Opinião

Efeitos da sentença penal absolutória na ação de improbidade administrativa

Autores

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

  • Gisela Borges

    é advogada criminalista sócia do escritório Gamil Föppel Advogados Associados pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra-IBCCRIM e mestra em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

2 de novembro de 2021, 7h00

Publicada no dia 26 de outubro deste ano, a Lei 14.230/2021 traz relevantes alterações no sistema sancionador da improbidade administrativa, em aparente tentativa de conter os influxos punitivistas incidentes sobre a atuação dos agentes públicos, que chegou a causar o fenômeno cunhado pela doutrina administrativista de "apagão das canetas" [1].

Dentre as alterações promovidas na Lei 8.429/93, destaca-se, no presente texto, o parágrafo 4º do artigo 21, que trata dos efeitos das sentenças penais no julgamento da improbidade administrativa relacionada aos mesmos fatos [2]:
§ 4º. A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no artigo 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

Trata-se de norma que traz relevante mudança em relação aos efeitos das sentenças penais absolutórias no âmbito da ação de improbidade administrativa, alterando a disciplina até então constante dos artigos 65 e 66 do Código de Processo Penal e do artigo 935 do Código Civil.

A partir da interpretação conferida aos supracitados artigos, vigorava o entendimento que somente as sentenças que concluíssem efetivamente pela comprovação da inocorrência do fato ou negativa de autoria, além daqueles que concluíssem pela incidência de causa excludente de ilicitude (com algumas exceções), repercutiriam na esfera cível, incluindo aí a ação de improbidade administrativa, conforme decidia de forma reiterada o Superior Tribunal de Justiça [3]: "III – Este Tribunal Superior tem reiteradamente afirmado a independência entre as instâncias administrativa, civil e penal, salvo se verificada absolvição criminal por inexistência do fato ou negativa de autoria. Dessa forma, a absolvição criminal motivada por ausência de comprovação do elemento anímico da conduta não obsta o prosseguimento da ação civil pública por ato de improbidade administrativa. Precedentes."

Vale dizer, somente as absolvições fundadas nos incisos I, IV e VI [4], do art. 386 [5] do Código de Processo Penal, é que produziam efeitos extrapenais na ação improbidade administrativa. Nos casos de absolvição por falta de provas (incisos II, V e VII, do artigo 386), bem como pela atipicidade penal da conduta (artigo 386, III), não havia produção de efeitos vinculantes na ação de improbidade administrativa, neste último caso, o artigo 67, III, do Código de Processo Penal, trazia previsão expressa no sentido de que o reconhecimento da atipicidade da conduta não impedia a ação civil, devendo-se concluir pela revogação deste diante do novel dispositivo trazido na Lei de Improbidade Administrativa, que não distingue os fundamentos da absolvição.

Malgrado a absolvição penal, por qualquer fundamento, representasse um reforço argumentativo à tese defensiva, é certo que, diante da ausência de previsão legal, repetia-se, acriticamente, o entendimento firmado no Superior de Tribunal de Justiça no sentido de independência entre as esferas de responsabilidade e, não raro, dava-se seguimento à ação de improbidade. Por vezes, a defesa precisava interpor recurso de apelação com o escopo de alterar o fundamento da sentença, a fim de que a absolvição penal projetasse seus efeitos na ação de improbidade administrativa.

Quem atua na área criminal sabe que a parte considerável das absolvições tem por fundamento a ausência de provas. Isso porque, para além de não incumbir ao réu provar que não praticou o crime, a prova de fato negativo é muitas vezes impossível, incluindo-se no conceito da denominada "prova diabólica". Nesse sentido, bem pontua Paulo Queiroz [6] que são raríssimos os casos de absolvição fundada na comprovação da inocorrência do fato ou na comprovação de que o agente não participou do fato, "visto que dificilmente um juiz ou tribunal afirmará, na sentença ou acórdão, de modo peremptório, que o fato não aconteceu ou que, tendo acontecido, o réu não foi o seu autor. A tese mais comum é a absolvição por insuficiência de prova ou com base no in dubio pro reo. Afinal, é muito raro se dispor de prova tão contundente de inocência."

A alteração legislativa ora abordada, portanto, vem em boa hora, a fim de conferir maior racionalidade ao sistema punitivo. Uma vez que evidenciado, no juízo penal, que o Ministério Público não logrou reunir provas que permitam a condenação, a regra do in dubio pro reu impõe a absolvição. Permitir, nesse contexto, que a ação de improbidade prosseguisse, representava evidente disfuncionalidade do sistema, sobretudo diante do fato que a investigação criminal dispõe de maior arsenal probatório que a ação de improbidade administrativa, a exemplo da possibilidade de interceptação telefônica e dos meios de obtenção de prova previstos na Lei 12.850/2013.

Ora, se na instância penal, com todos os meios de obtenção de prova disponíveis, não se reuniu o necessário juízo de certeza para condenação, não há fundamento idôneo que justificasse o prosseguimento da ação de improbidade administrativa, sobretudo porque, tratando-se de expressão do direito sancionador, deve estar abrangida pelas garantias da ação penal, especialmente a distribuição do ônus da prova e o in dubio pro reo.

