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Monteiro e Bordin: Mesas técnicas em Tribunais de Contas

2 de novembro de 2021, 13h15

Por Egle dos Santos Monteiro, Newton Antônio Pinto Bordin

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Os Tribunais de Contas brasileiros, com fundamento na abertura normativa estabelecida pelo artigo 71 da Constituição Federal, têm buscado o aprimoramento constante de sua função institucional, por meio de diversas iniciativas que contribuem para maior efetividade do controle externo e, consequentemente, para o aprimoramento das contratações públicas.

Dentre as iniciativas, podem ser mencionadas a crescente utilização de métodos digitais de análise de editais licitatórios — inclusive mediante a utilização de sistemas de inteligência artificial —; e o aprimoramento da estrutura de acordos nos processos de controle externo, notadamente por meio da celebração de termos de ajustamento de gestão (TAGs) entre as cortes de contas e os gestores públicos responsáveis pelas entidades ou pelos órgãos fiscalizados [1].

Neste artigo, serão apresentadas as mesas técnicas conduzidas no âmbito do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP), as quais têm sido objeto de crescente interesse pelas demais cortes de contas do país, pelos órgãos sujeitos à jurisdição do TCM-SP e pela sociedade paulistana [2] — e, defendemos, estão inseridas na lógica de iniciativas promovidas pelos órgãos de controle externo em prol do aprimoramento das contratações públicas.

Com a experiência da realização de diversas mesas técnicas sobre variadas temáticas no decorrer de diversos anos, o TCM-SP instituiu normas procedimentais relacionadas a essas reuniões [3], uniformizando entendimentos internos sobre o rito a ser seguido pelos participantes, em prol da segurança jurídica e da transparência [4].

As denominadas mesas técnicas guardam semelhança com as audiências judiciais, em que há a presença das "partes" — no caso, dos órgãos técnicos do TCM-SP e dos representantes da Origem [5] — e do julgador — com a participação de servidores lotados nos gabinetes e, eventualmente, com a presença dos conselheiros. Trata-se, a rigor, de reuniões técnicas de trabalho, para discussão sobre problemáticas identificadas em processo de fiscalização específico, ou a respeito de temática que poderá ser objeto de fiscalização [6].

Em que pese a participação de servidores lotados nos gabinetes dos conselheiros — eventualmente, com a presença do próprio relator —, essas reuniões não apresentam finalidade conciliatória, na medida em que não se está buscando a realização de um acordo entre os órgãos técnicos do Tribunal de Contas e o jurisdicionado.

Essa característica não impede que dessas reuniões surja a proposta de solução das irregularidades mediante ajustamento, do que pode resultar a celebração de TAG entre o gestor responsável e o Tribunal de Contas, extraindo-se daí um possível hibridismo das mesas técnicas — variando entre a apresentação de esclarecimentos e a conciliação mediante acordo.

Disso decorre que referidas reuniões não impedem a eventual conciliação de entendimentos, especialmente em razão da dinâmica das discussões havidas entre os participantes, com o objetivo de se esclarecerem as aparentes irregularidades, o conteúdo dos apontamentos formulados pelas áreas técnicas desta E. corte de contas e, até mesmo, eventuais explicações fornecidas pelos representantes da Origem. Tratar-se-ia, nessa perspectiva, de um viés aclaratório dessas reuniões.

Nessa perspectiva, ainda que não necessariamente se extraia das mesas técnicas a abertura para conciliação mediante acordo, verifica-se presente viés colaborativo entre os participantes ínsito a essas reuniões — afinal, todos são servidores públicos municipais —, que podem ser realizadas antes mesmo da instauração do contraditório no âmbito do processo de fiscalização.

O resultado dessas distintas características — (i) variedade de servidores participantes dessas reuniões; (ii) registro em ata a ser juntada aos autos; e (iii) viés técnico das discussões – é que as mesas técnicas auxiliam o julgador na formação de sua convicção quanto à matéria fiscalizada [7]. Em contrapartida, isso não significa que elas possuam natureza decisória, uma vez que não se espera do relator a prolação de decisão monocrática de mérito processual no âmbito da mesa técnica.

