Opinião

Crime de homofobia: nascimento, morte e velório do princípio da reserva legal

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

1 de novembro de 2021, 6h34

Não há crime sem lei anterior que o defina e nem pena sem prévia cominação legal. Cuida-se do princípio da legalidade ou da reserva legal, o mais importante princípio de Direito Penal, previsto no artigo 1º do nosso Código Penal, e no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal.

Aos incautos pode parecer que se trata de criação recente, fruto do Direito Penal moderno, mas não é. Decorre de lenta evolução do Direito Penal, visando a proteger o homem do arbítrio do soberano.

O princípio da legalidade (nullum crimen, nulla poena sine lege) tem sua origem na Magna Carta do João Sem-Terra de 1215 ("Nenhum homem pode ser preso ou privado de sua propriedade a não ser pelo julgamento de seus pares ou pela lei da terra"). A expressão original (by the law of the land) foi posteriormente modificada pela Magna Carta inglesa para due process of law, que obrigava os magistrados da época a aplicar as normas consuetudinárias existentes, a fim de que não houvesse arbítrio. Ao que parece, esse princípio seria mais uma garantia processual do que penal.

Todavia, foi com a Revolução Francesa (Iluminismo), na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (26/8/1789), que o princípio da reserva legal se firmou como inerente a todo país civilizado. Dizia o artigo 8º desse estatuto: "Ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada".

No Brasil, foi inserido como princípio basilar do Código Criminal do Império de 1830. Dizia o artigo 1º desse código: "Não haverá crime ou delicto (palavras synonimas neste Codigo) sem uma lei anterior que o qualifique".

Dada a sua magnitude jurídica, o Código Criminal do Império teve larga influência no Código Espanhol de 1848-1850 e em sua versão de 1870, que inspirou quase toda a legislação da América Latina.

Antes desse código, que não tenho a menor dúvida em dizer que foi o mais técnico e avançado em que vigorou no Brasil até os dias de hoje, claro que com todas as limitações pertinentes à época de sua criação, vigoraram no Brasil as ordenações do reino. As Afonsinas (até 1512); as Manuelinas (até 1569), que foram substituídas pelo Código Sebastiânico (até 1603). Após, surgiram as ordenações Filipinas, que eram o puro reflexo do Direito Penal medieval, em que as penas eram severas e extremamente cruéis. Havia profunda ingerência da vingança divina, em que o crime era confundido com o pecado e com ofensa moral, punindo-se com a morte, em regra, os hereges e os que atentassem contra as normas da Igreja. As penas cruéis, como açoite, degredo, mutilações, visavam a difundir o medo.

As ordenações Filipinas consagravam a desigualdade de classes perante o crime, sendo que o juiz aplicava a pena de acordo com a gravidade do caso e a qualidade da pessoa, privilegiando os nobres que, em regra, eram punidos com multa, ficando para o restante os pesados castigos.

Não existia uma técnica legislativa, sendo que as infrações eram definidas em longos textos.

Havia uma grande preocupação com o soberano e confundia-se o crime com os atos imorais e o pecado, punindo-se algumas condutas sexuais apenas porque praticadas por infiéis e cristãos, visando à defesa religiosa.

Vejam, portanto, a importância histórica da implementação do princípio da legalidade em todo o mundo, época em que o soberano tinha praticamente a vida das pessoas em suas mãos, podendo interpretar as leis como melhor lhe aprouvesse.

Há três sentidos para legalidade:

1) Político: é uma garantia constitucional dos direitos fundamentais da pessoa humana;

2) Jurídico (em sentido lato): ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, II, CF);

3) Jurídico (em sentido estrito ou penal): também é conhecido como princípio da reserva legal, segundo o qual os tipos penais (crime ou contravenção) somente podem ser criados por lei em sentido estrito (emanada do Poder Legislativo Federal) e segundo procedimento estabelecido na Constituição Federal.

Decorre do princípio da reserva legal que a norma penal incriminadora deve ser taxativa, descrevendo perfeitamente a conduta punível e de modo a ser facilmente entendida por todas as pessoas. Cabe ao legislador, portanto, definir com clareza e precisão quais as condutas que ensejarão a imposição de uma sanção.

Da taxatividade da norma penal é extraído que o legislador deve criar tipos penais precisos, evitando, assim, os tipos penais "muito abertos", em que o intérprete possa dar à norma a interpretação que lhe for conveniente. Tal fato ocorreu na Revolução Soviética (artigo 6º do Código Penal Soviético de 1926), que permitia a punição de qualquer conduta que fosse considerada perigosa à estrutura do Estado soviético. Isso implicava que o juiz poderia punir quem, em sua opinião, pudesse colocar em risco a ordem política da época. Portanto, o ideal é que o tipo penal seja o mais fechado possível.

O princípio da reserva legal também é uma garantia das pessoas de que somente serão punidas se afrontarem norma penal incriminadora expressa e anterior à conduta praticada, que descreva perfeitamente qual a conduta punível e a respectiva sanção.

Tendo em vista o princípio da reserva legal, a norma penal incriminadora não possui lacunas. Assim, os costumes, a analogia e os princípios gerais de Direito somente podem suprir as lacunas existentes em normas penais não incriminadoras. Isso também implica que, não havendo norma proibitiva expressa, o fato é permitido pela lei penal, embora possa configurar infração civil ou administrativa.

O princípio da reserva legal também encerra o princípio da anterioridade da lei penal, segundo o qual somente o fato posterior à vigência da lei penal incriminadora será alcançado por ela. A norma penal vige para o futuro e retroage apenas quando beneficiar o acusado. Com efeito, para que possa ser aplicada, a norma penal incriminadora deve ter vigência anterior à conduta praticada.