Há muito Zaffaroni, acertadamente, critica os chamados sistemas penais paralelos. Extrai-se caráter punitivo, leva-se para outra área do direito, sem as garantias do direito penal e o pseudo argumento para legitimar isso é que a tutela, como sói ocorrer na ação civil pública, não é penal, e, assim, não teria garantias. Veja-se o que diz Zaffaroni:
"La legitimidad de um tal sistema sancionatório administrativo más opresivo que él penal, por no estar sometido a los limites de las garantias sustanciales y procesales desarrolladas históricamente em él âmbito penal, ha sido denunciado por juristas de distinto signo (…) como um ataque a las bases mismas del Estado de Derecho, desde hace mucho tiempo" [7].

Há, entretanto, um ponto que merece atenção no mencionado dispositivo, a respeito do qual se espera que a doutrina e a jurisprudência se debrucem, a fim de conferir coerência ao sistema. Trata-se da menção à produção de efeitos da absolvição "confirmada por meio decisão colegiada".

À primeira vista, pela literalidade do dispositivo, somente a absolvição confirmada por decisão colegiada estaria apta a produzir os desejados efeitos vinculantes na ação de improbidade administrativa. Estariam fora, portanto, as ações penais julgadas por juiz singular nas quais o Ministério Público não recorresse da absolvição. Veja-se que, nestes casos de concordância do Ministério Público com a absolvição, não haveria submissão a um órgão colegiado simplesmente porque o próprio órgão de acusação se convenceu dos motivos elencados para absolvição.

Portanto, a interpretação mais coerente que deve ser dada ao dispositivo é no sentido de abarcar toda e qualquer sentença absolutória, sob pena de prejudicar o réu em relação ao qual o próprio Ministério Público pede ou concorda com a absolvição. Haveria, neste caso, flagrante ofensa ao princípio da isonomia, criando-se categorias de sentenças absolutórias: as confirmadas por órgãos colegiados e as proferidas por juiz singular sem recurso do Ministério Público.

Ademais, ainda atendendo ao escopo do dispositivo legal, é preciso interpretá-lo para abarcar os casos que não há propriamente uma sentença absolutória, mas há uma decisão proferida em Habeas Corpus trancando a ação penal, por ausência de justa causa, por exemplo, bem como nos casos que o próprio Ministério Público promove o arquivamento da investigação criminal por entender pela inexistência de indícios mínimos que permitam a propositura da ação, a despeito da previsão contida no artigo 67, I, do CPP. Veja-se que, nestes casos, não haverá propriamente uma sentença absolutória, mas há decisão que, analisando o mérito penal, se identifica, no conteúdo, com uma sentença absolutória, razão pela qual os seus efeitos devem ser iguais, sob pena de malferir o princípio da isonomia.

Portanto, ao dispositivo em análise deve ser conferida uma interpretação consentânea ao seu objetivo de impedir que o agente público, cuja ausência de responsabilidade penal já foi reconhecida, continue a sofrer os efeitos da gravosa ação de improbidade administrativa.


[1] Nesse sentido, Rodrigo Valgas dos Santos (Direito Administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos, 1ª ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2020).

[2] Em que pese o teor do §3º do artigo 21 (§ 3º. As sentenças civis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria) aparentemente restringir os efeitos das sentenças penais, o §4º alarga as hipóteses de vinculação do juízo cível ao juízo penal, sendo este o dispositivo relevante para exame, uma vez que altera a disciplina anteriormente vigente, possuindo caráter mais abrangente em relação ao §3º.

[3] AgInt no REsp 1761220 / PR.

[4] A absolvição pelo reconhecimento da existência de causa excludente de ilicitude produz efeitos na ação cível por força do disposto no art. 65 do Código de Processo Penal, com exceção para as hipóteses previstas no arts. 929, 930, caput e parágrafo único, do Código Civil, conforme consignado por Gustavo Badaró (Processo Penal, 8ª ed., ver., atual. e ampl., São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2020.).

[5] Art. 386 — O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:
I – estar provada a inexistência do fato;
IV – estar provado que o réu não concorreu para a infração penal;
VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (
artigos 20, 21, 22, 23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência.

[7] RODRÍGUEZ, Laura Zuñiga. Relaciones entre derecho penal y derecho administrativo sancionador ? hacia uma "administrativización" del derecho penal o uma "penalización" del derecho administrativo sancionador? In MARTIN, Adán Nieto (coordinador). Homenaje Al Dr. Marino Barbero Santos. In Memorian. Cuenca, 2001, p. 1418.

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    é advogado criminalista, sócio-fundador do escritório Gamil Föppel Advogados Associados, pós-doutorando em Direito Penal pela USP, doutor em Direito Penal Econômico pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestre em Direito Penal pela Universidade Federal da Bahia e professor da UFBA e da UnB.

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    é advogada criminalista, sócia do escritório Gamil Föppel Advogados Associados, pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra-IBCCRIM e mestra em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

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