Ao mesmo tempo, os próprios jurisdicionados têm esclarecidas as principais problemáticas apontadas pelo TCM-SP, ocorrendo, não raro, de se comprometerem a suspenderem procedimentos licitatórios para adequação — dispensando-se, assim, o exercício do poder cautelar pelo Tribunal de Contas.

As discussões havidas nas mesas técnicas também permitem aos jurisdicionados o aprimoramento dos esclarecimentos a serem posteriormente formalizados, por escrito, ao Tribunal de Contas, em decorrência da melhor assimilação das problemáticas técnicas verificadas no processo de fiscalização; bem como o aperfeiçoamento de editais eivados de irregularidades e de impropriedades.

Nessa perspectiva, as mesas técnicas são espécies de "diálogos público-públicos" [8], voltadas que estão a esclarecimentos recíprocos entre distintos órgãos e entes estatais a respeito de matérias constantes do processo de fiscalização, do que resulta o paulatino aperfeiçoamento da gestão pública — finalidade última dos Tribunais de Contas.

Na prática, as mesas técnicas têm sido convocadas para processos de fiscalização relacionados a temáticas complexas — como nas licitações de desestatizações —, mas também podem abranger contratos administrativos em execução que tenham sido objeto de apontamento.

Além disso, é admitida a realização de mesa técnica, a critério do relator da pasta, para que o órgão jurisdicionado apresente ao TCM-SP projetos de interesse do município que poderão ser objeto de fiscalização pela corte de contas. A hipótese — semelhante a um road show [9] — também representa abertura do Tribunal de Contas ao diálogo com os jurisdicionados, mas, neste caso, ocorre previamente à instauração de processo de fiscalização. Nessa situação, há valorização tanto da transparência a respeito de projetos em desenvolvimento pelos órgãos jurisdicionalizados, quanto do trato conjunto da coisa pública, na medida em que se permite aos servidores do controle externo contato inicial com a matéria — reforçando-se o viés colaborativo dessas reuniões.

As mesas técnicas têm se mostrado bastante efetivas ao alcance dos seus objetivos de imprimir maior transparência e celeridade aos procedimentos de fiscalização, além de estarem bastante afinadas com as normas internacionais de controle externo.

Nessa perspectiva, tanto a Agenda 2030 das Nações Unidas [10] quanto a Declaração de Moscou, de 2019, adotada no âmbito da Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores (Intosai), buscam promover maior proximidade entre o órgão controlador e seus jurisdicionados. A Declaração da Intosai é veemente quanto à necessidade de se estabelecer "interação produtiva' entre os órgãos de controle externo e os jurisdicionados:
"10. As EFS podem ampliar seu impacto positivo ao estabelecer uma interação produtiva com o ente auditado e reforçar a cooperação e comunicação com a comunidade acadêmica e o público em geral.

Declarações principais:
– A interação com o ente fiscalizado é crucial para explicar e tornar claras as recomendações das EFS e facilitar a sua implementação.
– As EFS podem se beneficiar de uma comunicação eficaz entre a EFS e suas partes interessadas, que melhora a sua habilidade de identificar e analisar os problemas de interesse nacional para a tomada de decisões baseada em informações sobre um programa, projeto ou atividade. (…)"

O estabelecimento de normas procedimentais relacionadas a essas reuniões atende à segurança jurídica e valoriza o próprio diálogo institucional que deve haver entre os diferentes órgãos e entes estatais, especialmente em prol do aperfeiçoamento da gestão municipal e da adequada destinação de recursos públicos.

 

Referências

Normativos e documentos oficiais:

Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores (Intosai – International Organization of Supreme Audit Institutions). Declaração de Moscou, adotada no XXIII Congresso Internacional das Entidades Fiscalizadoras Superiores (INCOSAI), realizado de 25 a 27 de setembro de 2019. Disponível em: https://irbcontas.org.br/wp-content/uploads/2020/04/Declara%C3%A7%C3%A3o_de_Moscou_2019_-_tradu%C3%A7%C3%A3o_livre.pdf. Acesso em 12.02.21.

Organização das Nações Unidas. Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-desenvolvimento-sustentavel. Acesso em 12.02.21.

Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Resolução nº 18, de 19 de junho de 2019. Disponível em: https://portal.tcm.sp.gov.br/Management/GestaoPublicacao/Documento?id=36093. Acesso em 12.02.21.

_____________. Resolução nº 02, de 4 de março de 2020. Disponível em: https://portal.tcm.sp.gov.br/Management/GestaoPublicacao/Documento?id=36104. Acesso em 12.02.21.

Publicações acadêmicas:

Bordin, Newton Antônio Pinto. "Da Viabilidade Jurídica da Utilização de Termos de Ajustamento de Gestão (TAG) por Tribunais de Contas", In: Oliveira, Gustavo Henrique Justino de (coord.); Barros Filho, Wilson Accioli de (org.), Acordos Administrativos no Brasil: teoria e prática. São Paulo: Almedina, 2020, pág. 389-403.

Schiefler, Gustavo Henrique de Carvalho. Diálogos público-privados: da opacidade à visibilidade na administração pública. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Tese de Doutorado), 2016.

Notícias:

O Estado de São Paulo. Notícia: "Covas quer dar 100 mil tablets para colégios da periferia antes da eleição". Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,covas-quer-dar-100-mil-tablets-para-colegios-de-periferia-antes-de-eleicao,70003458815. Acesso em: 12.02.21.

Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Notícia: "Assista ao vivo: Mesa Técnica do TCMSP com a Secretaria Municipal de Educação para discutir edital da aquisição de tablets para a rede municipal de ensino". Disponível em: https://portal.tcm.sp.gov.br/pagina/18757. Acesso em 12.02.21.


[1] A respeito dos Termos de Ajustamento de Gestão, conferir Newton A. P. Bordin (2020, pág. 389-403).

[2] A respeito desse crescente interesse, importa fazer referência à primeira transmissão pública de mesa técnica, ocorrida em 01/10/2020, referente ao processo de fiscalização do Pregão Eletrônico nº 47/SME/2020, cujo objeto era a aquisição de tablets para distribuição aos alunos da rede pública. Cf. "assista ao vivo: mesa técnica do TCMSP com a Secretaria Municipal de Educação para discutir edital da aquisição de tablets para a rede municipal de ensino", Tribunal de Contas do Município de São Paulo; e "Covas quer dar 100 mil tablets para colégios da periferia antes de eleição', O Estado de São Paulo.

[3] Conferir, especialmente, a Resolução nº 02/20, que é específica sobre a matéria ora em apreço. O artigo 6º da Resolução nº 18/19 trata da convocação de mesas técnicas pelo conselheiro relator, no exercício do juízo cautelar ou mediante justificativa.

[4] A normatização, aliás, está em sintonia com o artigo 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), com a redação dada pela Lei Federal nº 13.655/18.

[5] Para fins de processo de controle externo, a utilização do termo "parte" para se referir ao jurisdicionado não é juridicamente apropriado, pois se está diante de situação de fiscalização, em que há o fornecimento de informações ao órgão de controle externo, ainda que se possa, ao final, apenar agentes considerados responsáveis pela irregularidade. Também não se verifica a presença de uma "contraparte" nos processos de controle externo, não se prestando os órgãos técnicos à defesa intransigente de um interesse próprio, mas sim à fiscalização da legalidade, da legitimidade, da economicidade, da aplicação das subvenções e da renúncia de receitas.

[6] A Resolução nº 02/20 não fixa o momento de realização das mesas técnicas, que podem ocorrer mesmo antes da instauração de processo de controle externo, como nos casos relacionados à apresentação de projetos de interesse do município que possam atrair a competência fiscalizatória do TCM-SP (artigo 2º, I, "a").

[7] Nesse aspecto, as mesas técnicas poderiam ser consideradas análogas às inspeções judiciais.

[8] A expressão é de Gustavo Henrique de Carvalho Schiefler (2016: pág. 286).

[9] Idem, pág. 284 e ss.

[10] No âmbito do Objetivo 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes), podem ser identificadas, no mínimo, as seguintes metas relacionadas à iniciativa objeto deste artigo:
16.5 Reduzir substancialmente a corrupção e o suborno em todas as suas formas.

16.6 Desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis.

16.7 Garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis.