alberto Gabriel. Constituição, Ministério Público e Direito Penal: a defesa do estado democrático no âmbito punitivo. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010, p. 131.

[4] DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 43.

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