A competência para legislar sobre matéria penal é privativa da União (artigo 22, I, da CF). Cabe, portanto, apenas ao Poder Legislativo federal, por meio de lei, criar normas penais incriminadoras.

Anoto, porém, que outros atos legislativos, que não a lei, podem dispor sobre matéria penal quando não criarem normas penais incriminadoras, cominarem penas ou aumentarem o rigor punitivo de uma norma penal. É o que ocorre com o indulto e a comutação de penas, que são concedidos por decreto do presidente da República (artigo 84, XII, da CF). Não é o caso da medida provisória, que não pode dispor sobre matéria penal por expressa determinação do artigo 62, §1º, inciso I, alínea "b", da CF.

No entanto, este princípio, base de todo Direito Penal brasileiro e de quase todos os países democráticos, com exceção dos que ainda adotam a common law, foi derrogado pelo STF ao criar norma penal incriminadora por meio de decisão judicial. Como já tive oportunidade de escrever em outros artigos sobre o tema, nossa Corte Constitucional, que deveria proteger as normas constitucionais (princípios e regras jurídicas), criou o crime de homofobia por meio de decisão judicial, violando o princípio da reserva legal, que demorou séculos para ser conquistado pelo mundo, notadamente em nosso país.

E referida decisão, ao que tudo indica, foi tomada com base na mais pura ideologia, que tem impregnado as decisões da Suprema Corte nos últimos anos.

Querendo, ou não, o histórico de experiências vividas, boas e ruins, a educação recebida e a religião moldam a estrutura do ser de cada pessoa, impregnando a interpretação das normas jurídicas.

Pela fundamentação adotada, foi criado tipo penal de homofobia mediante analogia (in malam partem), repudiada por toda doutrina brasileira, pelo menos até aquela decisão, justamente por violar o princípio da reserva legal (a analogia só pode ser empregada em favor do réu, e nunca contra — in bonam partem).

Como já afirmado, não é possível a analogia in malam partem, isto é, empregada contra o réu. Assim, não se pode equiparar a conduta de, por qualquer meio, ofender ou discriminar a um homossexual, transexual ou afins, com o crime de racismo, que em todos os seus tipos penais traz os elementos definidores desse delito e não contempla a homofobia, cuja definição sequer é definida pela lei penal.

Por isso, como cabe ao legislador criar normas penais incriminadoras, o máximo que o STF poderia fazer é reconhecer a mora legislativa em ação direta de inconstitucionalidade por omissão e intimar o Congresso Nacional para que elabore a norma. Não se pode obrigar o legislador a legislar e criar norma penal incriminadora, sob pena de ferir a separação dos poderes da República, princípio fundamental de nossa Carta Constitucional (artigo 2º). No entanto, em face da omissão do Poder Legislativo, a solução possível é a responsabilização civil pelo prejuízo que causar.

Não entro no mérito de ser necessária, ou não, a criminalização da homofobia, mas não cabe ao STF fazê-lo, sob pena de violar o princípio da reserva legal.

A decisão do STF criou situação delicada, já que sequer é possível saber a definição do crime de homofobia e a diferenciação com a mera manifestação do pensamento, direito assegurado pela Constituição Federal (artigo 5º, IV).

Como não há norma penal que defina a conduta, a pessoa pode muitas vezes apenas comentar ou criticar situação concreta ou imaginária e incorrer em conduta típica definida pelo Pretório Excelso como homofobia, que, como já dito, não possui definição e nem limitação, o que o princípio da reserva legal visa a evitar.

No caso de se ofender a honra subjetiva ou objetiva de alguém em razão de sua orientação sexual, pode ser o autor responsabilizado por crime contra a honra (injúria ou difamação), mas não por uma infração penal que sequer possui definição típica.

E o que mais me chama a atenção neste caso em especial é que não houve por parte de instituições e tampouco de juristas ou operadores do Direito quase nenhuma reação.

Lembro, apenas, que a porteira foi aberta e poderá a Suprema Corte, em qualquer outra hipótese, criar norma penal ou aboli-la por meio de decisão judicial, mesmo que afronte o princípio da reserva legal e da separação dos poderes. Não se sabe qual outra conduta típica poderá ser criada por meio de decisão judicial, uma vez que o precedente foi instalado.

Enquanto o STF legislar, por meio de interpretações extremamente flexíveis e subjetivas, a insegurança jurídica estará instalada, já que as normas constitucionais e infraconstitucionais passaram a ser apenas um detalhe, um enfeite sem muita importância.

Todo cuidado deve ser tomado pelo membro do Ministério Público e magistrado ao analisarem situação concreta que envolva fato que, segundo o STF, enquadre-se como homofobia.

No meu modo de ver, mediante análise técnica, baseada na doutrina pacífica e jurisprudência consolidada, inclusive dos tribunais superiores, em razão de ausência de definição típica por meio de processo legislativo regular, sequer poderia ensejar a instauração de ação penal por violação aos princípios da reserva legal e da separação dos poderes da República, cláusulas pétreas, que não podem ser alteradas nem por emenda constitucional por fazerem parte do núcleo intangível da Carta Magna.

Autores

  • é procurador de Justiça do MP-SP, professor, mestre em Direito da Relações Sociais pela PUC-SP, especialista em Direito Penal pela ESMP-SP, palestrante e autor de diversas obras jurídicas, entre elas "Comentários à Lei de Execução Penal", "Manual de Direito Penal", "Lei de Drogas Comentada", "Estatuto do Desarmamento", "Provas Ilícitas" e "Tutela Penal da Intimidade", publicadas pela Editora Juruá.

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