Opinião

A abertura do mercado dos combustíveis e o gigantismo de um novo player

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3 de novembro de 2021, 18h09

Em mercados altamente regulados, como é o de combustíveis, a palavra final sobre grandes negociações é a do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que tem tomado importantes decisões, seja quando o assunto é cartel ou concentração. E um movimento ocorrido em agosto no mercado de etanol terá, em algum momento, a análise e o crivo do Cade, tamanha sua importância, como se verá adiante. Mas não nos impede, desde já, de alertar dos riscos do ponto de vista jurídico, concorrencial e dentro dos aspectos legais previstos nas recentes medidas provisórias editadas pelo governo federal.

O pano de fundo, tanto das MPs quanto das grandes movimentações no mercado, é o mesmo. Há uma pressão enorme, com interesses diversos e muitas vezes antagonistas, em relação ao preço do combustível. O mais óbvio, claro, é o da opinião pública e do consumidor, pela redução. O mais difuso e complexo, o de acionistas e do mercado de capitais.

É nesse contexto que o governo editou a Medida Provisória 1.063, depois sucedida pela 1.069, que causam uma pequena revolução no mercado de combustível  gostem ou não. E aqui iremos nos ater ao etanol. Na prática, as usinas poderão vender diretamente ao posto, eliminando, assim, o custo de frete e a camada de lucro das distribuidoras. No papel, é algo realmente interessante como forma de reduzir o preço. Mas uma única empresa pode colocar tudo isso em xeque porque, em um só lance, terá condições de controlar 40% de todo o mercado.

No final do mês de agosto, a Vibra Energia, antiga BR Distribuidora, e a Copersucar anunciaram ao mercado a constituição de uma empresa comercializadora de etanol (ECE) com potencial real de minar a concorrência no mercado de combustíveis.

O comunicado traz importantes alertas, pois a celebração de uma joint venture dessa natureza criará a maior ECE do Brasil, alterando as estruturas do mercado de combustíveis com efeitos negativos sobre usinas, distribuidores, revenda de combustíveis (postos de gasolina) e, consequentemente, todos os brasileiros.

A Copersucar, uma gigante global que atua em negócios de açúcar e etanol, é a maior cooperativa do país, reunindo 20 grupos econômicos, donos de 34 usinas de cana-de-açúcar espalhadas por São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Goiás.

Sozinha, a cooperativa produz 40% do etanol comercializado no país, cuja produção será integralmente adquirida pela nova comercializadora, e de onde também virá o biocombustível comprado pela Vibra Energia, maior distribuidora de combustíveis e lubrificantes do Brasil, em volume de vendas.

A ECE proporcionará notável poder econômico a esses agentes, que hoje operam nos diferentes níveis da mesma atividade econômica, cuja integração vertical permitirá o controle absoluto sobre quem compra, onde compra e ao preço de compra o etanol produzido no país.

Por consequência das óbvias barreiras que a exclusividade pretendida gerará, e pelas políticas comerciais discriminatórias que surgirão, há sérios risco de supressão regional da concorrência, dificultando a entrada de outros players através do controle absoluto dos preços ao consumidor.

O momento não poderia ser mais inadequado para a segurança energética nacional e, por consequência, um duro golpe no mercado. Isso porque dá-se logo após a edição da medida provisória, introdutora de um novo arranjo regulatório, que estreitou o mercado cativo dos distribuidores de combustíveis ao prever a possibilidade de venda de etanol diretamente pelos produtores (usinas).

A escalada dos preços e a retirada da desoneração tributária do etanol anidro importado, que equalizava a incidência tributária entre o produto nacional e o importado, pesam sobre aqueles que demandam o biocombustível originado da cana-de-açúcar, acabando por mitigar a capacidade dos demais players de sobreviver em um cenário onde se veem obrigados a adquirir combustíveis somente no mercado interno.

Se implementada da forma pretendida, a joint venture inviabilizará economicamente diversos negócios menores, já que os demais agentes de mercado não encontrarão localmente alternativas competitivas de abastecimento de etanol.

Apesar da comunicação indicar que a ECE será livre para comprar e vender etanol, e não somente com as usinas da cooperativa, a joint venture acaba por criar uma gigante artificial que atuará nas duas pontas do mercado, onde não se deveria permitir o controle de um pelo outro, sendo nítido que a ECE atuará prioritariamente para atender as demandas da sua distribuidora acionista, em detrimento dos demais players.

O cenário tende a ser mais grave na região Centro-Sul, já bastante concentrada pela atuação da Raízen (outra gigante, oriunda da joint venture da Shell com a Cosan), que, além de ser uma das maiores produtoras de etanol do país, é também integrante do seleto grupo (ou oligopólio, como definido pelo próprio Cade) constituído pelas três grandes distribuidoras de combustíveis do Brasil.

Em suma, a produção e a comercialização de etanol na região Centro-Sul passarão a ser um verdadeiro duopólio, violando dois dos princípios constitucionais da ordem econômica no Brasil: a livre concorrência e o direito do consumidor.

A ECE, isoladamente, pode até parecer um bom negócio para um determinado player, e isso é perfeitamente corriqueiro em nosso capitalismo, sempre cabendo ao Cade o crivo e eventuais remédios. Mas, dentro do atual contexto, em nada favorece a política nacional de distribuição de combustíveis, traz malefícios aos elementos formadores de preço, com impacto direto sobre o consumidor final, além de inviabilizar as medidas provisórias. Cria-se uma anomalia no mercado de distribuição de combustíveis, em afronta às políticas públicas que intencionam liberalizar e melhorar o ambiente de negócio no setor.

O fato objetivo é: o preço dos combustíveis está caro e existem inúmeras sugestões para mudar esse cenário. Uns vão gostar, outros nem tanto. Mas nenhuma sugestão, em lugar nenhum do mundo, incluiu concentrar o mercado.

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